Uma declaração feminista autônoma
Uma declaração feminista autônoma

Longo tem sido o caminho para chegar ao lugar onde estamos hoje. O feminismo que nos une foi forjado por muitas mãos, ações e sonhos. Graças àquelas que atuaram antes de nós, hoje podemos saber o que queremos e o que não queremos.

A autonomia feminista não teve um começo único. Sua genealogia se constrói no antes e no depois, na história passada e nos atos e escolhas que fazemos no dia a dia. A utopia se constrói em nosso presente, se alimenta de cada um dos atos individuais e coletivos que somos capazes de gerar, a partir do que já foi feito, a nossa própria ideia de mundo e as práticas e princípios necessários para transformá-lo.

Nossa autonomia feminista é antes uma posição perante o mundo, do que um conjunto inequívoco de preceitos. A autonomia não se alimenta de dogmas ou mandatos, pois escapa a toda regulação e a qualquer tentativa de nos afastar de nossa singularidade e responsabilidade como sujeitas históricas comprometidas com outras formas de fazer e estar no íntimo, privado e público.

A multiplicidade de experiências que nos atravessam — que aqui reunimos — mostra do que estamos falando. Chegamos por diferentes vias a este espaço-vida da autonomia feminista. Algumas depois, outras antes, algumas por labirintos onde nos perdemos por um tempo… até que… o caldo de crítica sobre o mundo e sobre nós mesmas coalhou e nos perfurou como um raio. Assim, das formas mais inusitadas e graças à experiência acumulada, pudemos fazer uma crítica radical e madura não só do mundo em que vivemos, mas também da política necessária para mudá-lo.

Reconhecemos essa multiplicidade de experiências-conhecimento como um dos nossos maiores potenciais, ao mesmo tempo que reconhecemos com firmeza as produções e ações que nos unem. Concordamos com alguns mínimos comuns que são os que nos fazem sentir convocadas e parte da posição política que acordamos nomear de Feminismo Autônomo.

Em nossa genealogia, coletamos todas as formas de resistência ativa de nossos ancestrais indígenas e afrodescendentes; o legado do feminismo radical dos anos 1970; as primeiras experiências de grupos de autoconsciência; as práticas de affidamento¹ e concessão de autoria criativa entre as mulheres, das feministas italianas da diferença; o feminismo situado, descentrado e antirracista do movimento de mulheres latinas, chicanas e racializadas nos Estados Unidos, que continua na América Latina e no Caribe; as contribuições de lésbicas feministas na luta contra o regime de heterossexualidade compulsória, que é opressor para todas as mulheres; o reconhecimento da mulher como categoria política e da feminilidade não natural, como nos ensinaram as feministas materialistas; e, muito mais perto, nos sentimos herdeiras daquela parte da geração de feministas dos anos 1970, que no final dos anos 1980 não estava disposta a abandonar suas aspirações por uma transformação radical da realidade e anunciou os perigos do novo pacto entre uma parte importante do feminismo com a cooperação internacional, o sistema das Nações Unidas, o Estado e suas instituições.

Reconhecemos nas primeiras produções de Cómplices², do Movimento Feminista Autônomo e do feminismo popular do Chile, de Mujeres Creando da Bolívia, de Atem da Argentina, as primeiras contribuições concretas na definição dos postulados básicos sobre os quais as diferentes experiências e projetos políticos reunidos sob a égide do Feminismo Autônomo por ocasião do VII Encontro Feminista da América Latina e Caribe e que deram origem a uma primeira declaração feminista autônoma: “Permanência Voluntária na Utopia”.

Várias companheiras forjadas a partir dessas experiências articuladas no encontro do Chile, em 1996, nos reunimos aqui hoje para continuar construindo com as novas gerações de feministas autônomas os atuais desafios que nos são colocados pelas novas formas de patriarcado, capitalismo, racismo, etnocentrismo, regime heterossexual. Reconhecemos em nossa história o papel desses espaços e projetos coletivos que não só deram continuidade ao legado, mas também se envolveram ativamente na construção e revisão permanente das bases discursivas e ativistas da proposta autônoma: Próximas, Chinchetas, Clorindas, Enlace Lésbico, Memoria Feminista, entre outros.

A partir dessas bases e caminhos múltiplos, hoje podemos sustentar que o Feminismo Autônomo é uma proposta ética, política e de transformação mundial feito pelas mulheres, para nós e para toda a humanidade.

A autonomia é antes de tudo e sempre um ato de profunda dissidência contra qualquer lógica de dominação, é contra-hegemônica, é relacional. Nosso pensamento busca desmantelar as prisões dos paradigmas hegemônicos, todos eles patriarcais, ocidentais e capitalistas, capazes de manter o pensamento dentro do limite da utilidade.

Temos sido feministas autônomas em relação àquelas práticas políticas que a cada nova conjuntura tentaram acomodar o feminismo a uma razão pragmática disposta a ceder na tentativa de mudar a vida como um todo, em troca de uma inclusão que sempre será parcial, e de privilégios que sempre serão de sexo, classe, raça, sexualidade, origem e normatividade.

O feminismo que nos reúne é identificado em cada gesto de oposição radical às inúmeras e interligadas formas de subordinação e colonização de nossos corpos e subjetividades; é identificado em cada pequena tentativa de produzir, no aqui e agora, novas formas de vida distantes daquelas esperadas para mulheres e grupos oprimidos. Diante do novo contexto internacional e suas expressões e particularidades locais, aquelas de nós que se sentem chamadas a este Encontro Feminista Autônomo mostram o agravamento dos efeitos do neoliberalismo na vida de milhões de mulheres e dos pobres do mundo, evidenciamos a militarização progressiva, o aumento da violência estrutural e da vulnerabilidade de grupos inteiros da população; a irresponsável depredação e privatização da terra, da água e de fontes de recursos naturais; a primazia de uma ciência normalizadora e mercantilista a serviço dos grandes capitais, o predomínio do pensamento eficiente, demagógico, quantitativo; a cooptação, a perseguição e a tentativa de aniquilar os discursos mais radicais dos movimentos e as propostas transformadoras, por parte dos governos, da cooperação internacional e dos espaços transnacionais, onde uma elite de especialistas separada dos movimentos e da vida subalterna produz os discursos, as receitas e as agendas políticas locais.

Múltiplas identidades habitam nossos corpos — trabalhadoras, indígenas, afrodescendentes, mestiças, lésbicas, pobres, periféricas, imigrantes… –, todas elas nos contêm, todas elas nos oprimem. O que nos une não é uma identidade, mas um corpo político, uma memória de opressão. A subordinação comum foi marcada em nossos corpos, essa marca indelével nos restringe a um lugar específico na vida social. Não somos mulheres por opção, mulher é o nome de um corpo indignado, forjado sob fogo. A mulher é o lugar específico ao qual o patriarcado e todos os outros sistemas de opressão nos condenaram. Nossa política feminista não é, portanto, reivindicativa, nem de reconhecimento. Trabalhamos diariamente para enfrentar as cadeias internas e externas que nos prendem nos lugares que a rede de poder nos dispõe. Estamos em processo de nos curar de todo o patriarcado e das razões binárias, essencialistas e hegemônicas que carregamos dentro de nós. Partimos de nossos corpos que são nossos territórios políticos para nos envolvermos nos processos de descolonização e alertamos que a colonização não tem apenas a ver com a presença do invasor nas terras de Abya Yala, mas também com a internalização do mestre e suas lógicas de compreensão do mundo.

Nosso feminismo acredita na construção do movimento, enfia os pés na lama até que ela não nos deixa mais respirar. Sob a firmeza de nossas convicções encontramos quem, como nós, quer mudar o mundo e quem ainda não encontrou suas próprias forças para embarcar nessa mudança. Também queremos alcançá-las e transmitir-lhes nossas maiores esperanças. O feminismo autônomo não se encerra em si mesmo, ele não pode se retirar e se isolar alegando uma pureza que não existe. A coragem e a força das nossas convicções estão em jogo na nossa ousadia, na nossa capacidade constante de reconstrução e na nossa irreverência. Não estamos em todos os espaços, existem lugares tão contaminados que não deixam brechas para a ação… mas as ruas são nossas! O bairro, a comuna, a praça, os corredores da universidade, o coletivo… são nossos! Lá vamos nós com nossas persistências e fraquezas… com nossos anseios. Não estamos nem dentro nem fora. Somos fronteira, somos ex-cêntricas!

Propomos, difundimos e construímos o mundo que queremos, conhecendo a nós mesmas e assumindo parte dele com responsabilidade. Sabemos que as instituições nos atravessam, que o exterior não é um lugar, tudo é “Dentro”. Apenas fazemos do espaço marginal ao qual fomos confinadas um lugar de experimentação e fuga, fazemos da periferia a festa da imaginação, da criatividade, do prazer, do encontro… O riso é a nossa melhor ferramenta. Corremos o risco de viver embriagadas, imaginando outras formas possíveis de habitar o mundo, enquanto nosso riso atira dardos contra os regimes da heterossexualidade compulsória, da família monogâmica, do patriarcado etnocêntrico, racista e capitalista. Erramos, caímos e nos levantamos; com a dor de aprender, forjamos a felicidade que construímos e habitamos. Nós nos reconhecemos sempre em processo, sempre em trânsito. Nos encontramos com as outras e com os outros, fazemos articulações estratégicas e conjunturais, sempre atentas aos nossos princípios e com a nossa ética como guia, sabemos o limite entre a tentativa de estabelecer alianças e a cooptação. Como fugitivas da lógica hegemônica, sabemos muito bem quando é hora de escapulir pelas fendas de nossos sonhos. Damos cinco passos e parece que voltamos ao mesmo lugar… nossas pegadas traçam a espiral que nossas antepassadas já traçavam desde tempos remotos. Não há nada de novo, mas quanta beleza! Quanta beleza apenas vista, apenas imaginada, apenas colocada ali pelos nossos passos.

O mundo que queremos é aquele que fazemos a cada dia quando compartilhamos tarefas e nossos dons, quando reconhecemos a maravilha de cada uma e contribuímos para o seu crescimento e transbordamento. O mundo que fazemos reconhece autoridade na capacidade de autoria de cada uma; a concessão de autoridade é uma via de mão dupla. Podemos reconhecer nas mães um acúmulo de tesouros que são a base que garante o fazer da nova geração; mas também reconhecemos a novidade de cada novo ser, de cada nova jornada. O frescor, a vitalidade é uma virtude que nos lembra e nos contagia as que nascem. A menina nos lembra do que esquecemos. A memória não se acumula linearmente e cada nova geração e cada nova sujeita, uma a uma, tem o seu destino nas mãos e já saberá interpretar as experiências e criações anteriores a ela, já saberá utilizá-las para interpretar o seu presente, ouvirá as histórias e com elas vão sonhar e construir outros mundos. Reconhecerá muitas mães, muitos arquivos, e sua autonomia a levará a construir algo novo com tudo isso, algo que será em parte nosso, mas que nos ultrapassa. Cada filha, cada nova geração deve aprender a trazer o mundo ao mundo. Grata por seguir seu próprio caminho; reconhecendo-se, ela sabe que também pode contribuir com o que lhe foi dado.

Do feminismo autônomo que bebemos, aprendemos que política não é administração ou redistribuição de privilégios. Quando a política se torna tráfico de influência, concessão de favores, gestão de perdões, permissões, uma corrida pelo bem-estar pessoal e do próprio grupo… perde todo o seu significado e valor. A tecnocracia de gênero é uma invenção dos Estados e das instâncias supraestatais que os determinam; a carreira de administração de gênero é o que as instituições fazem com nossas lutas. Fazer funcionar bem o Estado não é da nossa competência! Nós construímos comunidade, construímos movimento. O Estado tem um papel a cumprir, nós temos outro: combatê-lo. O Estado tem a função de administrar o que foi instituído, nós como movimento somos a garantia da desestabilização permanente de suas estruturas viciadas. Se a institucionalização é inevitável, nosso papel é indispensável para o deslocamento e o surgimento de fissuras e vias de escape para o desempenho do poder. Sem nossa ação não há saída possível, não há história. Compreendendo isso, a autonomia feminista faz uma opção pela subalternidade, pela contra-hegemonia. Nossos sonhos não cabem neste mundo, nem nas lógicas que o sustentam.

Não queremos humanizar o desumano, não pretendemos fazer “o possível” porque “o possível” há muito mostrou que é injusto, insuficiente e reprodutor do mesmo. As vidas que construímos são um perigo para a norma compulsiva e necessária. Não queremos ser “incluídas”. Rejeitamos a norma porque é uma doença social e política que mata sonhos e revoluções.

Somos a escuridão e a barbárie do projeto moderno, somos uma fonte de energia alternativa, amamos a noite e a utilizamos para rearticular a razão, a paixão e a poesia, há muito separadas. Nossos corações batem no ritmo do universo, estamos aqui, somos nossos passos, somos o que fazemos com o que eles nos fizeram. Nossos corpos não nos condenam, são fruto dos experimentos da razão, foram açoitados, colonizados, empobrecidos, racializados, produzidos, heterossexualizados… mas ai, nossa vontade, como nosso amor, é grande.

Uma energia inesgotável nos conforma, nos restaura, nos protege. A respiração vem desde os tempos antigos, a respiração vem do encontro com outras. Somos passado, presente e futuro, tudo num mesmo e amplo espaço, esse espaço em permanente construção, em permanente mudança onde agimos, criamos e ativamos nossos sonhos de fazer esse outro mundo.


NT:
1. Termo cunhado pelas feministas italianas da diferença que designa uma prática de construção de confiança e cuidado mútuo entre mulheres.
2. Coletivo feminista chileno que teve entre suas fundadoras Margarita Pisano e outras feministas radicais da diferença.


Por: Feministas Autónomas, para o Encuentro Feminista Autónomo, Cidade do México, 2009.