"Pelo fim do patriarcado": projeção em prédio durante manifestação feminista no 8 de Março de 2017 - RJ

O que temos a oferecer a outras mulheres? Me pego pensando nisso constantemente. Sabemos o que o patriarcado tem a nos oferecer: ele nos dá uma vida-farsa de proteção e longevidade, bem ou mal permite a algumas de nós, mulheres, uma vida alimentada, e uma cama para dormir. Para uma boa parte, pelo menos. Mas e o que as feministas dão? Poderia dizer: liberdade, conhecimento, saber seu lugar no mundo e questioná-lo, possibilidades de transformação, de vidas completas, de deixar de ser objeto para se tornar protagonistas de suas histórias. Das nossas próprias histórias.

Claro que tudo isso em uma jornada de insegurança, um campo que vai mexer com todas as suas estruturas, vai te desestabilizar, mostrar tudo que você poderia ter sido e não foi, porque tem uma sociedade que limita suas capacidades. Então você sentirá ódio, raiva, pode se sentir frustrada, vai colocar em dúvida todas as suas decisões “era eu ou a vontade social?”. É um processo. O processo de libertação toma tempo e nos coloca a todas bem no centro de um furacão. Pode ser aterrorizante ver todas as nossas antigas certezas caindo por terra, voando pra longe e sendo destruídas; é desesperador assistir ao caos que transforma as estruturas sólidas sobre as quais construímos nossos valores, nossas prioridades, nossas vidas. Este processo é doloroso, mas não menos necessário.

Talvez sejamos nós mulheres que mais coloquemos em cheque os conceitos de liberdade e individualidade. Afinal, não se nasce mulher, torna-se. E esse tornar-se, na verdade, é nosso processo de submissão do momento em que nascemos até nossa morte. Este processo de submissão é chamado por nós, feministas, de processo feminilizante. Se pensarmos assim, que a sociedade considera Mulher todo ser passivo de ser feminilizado, docilizado, domesticado, afirmamos, então, que não é bonito tornar-se mulher, pelo contrário, é humilhante. É desse processo de ser uma Outrice, um não-humano enjaulado num destino fisiológico, encerradas em sua função de fêmea, que Simone de Beauvoir está falando, e por isso é impossível ler seu clássico ‘O segundo sexo’ sem ficar profundamente angustiada. A feminilização nos atrofia enquanto seres humanos, retira nossa dignidade e até mesmo a possibilidade de querer reivindica-la.

Ser mulher é ser constantemente subjugada pelos homens, por outras mulheres e até por nós mesmas. Somos bem treinadas na arte de duvidar de nossas capacidades, e quem dera a gente conseguisse fugir da ideologia que nos cerca. Também somos agredidas, estupradas, violentadas e diminuídas, o tempo todo, e no mundo inteiro. Cada uma dessas são consequências derivadas da ideologia patriarcal que nos quer submissas, e depende da nossa submissão. O patriarcado se perpetua e lucra com cada processo que nos impede de pensar, nos organizar, lutar e sobreviver por nós mesmas. O patriarcado falharia, se pensássemos, nos organizássemos, lutássemos e e sobrevivêssemos por nós mesmas; e, consequentemente, por nossas iguais. Por isso, defendemos que somos uma classe em luta por sobrevivência.

Por hoje, podemos dizer que o que temos a ofertar é isso: o significado de ser mulher em nossa sociedade. Infelizmente não é nada legal. Ninguém mais sistematizou este significado como as feministas que nos precederam. Esta sempre foi e sempre será uma tarefa do feminismo. Nenhum outro grupo de militantes conseguiria ter este trabalho e, mesmo que o tomasse para si, falharia. Foi preciso, para essas mulheres, ter passado por todo o processo feminilizante da socialização feminina para afirmar o quanto ele é aprisionante e escravizante. É preciso, para cada uma de nós, realizar nossa história de opressões e silenciamentos, para conseguirmos levantar-nos contra anos e anos de submissão. É preciso um olhar rebelde, desafiador e comprometido — apesar do cansaço. É preciso um olhar feminino e feminista.

Também podemos dizer que existe a possibilidade de uma Outra mulher, a mulher que não é isso que somos, e que nem sequer existe ainda. É um devir-Mulher. Talvez nem se chame assim. Estamos a batalhar por ela todos os dias. Nosso convite é que você se junte a nós. Sabemos e compreendemos que talvez tenham mulheres que não queiram saber dessas coisas. O peso do conhecimento pode ser demais. Fomos alertadas, pelas mais antigas, que devemos contar com o que temos, devemos celebrar o despertar crítico de cada mulher. Mas sabemos que é possível se fechar. Andrea Dworkin, feminista lésbica dos anos 1970, vai comparar o patriarcado a granito: uma opressão fundida em lava, há eras.

Segundo ela, nós estamos todas enterradas individualmente nessa massa sólida, algumas incomodadas com o cheiro de nossas carcaças apodrecendo, outras acostumadas com a podridão, e cansadas demais para arrebentarem seus pulsos ao tentar sair da rocha. Nós observamos a rocha; estudamos a rocha; desafiamos a rocha e aqui estamos: tentando nos livrar de toda dor e estabilidade. Mas isso também exige destruição. Por isso, daqui de onde estamos a gente vai entender seu processo, sua transformação. Nenhuma revolução vem sem dor, e essas que acontecem no interior de nós mesmas são daquelas que os gritos não garantem alívio. Queremos nos livrar da rocha para que as próximas gerações de mulheres venham a nascerem libertas de opressão. Nos apoiamos umas nas outras porque identificamos que esta é a única maneira de livramos a todas as mulheres, e também porque estarmos juntas ameniza o sofrimento do percurso.

Talvez não tenhamos muito a oferecer. Não temos dinheiro, muitas vezes nem um plano de ação. O que temos é uma centena de livros, boas intenções e algum suporte emocional. Não lhe daremos uma vida confortável, nem certezas sobre ela, de fato colocaremos dúvida em tudo que é Verdade, porque esse saber universal não nos pertence. Talvez o que tenhamos de mais valioso a oferecer sejamos nós mesmas, nossos braços que estarão aqui para abraçar quando for preciso, e também para balançar, sacudir cada mulher até se verem além da venda da submissão. Oferecemos nossas vidas, porque é tudo que temos, e não há muita coisa a perder, no final das contas. Mas, definitivamente, com vocês, nossas chances de ganhar aumentam.

Feminismo também não tem caridade a oferecer. Esse é outro ramo que não nos pertence. Caridade é privilégio da classe que está por cima da situação. Dissemos: não temos dinheiro. Ou tempo. Tampouco somos uma organização não-governamental. Não temos compromisso com banalidades, assistencialismos, ou cuidados para quem quer que não seja da nossa classe ou casta sexual. Temos agenda, objetivo: a libertação de todas as mulheres. Esse é o nosso compromisso. Portanto, não venha com dó de outra mulher, venha com solidariedade à ela — e ódio ao resto.

Não pense também que porque é subjugada de uma maneira diferente você está livre, porque não está. Temos que saber que essas diferenças existem, que temos histórias e origens muito distintas, mas que são essas mulheres ao nosso lado que são as nossas iguais. Nossas possíveis aliadas. Não adianta se prender aos seus privilégios — seja de classe ou de raça, uma hora eles serão postos de lado, porque você ainda pertence a casta das mulheres. Não adianta nos trair, porque isso pode até te garantir alguma vantagem momentânea, mas tudo tem seu preço e o patriarcado cobra rápido. Para nós, mulheres de cor, pobres, lésbicas, nunca houve nem haverá alívio. A gente nunca ganhou porra nenhuma mesmo. Mas não se esforcem para atingir a dita normalidade, não queiram se assemelhar ao nosso opressor, não percam tempo.

Muitas mulheres vieram antes de nós, devemos a elas também. O mundo dos homens faz que sejamos liquidadas da história. Pensadoras, cientistas, artistas, guerrilheiras, militantes, todas sistematicamente apagadas. É quase como se nunca tivéssemos existido. Grandes mulheres são extinguidas dos livros. Grandiosas mulheres nunca terão seus relatos, histórias, livros, lidos: elas morreram e morrem todos os dias falando da importância de não silenciarmos. Os escritores das histórias do mundo, a História que aprendemos nas escolas, em geral, homens escritores, costumam dizer que é preciso tempo para fazer análise de conjuntura. Homens não precisam ter compromisso revolucionário. Mas nós, mulheres, não temos tempo.

Sojourner Truth, mulher negra, oradora abolicionista, recém-liberta da escravização, em Ohio de 1851, questionava os privilégios de classe e raça de mulheres que palestravam naquela convenção, se afirmando uma Mulher Negra e descrevendo cada opressão específica sofrida por suas iguais. Andrea Dworkin escreveu seus livros do olho do furacão, enquanto constituíam a Segunda Onda do Movimento de Libertação de Mulheres no Estados Unidos, em 1970. Angela Davis escreveu na prisão. Essas mulheres ousaram falar. E acho que esse é o convite de cada mulher que nos incita à escrever. Anzaldua, Audre Lorde, bell hooks. É preciso, enquanto mulheres, principalmente enquanto mulheres do Terceiro mundo, enquanto mulheres negras e latinas, enquanto lésbicas, correr atrás do tempo perdido. O tempo em que ocultaram as histórias de todas nós. Reaprender a escrever e a contar história. Enquanto processo. Enquanto protagonistas e donas das nossas memórias. É um convite à descolonização do pensamento crítico; um compromisso com a abolição do domínio masculino como fundamento psicológico, político e cultural a todas nós. Um compromisso fundamental e revolucionário.

Escrevamos; falemos; escrevamos! Sentadas na privada; entre o café e o almoço; quebrando todas as regras da formalidade; escrevamos! É urgente. Mulheres escrevendo, preocupadas umas com as outras, são revolucionárias porque rompemos com o lugar destinado a nós. Porque ousamos falar. Porque temos ideias e, só de existirem, elas já rompem com os muros que levantamos ao redor de nós ao longo da vida. Escrevamos; e, nas horas vagas, leiamos e disseminemos o trabalho outras mulheres que escrevem. E que a gente não se iluda, também não seremos lembradas. Não pelo mundo dos homens. E que a gente não faça questão disso. A nossa única chance de existir é entre nós. Somente nós mesmas podemos tirar nossas vidas do obscurecimento, das sombras do teatro da memória, como diz Michelle Perrot. Quando conhecemos mais sobre essas mulheres que vieram antes de nós já estamos construindo o lado B desse mundo. E, se não formos nós a fazer isso, quem fará? Se hoje queremos nossas vozes ecoando é preciso que por nossas gargantas passe também o som das que vieram antes de nós.

Portanto nós, feministas, oferecemos um projeto de vida, e se lutamos por vocês é porque nossa própria emancipação depende disso. Tem um quê de egoísmo, mas é preciso ser. Talvez você estranhe essas palavras porque aprendemos a nossa vida toda a sermos gentis, meigas e a colocar o outro na nossa frente. O feminismo vai te dizer que a sua prioridade pode ser você mesma. Vamos te dizer que é preciso ousar ser essa Mulher que ainda nem sabemos qual é. Estamos aqui para te colocar na guerra do cotidiano, na luta diária. Mas juro que você já estava antes, a diferença é que agora você sabe que está nela, e que estamos aqui por você. Por mim, por nós e pelas outras.

[texto escrito por Thais Rodrigues e eu, a partir do acúmulo que tivemos em debates da nossa Grupa de estudos feministas, formado depois da organização do Agosto das lésbicas, evento sobre visibilidade lésbica que construímos coletivamente no ano passado]