O consumo de carne aumentou muito nas últimas décadas. Ele está associado a progresso social, ter carne na mesa significa, para muita gente em nossa cultura, ter uma refeição completa. Assim, não ter carne, significaria comer insuficiente ou ter uma refeição pobre.
Por trás dessas noções culturais existe uma indústria que incentiva o consumo de carne. Essa indústria tem aumentado, de forma exponencial, a produção de carnes e produtos derivados no mundo. Nossa dieta é modificada por “um modelo que tem promovido a concentração empresarial, deixando para um punhado de empresas transnacionais a capacidade de decidir quais carnes e derivados consumimos, o quanto, e como elas são processadas”¹. Por baixo dessas decisões ocorrem violações de direitos humanos e dos animais.
Direitos humanos são violados quando pessoas são pressionadas a saírem de suas terras, seja por meio da concentração fundiária promovida pelas transnacionais da indústria agroalimentar, seja por meio da devastação ambiental causada por essa mesma indústria. A pecuária é responsável por muito desmatamento, uma vez que precisa frequentemente expandir suas áreas. Ela é, hoje, a principal utilizadora de terras agrícolas (somadas as áreas para pastagens e para plantação de alimentos que servirão de ração para o gado).²
Na atual demanda por carne, são necessários 60 bilhões de animais para supri-la todos os anos. É estimado que a produção de carne e demais produtos de origem animal sejam responsáveis por 51% das emissões globais de gases de efeito estufa³, principais causadores das mudanças climáticas, que provocam tempestades intensas, secas prolongadas, ciclones e incêndios. Os desastres provocados por essas mudanças são o principal motivo de deslocamentos no mundo atualmente⁴. Isso é prejudicial para mulheres e crianças, não só pelo fato mais óbvio de que sem um meio ambiente saudável todas os seres vivos são lesados, mas também porque nós somos mais vulneráveis às violências decorrentes da insegurança climática e alimentar.
Nos casos de deslocamentos provocados por crises ambientais, é comum o homem migrar primeiro, porque ainda são vistos como provedores, indo em busca de empregos em outros lugares, enquanto as mulheres migram apenas quando a situação do local fica insustentável. Elas permanecem nos locais que sofreram erosão e assoreamento, com cargas de trabalho pesadíssimas, sustentando crianças, idosos e doentes que também ficaram. Além disso, nos casos de migração forçada em que mulheres vão para abrigos apartadas dos familiares homens, existe uma maior possibilidade de serem vitimadas ali também pela violência masculina.
O fato de as mulheres geralmente terem mais pessoas sob seus cuidados do que os homens leva ao risco de elas aceitarem quaisquer remunerações que aparecerem, sendo que acabam em piores cargos e condições de trabalho. E o fato de serem mulheres leva seus corpos a serem vistos como moedas de troca. É muito comum que haja, durante crises ambientais e climáticas, relatos de mulheres e crianças denunciando que foram prostituídas em troca de mantimentos, inclusive por parte de homens que deveriam estar ali para ajudá-las, como os que compõem missões de paz. A vulnerabilidade dos migrantes aumenta o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual, cujas principais vítimas são mulheres.⁵
A carga de trabalho das mulheres, tanto camponesas quanto citadinas, é ainda afetada pela pecuária porque essa indústria causa doenças. 75% das doenças humanas epidêmicas têm origem em animais⁶, e isso está diretamente ligado ao atual modelo pecuário. Animais da indústria pecuária recebem antibióticos de forma massiva (recebem mais do que as pessoas⁷), inclusive de forma preventiva, sem que estejam doentes, para que possam sobreviver às condições ruins, como de confinamento no caso da pecuária intensiva, o que faz surgir bactérias resistentes. Além disso, a devastação das florestas para o estabelecimento de pastagens obriga animais selvagens ao contato humano, o que pode trazer doenças para nós. Além das doenças epidêmicas, esse modelo prejudica nossa saúde porque usa venenos, drogas e hormônios que desregulam nossos sistemas endócrino e imunológico. Neste mundo patriarcal, mais pessoas doentes significa mais horas de trabalho para as mulheres, porque nós somos as pessoas vistas como cuidadoras, esse não é um trabalho compartilhado por todos.
O patriarcado, aliás, desvaloriza as tarefas relacionadas ao que chamamos de “ética do cuidado”. Isso inclui compaixão pelos seres vivos, tanto humanos quanto de outras espécies animais e plantas. O sofrimento animal é considerado uma preocupação menor na sociedade ou, até mesmo, boba. Isso faz a devastação ambiental, as queimadas, a hormonização de animais e a emissão de gases de efeito estufa, provocados pela pecuária, serem colocados como males necessários para o progresso e avanço da economia, essas, sim, preocupações julgadas válidas.
As mulheres não estamos ilesas de pensar assim. Mesmo que nós sejamos consideradas as cuidadoras, nós também pensamos no cuidado, de forma geral, como algo menos importante, porque fomos educadas com o mesmo pensamento liberal que os homens. Podemos ver isso na forma como entendemos a educação das crianças, por exemplo, em que as responsáveis por cuidar delas são as mulheres, mas não quaisquer mulheres, são suas mães. Os filhos dos outros não são vistos por nós como problema nosso, “cada um que cuide do seu”.
Mesmo sendo criadas para o cuidado, nós ainda o desvalorizamos porque somos levadas a pensar que é um problema individual, e porque consideramos importante a manutenção da economia. Não costumamos pensar que a própria ideia do que é considerado produtivo e, portanto, de valor econômico, foi construída dentro do capitalismo e da visão masculinista de mundo. A economia não é um dado natural, é também construção social.
É preciso desmontar a ordem patriarcal e capitalista, precisamos reconhecer a importância de se cuidar da natureza e de que todos os seres humanos se tornem responsáveis por esse cuidado. Para isso, é necessário identificar que a indústria pecuária segue um modelo de produção que mantém a ordem social, que é prejudicial para as mulheres, visto que é provocador de crises, epidemias, isolamentos e migrações forçadas, aumentando nossa carga de trabalho e nos deixando mais vulneráveis às violências masculinas.
Notas:
1. VIVAS, Esther. O Negócio da Comida. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
2. BRUINSMA, J. World agriculture: towards 2015/2030. Londres: FAO, 2003.
3. GOODLAND, R. e ANHANG, J. Livestock and Climate Change. Washington: World Watch, 2009.
4. OXFAM. Forced from home: climate-fuelled displacement. Oxfam, 2019.
5. COELHO, Sabira. The Climate Change — Human Trafficking Nexus. Bangcoc: IOM, 2016
6. FREIRE, Juliana. Novas doenças animais são desafio constante para a ciência. Embrapa, 2014.
7. CHAN, Margaret. Resistencia a los antimicrobianos em la Unión Europea y em el mundo. Copenhague: OMS, 2012.