A revolução será feminina
O movimento pelos direitos das mulheres está se reorganizando, depois de algumas décadas relativamente adormecido.Tivemos um período de descanso aparente na década de 1980, quando muitas pessoas quebravam estereótipos de gênero e as mulheres passaram a ter maior visibilidade no mercado de trabalho. Mas 2020 trouxe um revés imprevisto: uma pandemia que, de muitas formas, está contribuindo para uma regressão nos direitos femininos.
A evidência pode ser vista através do número alarmante de mortes maternas no Brasil — o país tem o número mais alto de morte materna relacionadas ao Covid do mundo inteiro: a cada dez mulheres grávidas que perderam a vida pelo coronavírus, oito eram brasileiras. Enquanto isso, estupro e feminicídio foram os únicos crimes que cresceram durante as quarentenas para estancar a contaminação do coronavírus.
Na Polônia, sob um governo conservador, foi proibida uma das únicas três formas de aborto legal no país: aborto por má formação de feto. Há anos que o direito ao aborto vem sendo questionado na Polônia, mas foi durante a pandemia, que não permite grandes aglomerações para protestos durante a quarentena, que a proibição veio.
Times de futebol feminino britânicos que foram urgidos a parar com os treinos para que os times masculinos pudessem treinar. Ou meninas que deixarão de ir à escola para que os meninos possam frequentar respeitando o distanciamento. Ou terão de abandonar os estudos.
Sob essas perspectiva, é preciso olhar todo o quadro que se apresenta diante dos nossos olhos: a opressão feminina não só existe, como aumentou e piorou. De que forma o ativismo pode fazer a diferença?
Campanhas, petições, carta aberta
O ativismo online pode ser uma resposta rápida à essa questão: campanhas relâmpago por uma causa, como foi o caso das hashtags #GravidezAosDezMata (pela menina de dez anos do Espírito Santo que precisou de um aborto), #JustiçaPorMariFerrer (blogger que foi drogada e estuprada em festa privada) ou #JustiçaPorAnaBeatriz (menina indígena de cinco anos que foi estuprada e morta). Mas, para que tenha alcance, é preciso organizar.
Fale e escute outras mulheres
O ativismo pode começar dentro de casa. Depois, com as amigas. Vizinhas. Colegas de turma na escola. Vizinhança. O grupo de mães. As colegas de trabalho. O sindicato. O ativismo vai começar de algum lugar, então é natural que comece à sua volta. Pode começar procurando por mais pessoas que acreditem que as mulheres precisam fincar o pé quantos aos seus direitos. De qualquer forma, a união faz a força. Portanto, formar um grupo é um passo importante para começar a mudança. Foi o que um grupo de adolescentes, Sementes Coletiva, fez: criaram um grupo para estudar o feminismo e produzir conteúdo sob a perspectiva de jovens mulheres navegando em uma sociedade patriarcal. 2020 também viu uma explosão de coletivas feministas pelo Brasil afora. A QG Feminista fez uma master list de grupos e organizações do mundo inteiro com presença no Instagram.
Conheça o assunto
Quando se trata de uma causa, é de máxima importância saber quais são as principais questões envolvidas, a origem do problema e de que formas é possível combater. No caso da opressão feminina, existe a evidência diária que cada uma de nós experiencia na pele: o constante assédio sexual e moral no dia a dia, os baixos salários, a violência obstétrica, a baixa representação política, a negligência na medicina, a objectificação massiva do corpo feminino. Mesmo assim, existe uma narrativa corrente de que as mulheres não são mais oprimidas porque “já podem votar”, “usar calças” e “casar com quem quiserem”. Então é preciso um olhar mais a fundo na questão, que só é corrigido com grupos de estudos para a escuta de mulheres e para a leitura e discussão da teoria feminista.
Formar multiplicadores
Parece coaching ou pirâmide, mas sem multiplicadores não é possível fazer uma campanha bem-sucedida. Formar multiplicadores, como microativistas e influenciadores (blogueiras, youtubers), não significa criar celebridades. Significa incentivar e treinar mulheres para que falem da causa com outras mulheres no seu dia a dia, e incentivar criadores de conteúdo e lobbyistas a promover a causa para que ela faça diferença. Um exemplo disse é uma futura Frente Feminista que está se formando no Brasil, que deve juntar organizadoras de diversas coletivas nacionais em um grupo unificado. Sem a proliferação de coletivas feministas em 2020, e cada membro dessas coletivas, dificilmente haveria uma frente unificada/nacional também. Palestras acessíveis sobre feminismo em vídeo chamada, grupos de estudos online, todas são iniciativas válidas para compartilhar o conhecimento e formar multiplicadores, que por sua vez poderão ter os recursos para continuar a passar o conteúdo adiante e alavancar a conscientização para as questões feministas mais prementes.
Entenda a política local, nacional e internacional, nessa ordem
Comece com seu bairro, sua vizinhança. Há grupos de apoio à população vulnerável, associação de moradores? Proponha conversas, debates. Se não, procure abrir um grupo. Interagir com grupos de outros bairros e procurar por pontos em comum vai fortalecer o movimento. Nos próximos casos de machismo que acontecerem, a vítima não estará mais sozinha, e ainda poderá contar com um grupo com vários membros para protestar.
Sua cidade tem filial de um partido político? O partido político ao qual você é filiado possui uma ala ou conselho feminista? Procure filiação ou adesão. Esses grupos estão normalmente conectados aos grupos nacionais e portanto o envio de informações poderá ser mais fluído, constante e abrangente. Fique atenta às candidatas que propõe pautas que avancem os direitos das mulheres, e busque apoiá-las.
No campo internacional, é importante notar que existem diversos aspectos da opressão feminina que são imutáveis. No mundo inteiro, por exemplo, a principal força de trabalho camponesa é formada por mulheres. “Entre 60 a 80% da produção de alimentos no Sul Global é feita por mulheres (50% no mundo).” Portanto, é a realidade material da mulher que as une quanto à discriminação sofrida: a exploração do seu trabalho reprodutivo e laboral. É de importância vital que seu grupo de estudos ou campanha estejam alinhados também às questões femininas atuais, como a falta extrema de autonomia corporal feminina (aborto, assistência materna e reprodutiva, desigualdade salarial, etc).
O ativismo funciona. Protestos, manifestações, campanhas e iniciativas para mitigar a desigualdade feminina são ferramentas de extrema necessidade num mundo criado pelos homens e para os homens, onde a voz feminina é apagada e desvalorizada. A mudança começa agora, com a organização de um movimento que lute por todas as mulheres, incluindo as mais vulneráveis com recorte de classe e de raça.