“Pegamos em armas simbólicas e descemos à capital para perguntar à opinião pública se assim teríamos que defender a água. Isso provocou um impacto. Não havíamos calculado a magnitude midiática que ia alcançar”, diz a comandanta Victoria Martínez. Mulher. Indígena. Mexicana. Lutadora pela defesa da água. Ela, junto a outras mulheres mazahuas, assumiu o comando da luta de suas comunidades em defesa de sua água. Sua voz, sua força e sua imagem chegaram longe e conseguiram que as instituições públicas mexicanas atendessem a suas reivindicações.
“Não sabíamos o que era ser uma comandanta nem o que era se sentar em uma mesa de negociação. Conforme o tempo passou fomos nos dando conta e assumimos a responsabilidade”, relembra o livro Agua y desigualdad social: el caso de las indígenas mazahuas en México, da investigadora mexicana Anahí Copitzy Gómez Fuentes.
O Exército Zapatista de Mulheres em Defesa da Água nasceu para dar um passo à frente e levar além a luta que os homens haviam empreendido sem êxito. Uma potente resposta que chegou depois de muitos anos de roubos, perda de direitos e de terras. Em território mazahua, no centro do vale de Toluca no México, construiu-se nos anos 70 o sistema Cutzamala uma das maiores obras de engenharia civil do mundo que serve para abastecer de água um sedento Distrito Federal, uma metrópolis com em torno de 20 milhões de pessoas, e outros 27 municípios de seu cinturão urbano. É formado por 140 quilômetros de canais, túneis e sifões, plantas de bombeamento com quase 200 metros de desnível e uma enorme planta dessalinizadora.
Apesar das obras grandiloquentes, das grandes infraestruturas, do dinheiro investido, muitos povos tinham sede mesmo estando a poucos quilômetros desse mastodonte. “O paradoxo era que tendo o maior complexo dessalinizador da América Latina em seu território, as comunidades indígenas e campesinas em torno do sistema Cutzamala não tiveram água entubada em suas casas por muitos anos”, explica Gómez Fuentes.
A infraestrutura se baseou em obras prévias, como o sistema hidroelétrico Miguel Alemán, composto por oito represas e que já havia causado a fragmentação das comunidades e a expropriação de terrenos. Mas o orgulho nacional por essa obra hidráulica ocultou seus impactos sobre a vida do campesinato, como a contaminação de rios, a seca de nascentes, o desaparecimento de flora e fauna, doenças por águas contaminadas, além da mencionada expropriação e a falta de reparação e de compensação.
“Prometeram coisas que nunca cumpriram. As avós perderam as melhores terras e ficaram desprotegidas”, apontou uma das vítimas desse projeto. “Já não há água como antes. Antes havia uma laguna com batatas d’água, verduras, peixes, lagostas de rio, batata branca e mazatete [valeriana tolucana]. Já não há mais nada, só alguns peixes contaminados pelos dejetos químicos”, diz outra vizinha.
Os interesses cruzados, em que entram as distintas bacias hidrográficas e sua organização e gestão, têm provocado muitos enfrentamentos pela água no México, aponta o investigador da Universidade Nacional Autônoma do México, Arsenio González. Sem dúvida, puseram-se as necessidades da população da capital acima das necessidades do povo mazahua. “A falta de acesso a água potável das e dos mazahua não se devia à ausência do recurso, mas à sua distribuição injusta e excludente. E os conflitos pela água são provocados muitas vezes por marcantes desigualdades sociais, tanto de classe, gênero, raça e etnia, como das relações entre campo e cidade”, sintetiza, por sua vez, Natalia Uribe, do Centro Unesco do País Basco. Nesse caso, a água se converteu em um recurso político-estratégico que serviu para fazer visíveis carências estruturais.
A gota que transbordou o copo
A situação de desigualdade explodiu no ano de 2003 quando foram inundados cerca de 300 hectares cultivados nas margens do rio Malacatepec por conta de um erro no sistema Cutzamala. Essa catástrofe foi a gota que fez transbordar o copo e provocou o início de uma reivindicação limitada e empreendida pela chamada Frente Mazahua: o pagamento dos cultivos perdidos. A falta de respostas e a ignorância dos governantes provocaram o crescimento da reclamação e o surgimento de um conflito que já evidenciou a falta de água e de serviços básicos.
E pouco a pouco a população foi tomando voz. E as mulheres gritaram mais alto. “Nossas terras são ricas em água e nós temos que carregá-la (…). Só se busca beneficiar a gente que vive nas grandes cidades, sem importar a pobreza que gera às comunidades”, diz a comandanta Victoria Martínez. A desigualdade e o despejo sofrido se fizeram patentes.
Em fevereiro de 2004 começaram as mobilizações, as marchas e as vigias em frente à planta depuradora, fechando-a simbolicamente e exigindo respostas e soluções. Que não chegaram. Assim, as mulheres deram um passo à frente. E os fizeram de uma maneira única: armadas com suas coloridas vestimentas típicas, seu penteado repartido ao meio e suas duas longas tranças, aterrorizaram os governadores do Estado do México e a Comissão Nacional de Águas. Também o fizeram suas armas: rifles e machetes de madeira, junto com tochas acesas, acrescentaram drama, seriedade e grandiloquência aos protestos. Sem esquecer sua força de mulheres, sua imagem de mães e o impulso da injustiça. E então conseguiram que suas reivindicações fossem ouvidas. Elas, as comandantas, assumiram o controle da mobilização. Falaram e foram bem-sucedidas.
A luta se concentrou durante dias no Distrito Federal, onde ocorreram greves, plantões e manifestações constantes que conseguiram um grande impacto midiático. Além da condição de mulheres, mães (muitas iam com suas filhas e filhos no colo) e indígenas, elas se autodenominavam Exército Zapatista de Mulheres pela Defesa da Água, o que acrescentou a nuance da luta zapatista, que provocara grandes dores de cabeça ao oficialismo mexicano. E anunciaram que as ações pacíficas seriam abandonadas para abrir caminho às ações violentas se suas demandas não fossem atendidas. Quase nada. Embora, finalmente, seu protesto mais extremo tenha sido o bloqueio da entrada de cloro na dessalinizadora e a ameaça, nunca executada, de fechar o bombeio de água até a capital.
Cristina Cruz, Blanca Cruz, Lola Cruz, Gisela Espinoza, Bertha Amador, Esperanza López, Martha Ramos, Olga Ramos, Victoria Martínez, Alicia López, Hortensia Dionisio, Nancy García. As comandantas. Elas revitalizaram o movimento e ampliaram a luta. Uniram os movimentos de mulheres, indígenas e ambientalistas. Também criticaram a política hidráulica nacional que, segundo elas, só beneficiava as grandes cidades em detrimento do campo. E animaram o povo “a não se desesperar e não desistir”, aponta Gómez Fuentes. E venceram.
Acesso à água, uma questão de poder
Não há dúvidas de que o acesso à água é uma questão de poder. “Deparamo-nos ante um cenário em que se torna cada vez mais aguda a lacuna que separa as estratégias para a gestão do recurso implementadas ‘de cima’ e as formas de luta ‘de baixo’. Entre ambas existe uma quebra que parecia não se poder sanar exitosamente enquanto subsistirem as políticas econômicas e sociais atualmente existentes”, assinalou por exemplo Karina Kloster, investigadora do Flacso México.
A construção do sistema Cutzamala se enquadra em um modelo de política hidráulica iniciado no sexênio de Carlos Salinas de Gortari (1988–1994) e desenvolvido e executado durante os governos posteriores e impulsionado por organismos como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Fundo Monetário Internacional. “Por um lado se promove a administração centralista do executivo federal e, ao mesmo tempo, impulsiona-se a participação do setor privado”, resume Anahí C. Gómez Fuentes. Desde então os conflitos pela água no México têm se multiplicado.
Sabe bem disso Rodolfo Chávez, líder do Movimento de Afetados pelas Represas e em Defesa dos Rios. “Não se consegue nada se não é por meio de uma sociedade civil organizada e com força. As pessoas têm que se envolver, porque o Estado utiliza o direito conforme seus caprichos. Não há limites quanto à ação. Menos ainda num país em que não se respeitam as leis por parte do Governo. O uso da força não é a regra mas estamos dispostos a defender nossa forma de vida, nossa terra”, declarou à Otramérica.
Também sabe disso Lidia, mulher empobrecida, que enfrentou o todo-poderoso Estado mexicano, o qual denunciou por descumprimento do direito humano à água, que está previsto na Constituição do país. As mulheres, no eterno papel de cuidadoras, são as encarregadas da alimentação familiar e da manutenção dos lares; e isso não significa nada além de água. Água para beber, para cozinhar, para limpar, para sanear, para cultivar. Água para viver. Quando falta água são as mulheres as encarregadas de buscá-la onde quer que ela esteja.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) explica, em um de seus informes anuais, que nos países em desenvolvimento atentar-se dos filhos e filhas, cuidar das pessoas doentes e idosas, preparar a comida e buscar água e lenha são tarefas dominadas pelas mulheres. “A busca de água é parte da desigualdade de gênero”, acrescenta o PNUD.
“Foram as mulheres que tomaram consciência de sua situação frente à água”, analisa agora, já à distância, Gómez Fuentes. Ainda que as comandantas não tenham lutado por uma transformação social de gênero, como qualifica quem melhor documentou este caso. Seus méritos foram outros: “Usaram o gênero para, a partir de sua vulnerabilidade, tornarem-se mais fortes. Para dizer que, apesar de tudo, temos capacidade para exigir. A partir de nossa condição, podemos fazer isso. Não se pode falar tanto de emancipação mas sim de que as coisas podem ser diferentes”.
E há aproximadamente um ano as ações das mulheres mazahuas alcançaram seu objetivo: introdução de redes hidráulicas em distintas comunidades e um plano de desenvolvimento sustentável na região. “Para nós é uma libertação muito boa, você não ganha só o respeito de gente de fora, mas da sua própria casa”, diz a comandanta Nancy García. Porque elas sempre estiveram aqui, em uma luta em muitos casos invisibilizada — que não é a mesma coisa que ausente.
Uma luta diferente
A desigualdade de gênero segue presente na sociedade mazahua: “Creio que foi um assunto que não questionaram, mas que utilizaram. Usaram a divisão de papéis para, a partir de sua vulnerabilidade, fazerem-se fortes. Apesar das condições, vamos em frente”, aponta Gómez Fuentes. Serem mães e cuidadoras foi a imagem potencializada pelas comandantas. E em muitos casos esse passo à frente supunha uma multiplicação das tarefas, trabalhos e obrigações: se papel dentro de seus lares no desapareceu e a isso se somou seu papel público. Mulheres costurando durante as greves ou amamentando seus bebês era algo estranho. Levaram o espaço doméstico ao espaço de luta.
Ainda que a desigualdade não tenha desaparecido, é fato que se conseguiram avanços; analisa com a distância do tempo a investigadora mexicana, que destaca a abertura cultural e social relativamente às mulheres, que conseguiram maior influência no espaço público. “Não houve empoderamento ou emancipação, mas consciência de que as coisas poderiam ser diferentes. Aprenderam a inovar, a fazer as coisas de outro modo”, acrescenta, e recorda que desde então até seus artesanatos mudaram: ficaram sem material durante os plantões na capital e seguiram trabalhando com o que tinham. “Se a luta não tivesse tido o componente feminino, não teria chegado aonde chegou”, finaliza.
A situação hoje não está completamente solucionada. A constante ameaça de pôr em andamento a quarta fase do Sistema Cutzamala, que pressupõe a canalização de novos rios e a construção de uma nova represa para levar mais água para a cidade, faz com que a luta mazahua siga latente. De fato, no mês de março passado houve de novo marchas contra esse projeto e protestos porque nem todos os compromissos assumidos pelos órgãos federais há quase uma década foram cumpridos. Segundo o jornal mexicano La Jornada, várias comunidades dos municípios de Villa de Allende, Villa Victoria e Donato Guerra seguem tendo problemas de abastecimento de água. “Vamos ter que agir”, diz a reportagem. As comandantas mazahuas sabem como fazê-lo.
Tradução do texto Un ejército de mujeres para defender el agua, de J. Marcos e Maria Ángeles Fernández, publicado originalmente na revista Pueblos, em janeiro de 2016. Você pode ler o original em espanhol aqui.