A revolução das mulheres no século XXI
A revolução das mulheres no século XXI

Na ocasião do dia internacional da mulher, 8 de março, Meral Zin Çiçek, do REPAK, Gabinete de Relações das Mulheres Curdas, falou sobre as perspectivas do Movimento das Mulheres Curdas e suas expectativas em relação ao movimento internacional de solidariedade. A entrevista foi ligeiramente editada para maior clareza, sem alterar as ideias da entrevistada.

1) Que tipo de solidariedade o Movimento das Mulheres Curdas espera das mulheres em todo o mundo?

As mulheres de todo o mundo estão passando por um período histórico, porque as condições e necessidades de hoje possibilitam a realização da libertação das mulheres no século XXI. Nosso líder Abdullah Öcalan disse em seu discurso em 8 de março de 1998 que o século XIX foi o século dos partidos burgueses, o século XX foi o século dos partidos operários e o século XXI será o século dos partidos que colocam a libertação das mulheres no seu âmago. Podemos ver essa realidade se tornando cada vez mais clara hoje.

A libertação das mulheres determina a libertação de toda a sociedade e de todas as partes da vida.

As contradições entre as mulheres e o sistema dominante ou o sistema capitalista patriarcal estão aumentando, e isso leva a um aumento da resistência através da qual as mulheres levantam mais suas vozes contra o sistema.

Você pode ver que esse também é o caso nos centros do mundo capitalista. Por exemplo, este ano na Europa, em muitos países, as mulheres entraram em greve. Este é um desenvolvimento muito importante se você comparar com a situação das mulheres europeias há alguns anos atrás. Em lugares como os EUA, muitas vezes vistos como o centro do capitalismo, milhões de mulheres estão levantando suas vozes contra Trump, dizendo que ele não é seu representante. As mulheres negras estão se organizando incansavelmente. Portanto, é um fenômeno que a luta das mulheres pela equidade está aumentando em todo o mundo.

Mas o principal problema é que precisamos transformar esse grande potencial em uma forma organizada de luta. Temos milhões de mulheres em todo o mundo defendendo sua libertação contra o patriarcado, o sexismo, o capitalismo, a exploração e a opressão de diversas formas, mas essa resistência não está muito bem organizada. Diríamos que este é o principal problema. Precisamos desenvolver alguns mecanismos comuns, estratégias comuns, objetivos comuns, táticas comuns, para nos encontrarmos também durante as ações. Precisamos desenvolver um novo tipo de cultura política de mulheres. E também uma nova compreensão da irmandade. Para isso, podemos nos referir ao conceito de solidariedade.

Também pensamos que é necessário desenvolver ainda mais a noção de solidariedade e definir o que entendemos por isso. Muitas vezes, é entendida no contexto da luta de classes em um estilo muito marxista-leninista, como na solidariedade internacional dos trabalhadores ou, por exemplo, como a unidade dos proletários do mundo, como fraternidade e irmandade baseadas na classe. Esse entendimento de solidariedade sobre luta era comum. Mas, na prática, não tem sido assim. Uma parte geralmente acredita que está em uma posição melhor e tem a oportunidade de mostrar solidariedade com outras pessoas em situações menos boas. Isso está criando um tipo de hierarquia, reproduzindo certas relações de poder.

Acreditamos que no mundo de hoje nenhuma mulher tem o luxo de dizer: “Estou em uma situação melhor que as outras”.

Estamos todas sob ataque do sistema patriarcal, porque esse sistema está em crise e tenta escapar disso aumentando ou concentrando seus ataques às mulheres. No Curdistão, somos confrontadas com as formas mais brutais, as expressões mais cruéis do patriarcado, seja o fascismo estatal turco ou o ISIS. Temos que lutar juntas, temos que unir nossas forças para podermos superar o sistema.

Assim, acreditamos que é necessário repensar o conceito de solidariedade e internacionalismo, especialmente quando se trata de mulheres. Temos que nos aproximar da noção de luta comum para nos defender e não apenas mostrar solidariedade umas às outras.

2) As mulheres estão liderando a revolução em Rojava. Quase 7 anos após seu início, o que o movimento das mulheres aprendeu com sua experiência em Rojava?

Nós aprendemos muitas coisas. Ainda é um processo em andamento, e não é livre de problemas. Não podemos ver com óculos cor de rosa. Quando falamos sobre o papel principal das mulheres na revolução, isso não significa que apenas aumentamos os números. Não é uma questão de quantidade, o que importa é a qualidade. Trata-se de transformar papéis e missões.

Talvez as mulheres em Rojava não estejam liderando em termos de números. Mas se você observar a qualidade de seu engajamento, elas estão envolvidas em um processo de liderança, porque estão dando ao processo revolucionário uma característica feminina (de fêmea). As mulheres estão no centro de todos os desenvolvimentos. Elas estão participando e são representadas de maneira igual em todos os processos de tomada de decisão.

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Mas isso não é feito apenas por esforços individuais. Trata-se realmente de representar a vontade coletiva organizada do movimento de mulheres. Eu acho que essa é uma questão muito importante. Você não é forte como um só indivíduo. Mesmo se, como pessoa, tiver poderes, isso acontece porque faço parte de uma força autônoma organizada. Eu acho que essa é a principal lição da revolução de Rojava para a nossas irmãs em todo o mundo. Não pode haver libertação individual. Deve ser sempre um processo coletivo e deve haver uma dialética entre libertação individual e social. Eu acho que a revolução de Rojava está mostrando isso para o mundo inteiro.

Essas mulheres, que participam de estruturas mistas de governança, autodefesa, educação e todas as outras partes da vida, são ao mesmo tempo membros naturais do movimento de mulheres e também foram escolhidas pelo movimento de mulheres. Isso significa que o movimento de mulheres está decidindo sobre todas as mulheres candidatas às eleições ou que participam de estruturas mistas.

Assim, por um lado, as mulheres estão se organizando autonomamente e, por outro, estão participando igualmente de todos os desenvolvimentos e estruturas gerais. Isso requer um nível muito profundo da consciência das mulheres, da consciência de gênero. E isso não foi realizado dentro de um dia. Este foi um processo muito longo, que ainda está em andamento.

Sempre há uma reflexão muito forte entre desenvolvimentos práticos, experiências práticas e teoria. Você está refletindo o que está acontecendo na prática e está tentando desenvolver alguma tese ideológica a partir disso. E então você desenvolve sua ideologia e implementa soluções práticas. Há cordas paralelas entre teoria e prática o tempo todo. Ao desenvolver essa idéia, estamos sempre tirando novas lições de Rojava.

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Não é que, durante 40 anos, secretamente, o movimento tenha educado ou capacitado mulheres, esperando por esse momento revolucionário e, quando chegou o momento, colocou todas as mulheres para fora, dizendo-lhes para ir e desempenhar seu papel. Não é assim que funciona. Essas pessoas não são pessoas perfeitas, não são militantes perfeitas, revolucionárias. Elas estão aprendendo fazendo, elas também refletem sobre si mesmas o tempo todo.

Por isso, é importante que outras pessoas saibam que somos confrontadas com muitos problemas. Criar a própria sociedade comunalista, especialmente no Oriente Médio e especialmente na sociedade curda, que é uma sociedade oprimida e escravizada que não toma decisões em seu próprio nome há muito tempo… Sair dessa sociedade para criar um sistema comunalista é um trabalho muito duro.

Mas o importante não são os problemas em si, porque todos os tipos de problemas podem ocorrer durante uma revolução. O ponto importante é como você lida com eles. Quais são suas soluções, como está sua atitude em relação a esses problemas? Você está realmente resolvendo o problema ou está aprofundando? Eu acho que todo o processo político em Rojava, apesar de suas dificuldades, está se movendo, porque também está desenvolvendo sua compreensão de encontrar soluções para problemas.

É disso que se trata a revolução: encontrar soluções para os problemas da sociedade.

3) Sobre Rojava… Para o movimento de mulheres, quais seriam as linhas vermelhas durante as negociações com o regime ou outras potências?

O objetivo dessas negociações seria, por um lado, criar um status para o povo curdo e, por outro, criar um sistema democrático para toda a Síria, porque a questão realmente não é desenvolver um status apenas para os curdos. Podemos vê-lo aqui agora [no sul do Curdistão]. Depois de 2003, eles criaram um status internacionalmente reconhecido aqui para a região curda, mas sem criar paralelamente um sistema democrático para todo o Iraque. Portanto, ainda existem relações muito problemáticas entre os curdos e Bagdá.

Você não pode criar soluções na forma de ilhas. Nossa fórmula é «Rojava livre, Síria democrática». E isso é o mesmo para todas as partes do Curdistão. Deve ser um processo. Sem isso, não seria capaz de proteger nenhum dos ganhos. Foi o que vimos aqui no Curdistão iraquiano após o referendo. Temos que tirar lições dessas experiências.

Para a Síria, a questão não é obter a aprovação de Damasco, dizendo “Ok, você pode ter seu próprio governo lá”, não se trata apenas de criar uma autonomia para os curdos. Temos que usar esse processo, essas negociações para a democratização de todo o Estado, para criar uma Síria democrática, onde todas as pessoas que vivem dentro dessas fronteiras sejam capazes de viver juntas e se governar, para que existências autônomas se reúnam num guarda-chuva, que pode ser algo como uma entidade maior que protege essas identidades diferentes. Ao fazer isso, você avança para encontrar uma solução.

O que seriam linhas vermelhas? A vontade do povo, por exemplo. Não há retorno possível agora. Como as pessoas que vivem no norte da Síria, que agora estão se governando, podem aceitar o retorno ao status quo de antes de 2012? Isso parece impossível não apenas para os curdos, mas também para todas as outras comunidades que vivem nessa região. Então, eu diria que a linha vermelha é realmente autonomia.

Autonomia é a regra do povo, é a forma ou expressão organizada da vontade do povo. Não sou capaz de falar em nome de todas as pessoas, mas, teoricamente, pode haver coexistência se você tiver maneiras de discutir, encontrar e criar soluções. O importante é que o povo possa se governar dentro de um sistema democrático. Isso seria um modelo para toda a região, porque proporcionaria uma oportunidade de superar o nacionalismo e o sectarismo.

4) Quais são as suas perspectivas para o movimento das mulheres?

Nossa perspectiva é a primeira a fortalecer nossa organização autônoma, a fim de poder desempenhar nosso papel na revolução. O que temos é algo como uma revolução dentro da revolução. Quando eu disse que a revolução das mulheres estava determinando a libertação de toda a sociedade, o mesmo se aplica às relações entre o movimento das mulheres e o movimento geral. Se o movimento das mulheres é forte, o movimento geral também é forte. Se for fraco, toda a revolução será fraca. É assim que é.

Por isso, para nós é muito importante, como movimento de mulheres, fortalecer-nos ideologicamente, praticamente, politicamente… aprofundar o nível de organização autônoma, conhecimento e consciência, para poder desempenhar nosso papel histórico dentro de nosso movimento de libertação nacional e também universalmente.

Achamos que temos algum tipo de dever histórico em relação a nossas irmãs no mundo, que temos responsabilidades em relação a elas. Que também temos um papel a desempenhar em alguns aspectos. Temos que cumprir essas responsabilidades. Não tratamos o Curdistão como uma ilha, dizendo que não nos importamos com o que está acontecendo ao nosso redor. Temos que cumprir nosso papel no Oriente Médio e, ao fazê-lo, para as mulheres no mundo.

Agora, nas quatro partes do Curdistão, é importante fortalecer o papel de liderança e participação das mulheres na revolução, não apenas em Rojava, mas também no norte do Curdistão, na luta contra o fascismo. Uma das principais características do fascismo é que ele é inimigo das mulheres. Se observarmos o que aconteceu nos anos 30 na Espanha, Alemanha e Itália, temos exemplos muito concretos de como a primeira coisa que o fascismo fez foi forçar as mulheres a voltarem aos seus papéis tradicionais. Eles trataram as mulheres como máquinas incubadoras para criar novos soldados fascistas para o regime. Você encontra misoginia na própria natureza do fascismo.

Por causa disso, na Turquia e no norte do Curdistão hoje, a força mais importante e dinâmica é o movimento das mulheres. Não é apenas o movimento das mulheres curdas. O movimento feminista turco também é muito forte. Mas agora é importante nos unirmos, formar uma frente de mulheres para poder derrotar o regime fascista que é realmente anti-mulher.

No sul do Curdistão (Iraque), estamos passando por uma profunda crise. É muito importante fortalecer as mulheres aqui, porque se você olhar para as raízes da própria crise, verá que foi feita por homens. Infelizmente, aqui não temos uma representação forte das mulheres na política. Por exemplo, houve muitas conversações políticas na semana passada para formar o governo. Mas você não via uma mulher à mesa. Eram apenas homens. O estilo da política no sul do Curdistão é muito masculino e não encontra soluções para os problemas. De fato, esse modo de política os está afundando ainda mais.

Acreditamos que aqui a mudança só é possível através do desenvolvimento de uma cultura democrática da política. Não achamos que isso possa ser feito por homens. Isso pode ser feito apenas por mulheres, apenas pelos excluídos, pelos marginalizados.

Os problemas profundamente enraizados que estamos enfrentando aqui também estão presentes em geral no Iraque, que é um estado não-natural, que não reflete as realidades culturais, étnicas ou religiosas da região e, portanto, sempre produz novas crises, conflitos e contradições entre seitas, religiões e etnias. E se houver muita crise, é muito fácil para as forças externas governar, controlar toda a região, porque é um inferno.

Portanto, para superar essa situação, que já se repete há um século, é muito importante estabelecer e fortalecer a posição de liderança das mulheres. Esta é a principal necessidade aqui. Eu diria o mesmo para o Irã e o Curdistão Oriental, porque há um processo muito histórico por lá também. Existem muitas oportunidades. A última vez que as mulheres no Irã puderam comemorar o dia 8 de março foi há 40 anos atrás, em 1979. Muitas mulheres estão na prisão e estão enfrentando pena de morte hoje. É uma situação muito perigosa por lá. No entanto, ainda vemos que mais e mais mulheres estão levantando a voz, protestando e expressando que não estão aceitando esse sistema. Isso dá esperança.

Evidentemente, temos desenvolvimentos importantes em todas as partes do Curdistão. Os estados que ocupam diferentes partes do Curdistão estão colocando riscos muito grandes em nossas vidas, porque esses regimes fascistas dominados por homens querem garantir suas posições de poder. Mas você vê em todos os lugares que as mulheres são a principal esperança, determinando a luta revolucionária em todas as partes. Por isso, eu diria que, no dia 8 de março deste ano, também temos muitos motivos para ter esperança.

5) Alguém poderia dizer que o movimento das mulheres está de alguma forma reparando que toda a organização está aderindo à teoria de Öcalan?

Por que a libertação das mulheres é tão central para o PKK? Isso não começou com a mudança de paradigma. No final da década de 1980, Abdullah Öcalan começou a desenvolver sua própria análise sobre a questão do patriarcado. Uma das principais dinâmicas que levaram a isso foi seu próprio casamento com Fatma, que era o nome de guerra dela. Ela foi uma membro fundadora do PKK, que deixou o movimento em 1986. Ela foi enviada para a Europa após o 3º congresso do PKK para organizar o movimento lá. Algum tempo depois de lá chegar, ela deixou o movimento. Desde então, não houve contato com ela. Não era um casamento normal, era cheio de brigas. Foi um casamento de amor também. Por um longo tempo, foi descrito como algo mais, como se ela tivesse sido uma agente enviada pelo estado turco para controlar o PKK e coisas assim.

Mais tarde, Öcalan escreveu sobre isso e disse que realmente a amava, mas que foi uma luta muito grande e que, no final, essa luta o levou a pensar na questão da libertação das mulheres. Ele chegou lá vindo de sua própria experiência prática. Tudo começou no final dos anos 80. Então, no início dos anos 90, quando a União Soviética entrou em colapso, ele colocou a questão das mulheres cada vez mais no centro do socialismo, atribuindo características femininas ao socialismo. Ele também estava fornecendo respostas para proteger a herança do socialismo dessa maneira.

Enquanto criticava Marx, ele também estava dizendo que não o estava rejeitando, mas tentando dar novos passos adiante. Nos anos 90, após o colapso do sistema soviético, ele desenvolveu muitas análises sobre o socialismo democrático, sobre por que é importante liderar uma luta democrática dentro do movimento revolucionário e por que a luta revolucionária deve ser democratizada. Você não pode ser socialista se não for democrata. Ele analisou o colapso da União Soviética como tendo falta de democracia. Havia uma falta de liberdade, não havia uma perspectiva particular das mulheres. Foi assim que ele chegou à mudança de paradigma.

Mais tarde, pode-se dizer 2005 ou até antes, desde que o livro «Em defesa de um povo» foi publicado em 2004. Mas, em 2005, aconteceu o congresso após o qual o próprio movimento começou a se organizar de acordo com o Confederalismo Democrático. Isso foi tomado como uma estrutura para a organização. A mudança de paradigma começou mais cedo, mas este é o ponto em que eles começaram a colocá-la em prática.

Foi nessa época que todos os militantes do PKK estavam lendo nova literatura. Abdullah Öcalan se comunicava com os militantes através de suas reuniões com seus advogados, ele estava dizendo a eles quais livros estava lendo e recomendava que outras pessoas também os devessem ler. Lembro que ele mencionou a «Ecologia da liberdade» de Murray Bookchin em 2002 ou 2003. Foi quando as pessoas começaram a ler sobre ecologia e coisas assim.

Por que podemos chamar o movimento de mulheres de protetor da ideologia? O próprio paradigma coloca a libertação das mulheres em seu centro. Como eu disse, isso só pode ser percebido pelo papel central das mulheres. Elas devem ser os sujeitos do processo revolucionário. Elas estão se organizando também de acordo com esse paradigma. E elas também são aquelas que estão percebendo esse paradigma por si mesmas. Isso lhes dá esse papel histórico. E esse sempre foi o caso, porque elas são oprimidos, elas são marginalizados. Elas estão lutando junto com seus companheiros, mas no final das contas, são mulheres e isso torna as coisas diferentes para elas, dando-lhes um papel especial na revolução.

6) Vocês estão em contato com outras organizações de mulheres no Oriente Médio? Elas aprenderam com vocês, vocês aprenderam com elas?

Sim, desde o começo. Também é importante ter em mente que o PKK pôde iniciar sua luta de guerrilha por causa da solidariedade das pessoas e do internacionalismo no Oriente Médio. Em 1979, quando Abdullah Öcalan cruzou a fronteira com Kobane com outra identificação e de lá foi para a Síria para fazer contato com movimentos revolucionários libaneses e palestinos, o PKK não era conhecido na época. Muitos quadros de líderes haviam sido presos na prisão de Diyarbakir e o golpe militar turco de 12 de setembro de 1980 estava prestes a acontecer. Então, em condições tão difíceis, sem falar árabe, sem oportunidades materiais, simplesmente através da noção de solidariedade das pessoas, foi possível que eles preparassem o terreno para 15 de agosto de 1984, quando começaram a luta de guerrilha. Isso foi possível graças a movimentos revolucionários no Oriente Médio.

Foi assim que eles foram primeiro aos campos militares do movimento de libertação palestino. Mais tarde, eles foram capazes de construir seus próprios campos, onde estavam fornecendo treinamento militar, político e ideológico, educando os quadros do movimento. Eles não tinham dinheiro nos bolsos. Muitos militantes do PKK morreram também na luta contra os ataques israelenses, em solidariedade com os palestinos. É daí que eles vêm, aconteceu há 40 anos.

Desde o início, o PKK sempre foi um movimento do Oriente Médio com uma forte compreensão do internacionalismo, o que impediu que ele se tornasse um movimento nacionalista. Foi assim por 40 anos. Não é que o movimento, o movimento geral ou o movimento das mulheres, só agora esteja estabelecendo relacionamentos ou que isso tenha começado após a revolução de Rojava, depois de Kobane. Sempre houve sedes ou representantes de acordo com as condições e oportunidades existentes, ou quaisquer outras ferramentas de cooperação, para uma luta comum de solidariedade.

Mas, para o movimento das mulheres curdas, é especialmente muito importante melhorar seus relacionamentos com o movimento de mulheres no Oriente Médio. Ou melhor, digamos que as organizações de mulheres, porque se olharmos para a situação de hoje, não podemos falar sobre os movimentos de outras grandes mulheres. Essa também é uma questão que precisamos analisar — por que é assim? No entanto, vemos muitas lutas de mulheres no Líbano, Palestina, Egito, onde as mulheres têm desempenhado um papel muito importante contra o regime de Moubarak, embora tenham enfrentado agressões sexuais, ataques e assim por diante. Além disso, lugares como a Tunísia, onde as mulheres foram capazes de muitos ganhos. Mencionei o Irã e o Afeganistão anteriormente, onde nossas irmãs lá, apesar de todos os ataques dos senhores da guerra e imperialistas, estão se organizando. Portanto, existe um potencial muito grande.

Para o movimento curdo, a história sempre foi um elemento muito importante; e dizemos que o Oriente Médio já foi o terreno para a primeira revolução social, que é a revolução neolítica. Pela primeira vez na história da humanidade, as pessoas começaram a se estabelecer, a viver em novas formas de sociedade. Isso também foi liderado por mulheres, na altura. O que estamos falando agora é sobre preparar o terreno para uma segunda grande revolução das mulheres no Oriente Médio, porque pensamos que esta é a única possibilidade de encontrar uma solução para acabar com a grande crise no Oriente Médio, contra todas as guerras e conflitos que estão em andamento e criar verdadeira democracia e liberdade.

Isso só pode ser feito através da revolução das mulheres e, portanto, tem uma importância estratégica para nós — não pragmática, não estamos olhando de maneira pragmática –, mas é um grande objetivo estratégico melhorar nossas relações com nossas irmãs aqui no Oriente Médio. E, ao fazê-lo, também devemos nos engajar em uma luta muito eficaz contra a modernidade capitalista.

Sempre acreditamos que isso só pode ser feito com o papel de liderança das mulheres porque a modernidade capitalista, ou, digamos, o sistema capitalista, está tentando se organizar no Oriente Médio, especialmente nos últimos cem anos, desde a Primeira Guerra Mundial. O que temos hoje não é natural. Foi criado por essas forças imperialistas. Esses estados existentes não se encaixam nas realidades daqui. Eles estão reproduzindo continuamente conflitos, guerras, crises em benefício do sistema desses estados capitalistas.

Para isso, o sistema está usando três ferramentas principais: nacionalismo ou chauvinismo, sectarismo e sexismo. São questões que realmente dividem as pessoas, impedindo-as de se unirem. Essas são ferramentas com as quais você pode dividir pessoas, realmente. A realidade curda é dividida através do nacionalismo, por exemplo. Se realmente queremos encontrar uma solução para os problemas que temos aqui, temos que superar o nacionalismo, o sectarismo e o sexismo. E isso só pode ser feito por mulheres.

Portanto, é muito importante para nós criar algo como uma união de mulheres do Oriente Médio, não ao longo de linhas nacionalistas, étnicas ou sectárias, mas principalmente como mulheres. Temos mais razões para nos unirmos como mulheres.

7) Alguma palavra final?

Como você vem da França, direi que nosso entendimento da solidariedade internacional também deve incluir uma busca por mais ideias. Precisamos estabelecer alguns mecanismos com os quais possamos desenvolver estratégias, táticas ou, digamos, também uma linguagem comum, uma cultura comum. Quais são os nossos princípios como mulheres? Com base em quais princípios podemos nos unir? Coisas assim. Temos a necessidade de produção teórica e intelectual — e isso deve ser feito com frequência.

Esta é uma questão importante para as mulheres na França e acho que há uma grande lacuna no momento. Talvez eu esteja errada, mas, olhando a situação atual, parece haver uma desconexão entre um passado mais radical e o que vemos no momento. Então, acho que para as pessoas na França é muito importante repensar alguns conceitos como socialismo — o que queremos dizer quando falamos de internacionalismo? O que é feminismo, qual é a libertação das mulheres? O que é liberalismo? E a ideologia da classe média? Ou, de maneira mais geral, entender as coisas que estão tirando os aspectos radicais de nossas lutas e transformando nossas lutas em algo muito liberal. Eu acho que algo assim pode ter acontecido na França, se você observar o potencial que a França tem — e eu estou falando sobre as pessoas que estão lutando, não sobre o Estado. Um potencial tão grande e, no entanto, uma posição tão fraca agora. Parece ser uma contradição para nós, considerando a existência de uma tradição tão importante, uma herança tão valiosa, incluindo a Comuna de Paris. Hoje, as pessoas devem proteger os movimentos revolucionários em todo o mundo. É crucial proteger as lutas revolucionárias e sua herança dentro da França contra ataques ideológicos e políticos, que vêm ocorrendo especialmente após a eleição de Macron. Eu acho que muitas coisas estão mudando. Às vezes, o sistema capitalista lança ataques de uma maneira muito sutil. Muitas vezes, só percebemos as coisas depois que elas aconteceram. Eu acho que porque a sociedade da França tem sido radical em muitas questões, é importante proteger essa cultura, defendê-la contra todos os tipos de ataques e, especialmente, ataques ideológicos que estão absorvendo nossa consciência.

Se eu voltar à sua primeira pergunta, quando você perguntar o que as pessoas podem fazer se quiserem mostrar solidariedade, acho que antes de tudo elas devem proteger sua própria herança revolucionária. Elas deveriam defender sua história revolucionária primeiro porque, se a estão defendendo na França, estão defendendo a revolução em Rojava ao mesmo tempo. Se o movimento das mulheres radicais está protegendo seus 250 anos de luta pela libertação das mulheres, isso significa que está ao mesmo tempo dando a mais valiosa contribuição à nossa luta e à luta internacional das mulheres. Não é tanto que tenhamos que sair e mostrar apoio. Temos que fazer isso de maneira dialética. Defendendo esses legados em casa, mas também defendendo-os do lado de fora. Se fizermos essas coisas juntas, acho que demonstramos a solidariedade do século XXI.

Se olharmos para a revolução francesa, para a marcha das mulheres ao longo da história — não apenas Olympe de Gouges, mas também muitas outras mulheres radicais que foram mortas por causa de suas posições radicais, mais tarde, o papel de liderança das mulheres na Comuna de Paris — podemos ver que isso constitui uma grande herança. Sabemos que as mulheres também sempre lutaram contra seus companheiros homens porque sabemos que dentro do movimento socialista francês e da esquerda em geral, as abordagens patriarcais sempre foram muito fortes. Talvez eles não acreditem nisso, mas acho que essa também foi uma razão importante para o fracasso das revoluções: as abordagens patriarcais dos chamados socialistas ou revolucionários masculinos em relação a suas camaradas. Devemos tirar essas lições da história e acho que, ao fazê-lo, os movimentos na França de hoje poderão desempenhar um papel importante na luta internacional de libertação das mulheres.

Visite o website para conhecer a campanha “Women Defend Rojava” (Mulheres Defendem Rojava) e saber como apoiar: https://womendefendrojava.net/

Originalmente publicado na Komun Academy em Março 2019
Tradução: Aline Rossi | Feminismo Com Classe | Youtube | Instagram

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