CESA
O artigo abaixo descreve uma experiência de organização popular: os círculos populares femininos da Venezuela. Esse modelo de organização foi desenvolvido pelo CESAP (Centro al Servicio de la Acción Popular). O modelo tem suas origens em uma avaliação de 1974 dos esforços mais significativos do CESAP na região metropolitana de Caracas e também no interior, datada de 1965. Essa avaliação incluía uma análise e uma projeção da situação atual da classe popular e do país como um todo.
Fundamento Teórico
Nosso ponto de partida para o desenvolvimento desse modelo foi uma análise estrutural de nossa sociedade. Vimos que estávamos vivendo em um ambiente social injusto. Estudamos o desenvolvimento histórico da sociedade venezuelana, considerando fatores econômicos, políticos e culturais e sua influência na evolução social.
Vimos claramente que estamos vivendo em uma sociedade estratificada pela classe, na qual a política e a cultura são determinadas pelas estruturas do capitalismo dependente. Como resultado, qualquer projeto de ação social de base deve trabalhar não apenas para uma mudança social e cultural, mas também para uma mudança progressiva na economia política da comunidade.
Depois de caracterizar um pouco mais a realidade da injustiça em nossa sociedade, vamos nos concentrar em fatores que consideramos como impedimentos para a plena participação da classe popular, como por exemplo:
- Mobilidade em direção a posições cada vez mais baixas
- Medo de mudança
- Passividade e conformidade
- Busca de soluções imediatas que tragam benefícios econômicos individuais
- Falta de experiências de organização ou qualquer tradição de luta através da qual técnicas adequadas e habilidades poderiam se desenvolver.
Qualquer modelo de organização deve ter sua própria base conceitual a fim de atuar sobre a realidade social e estar verdadeiramente fundamentado em uma avaliação das abordagens do trabalho de base. Ou seja, os conceitos empregados devem derivar do próprio trabalho e de sua avaliação contínua. Nossa abordagem conceitual é explicitada a seguir.
Usamos os termos “trabalho popular” e “ação popular” para descrever projetos que ajudam grupos nas favelas, bairros pobres ou vilarejos rurais a:
- Discutir e refletir sobre as causas dos problemas com os quais vivem como moradores de uma comunidade urbana ou rural pobre e como membros da classe popular.
- Analisar a situação de seu setor e organizar em seu nome um serviço ou atividade contínua, como educação de adultos, alfabetização, programas de treinamento para adultos ou jovens, ou projetos geradores de renda.
O trabalho popular deve, portanto, incluir um aspecto educativo e organizacional:
- O aspecto educativo promove, por meio de reflexão e discussão, os valores de solidariedade, iniciativa, cooperação, trabalho coletivo, justiça, responsabilidade e afirmação do caráter e da consciência do povo.
- O aspecto organizacional incentiva os grupos de base a realizar projetos ou ações que respondam às necessidades das comunidades urbanas e rurais pobres.
Um papel fundamental para a classe popular emerge de uma análise da realidade social. Observamos a necessidade de promover organizações que tenham objetivos concretos e tenham caráter participativo e autogestionário. Os grupos de base devem apoiar todos a participar e a compartilhar o poder de decisão; o grupo como um todo deve ajudar cada membro a encontrar um papel a ser preenchido.
Mulheres da Classe Popular
Antes de colocar em prática nosso modelo para os círculos de mulheres populares, estudamos o lugar das mulheres na classe popular.
Descobrimos que as mulheres são as que mais participam na busca de atender às necessidades de suas comunidades. Como consequência de seu papel social, elas são as residentes mais estáveis e permanentes das comunidades urbanas e rurais pobres.
As mulheres estão envolvidas em comitês e associações dedicadas a crianças em idade escolar, educação comunitária e ação social, assim como em organizações religiosas e políticas. Entretanto, suas contribuições não são totalmente valorizadas nem pelas organizações nem pelas próprias mulheres.
Muitas vezes, negam às mulheres a oportunidade de opinar relativamente às declarações ou ações de determinado grupo, sob a justificativa de que elas reagem às situações de forma emocional invés de racionalizar sobre as coisas. Em vez disso, é possível que sejam vistas apenas como números a mais ou uma mera presença feminina para determinada ação.
Além disso, existe uma crença generalizada de que as mulheres não conseguem representar seus vizinhos de maneira adequada.
Diante de todas essas crenças firmemente mantidas, chegamos à conclusão de que as mulheres pobres são duplamente marginalizadas. Vimos que promover uma maior participação das mulheres é uma prioridade fundamental — não apenas para que as mulheres possam ganhar igualdade de tratamento, mas também para que toda a comunidade possa estar melhor equipada para superar as estruturas que criam e recriam nossa sociedade injusta.
Vale ressaltar várias dimensões cruciais da experiência das mulheres pobres que podem lançar luz à forma como são vistas: seu papel social, sua psicologia e seu papel familiar.
O papel social desempenhado pelas mulheres de comunidades pobres é condicionado pela dupla opressão a que estão sujeitas: a de sexo e a de classe. Todos os dias, as mulheres enfrentam a tarefa de suprir as necessidades básicas do resto da família. Mulheres são quase inteiramente responsáveis pelo cuidado e educação de seus filhos. Essa dura realidade cotidiana molda as preocupações e aspirações das mulheres para que toda sua energia seja gasta em uma tentativa desesperada de melhorar a sua situação.
Psicologicamente, o papel feminino imposto pela sociedade é tão rígido, e outras alternativas tão completamente ausentes, que se cria um sentimento de impotência em relação a qualquer tarefa que se afaste desse papel tradicional. As mulheres aprendem a desacreditar suas próprias habilidades e potenciais, a temer o fracasso quando confrontadas com a perspectiva de uma ação autônoma. Seu senso de autoestima é diminuído e sua autoestima é abaixada.
Na estrutura familiar, as mulheres são centrais, tanto como mães quanto como esposas. Esses papéis, especialmente a maternidade, por sua vez, constituem para as mulheres o centro de suas vidas. A maior parte de sua energia, tanto física quanto psicológica, é dedicada ao cumprimento desses papéis.
Os Círculos Populares de Mulheres
O Programa Mulher do CESAP procurou responder à situação que descrevemos através de seu projeto de organização de círculos populares de mulheres. Esses grupos foram concebidos como um instrumento através do qual as mulheres podiam confrontar e analisar sua situação familiar, permitindo-lhes:
- Valorizar plenamente seus papéis como esposas e mães.
- Virem a enxergar que vivem em uma comunidade cujos problemas exigem uma ação coletiva a fim de alcançar soluções coletivas.
- Virem a descobrir que as mulheres devem se unir como iguais para compartilhar suas experiências e descobrir essas soluções.
O projeto do CESAP procurou formar grupos de mulheres em diferentes bairros para que as participantes pudessem compartilhar suas experiências na família e na comunidade. Tais grupos também poderiam promover o envolvimento e o desenvolvimento das mulheres na base.
Os objetivos dos círculos populares de mulheres eram de criar um fórum onde as mulheres pudessem:
- Compartilhar e discutir as necessidades e problemas mais imediatos de suas famílias e das comunidades.
- Descobrir, explorando suas experiências em seu próprio ambiente, como elas poderiam iniciar um processo de autodesenvolvimento que lhes permitiria formar uma compreensão crítica de sua situação e afirmar sua identidade como mulheres.
- Explorar formas de trabalhar pelo bem de sua comunidade, seja desenvolvendo novas abordagens ou fortalecendo aquelas já existentes, para que a comunidade possa resolver seus próprios problemas.
- Sugerir alternativas viáveis para os problemas mais críticos das mulheres em seu bairro ou comunidade.
- Abrir espaço nas discussões da política nacional para que as mulheres pudessem falar sobre sua situação como mulheres e como parte do setor popular.
Ao estabelecer as rodas populares de mulheres, sabíamos que cada grupo tanto influenciaria como seria influenciado por todos os outros. Ambos os processos — o desenvolvimento de grupos individuais e o desenvolvimento do projeto como um todo — iriam se alimentar um ao outro.
Prevíamos que cada grupo, com suas características particulares e seu próprio nível de desenvolvimento, faria certas contribuições ao todo, derivadas de sua própria situação concreta. No nível geral, essas contribuições seriam então sistematizadas através de um processo de análise coletiva, que ocorreria no mais alto nível de consulta organizacional e tomada de decisões — os Congressos Nacionais anuais — à luz de nossas metas e objetivos comuns.
Essa síntese produziria uma abordagem geral que apoiaria cada grupo na realização de seus planos concretos. Então, uma vez colocados em prática esses planos, cada grupo analisaria suas ações e seus resultados, em termos de sucessos e fracassos e o que foi aprendido. Essas avaliações mais uma vez formariam novas contribuições para o ciclo de feedback e refinamento.
Cada grupo local tem três níveis de participação.
O primeiro círculo é formado pelas coordenadoras das rodas populares de mulheres, que assumem a responsabilidade de planejar reuniões, trabalhar os detalhes das políticas decididas pelo segundo círculo, e assim por diante. As coordenadoras são eleitas pelo grupo com base em sua experiência, disponibilidade e participação. Elas recebem treinamento contínuo de liderança para ajudá-las a cumprir este papel. Cada círculo tem uma média de quatro coordenadoras. Elas se reúnem a cada semana ou duas, dependendo do grupo e de suas atividades.
O segundo círculo é formado pelas participantes mais assíduas do grupo — aquelas que participam de todas ou quase todas as reuniões e atividades organizadas pelo primeiro círculo. Esse círculo é, com efeito, o verdadeiro grupo. Juntamente com as coordenadoras, o segundo círculo discute e avalia todas as atividades do grupo, considerando seus sucessos e fracassos, obstáculos e o que elas aprenderam. Em média, doze mulheres (incluindo as coordenadoras) compõem esse círculo. Elas se reúnem semanalmente ou quinzenalmente, conforme ditam as atividades do grupo.
Todas as outras mulheres de uma determinada comunidade formam o terceiro círculo. Elas podem participar das atividades do grupo em alguns momentos, mas não conseguem participar com frequência — por exemplo, por causa de seus empregos. O número de participantes varia de acordo com a atividade específica.
Alguns dos tipos de atividades mais importantes são:
- Grupos de discussão sobre os problemas das mulheres, de suas famílias, da comunidade e da nação.
- Reuniões de maior escala sobre temas que abordam as necessidades da comunidade em termos de informação e educação.
- Cursos de desenvolvimento de habilidades, incluindo costura, cozimento e afins.
- Projetos em andamento para o estabelecimento e manutenção de serviços públicos e infraestrutura comunitária, tais como ruas, esgotos, transporte público de água e escolas e centros comunitários.
Vários grupos organizaram jardins de infância populares, apesar da falta de recursos ou mesmo da falta de um espaço para isso. São realizadas reuniões e sessões educativas com as mães das crianças nos jardins de infância. As mães também fornecem lanches e materiais educacionais para as crianças. Para algumas das rodas populares de mulheres, esta é sua atividade de serviço comunitário contínuo.
Outros grupos têm organizado projetos de geração de renda como atividade contínua, com cooperativas de produtores em vários ofícios ou outros produtos. Essas oficinas oferecem às mulheres a possibilidade de benefícios econômicos; seus produtos podem ser vendidos dentro da comunidade a um preço baixo ou fora da comunidade.
Outros projetos têm se concentrado na alfabetização de mulheres, saúde, grupos de consumidores, direitos das mulheres e educação das crianças.
Ações conjuntas também são empreendidas por todas as rodas juntas. A cada ano é proposto um projeto comum para que todos os grupos possam trabalhar solidariamente para resolver um problema social de maior escala. Esses projetos são selecionados e planejados no Congresso Nacional anual com a participação e a contribuição de todas as rodas.
Etapas de desenvolvimento
Um elemento importante em qualquer processo de autodeterminação é a existência de uma linha de trabalho clara que expresse os objetivos da organização e possa ser traduzida em um plano de ação concreto.
Por sua própria natureza, um processo de autodeterminação é difícil de ser definido, o que na prática se traduz em dificuldade para se chegar a um plano de ação comum. Aqui surge a questão de quando a autodeterminação se torna simplesmente uma falta de qualquer perspectiva de longo prazo. Cada grupo deve seguir o mesmo caminho, cometendo os mesmos erros, a fim de encontrar para si mesmo uma maneira eficaz de trabalhar?
É claro que é necessário elaborar uma abordagem que, sem ser rígida, possa orientar as atividades e o processo dos grupos. Tentamos sistematizar tal abordagem através do processo de reflexão coletiva. Os elementos de nossa abordagem podem ser agrupados da seguinte forma:
- Ações e atividades de grupo: sucessos, fracassos, obstáculos e seus efeitos sobre a comunidade.
- O processo dos círculos populares de mulheres, tal como é vivido a nível individual e grupal ao longo da existência do grupo.
Ao trabalharmos para uma abordagem sistemática, procuramos identificar elementos-chave que facilitem a realização efetiva dos objetivos do grupo. Procuramos elementos que ajudassem o grupo a integrar suas experiências e interiorizar os valores que desejamos desenvolver; ou seja, que apoiassem o desenvolvimento harmonioso dos dois aspectos-chave da organização e da educação.
Para desenvolver essa abordagem sistemática, começamos com avaliações realizadas pelas rodas de mulheres populares há mais tempo estabelecidas e por outras organizações comunitárias. Também procuramos estabelecer um intercâmbio contínuo por meio de conferências e reuniões com esses círculos e organizações.
Identificamos três etapas de desenvolvimento organizacional, que são detalhadas abaixo.
Etapa 1
Objetivo: Formação e organização de um grupo.
Critérios:
- Fomentar a participação de outras pessoas na comunidade.
- Partir do povo: como eles vivem, seu ambiente.
- Estabelecer relações com outros grupos.
- Respeitar as pessoas e ajudá-las a identificar seus problemas.
- Enfatizar as atividades iniciais.
- Identificar e desenvolver coordenadores potenciais para garantir a continuidade.
Plano Organizacional
- Comece o grupo com atividades que ajudem as pessoas a se conhecerem melhor para que possam desenvolver uma base mais forte de confiança e amizade.
- Cada grupo deve passar por mudanças e crises a fim de melhor definir seus objetivos.
- Todos os planos devem ser feitos em conjunto e todos no grupo devem assumir alguma responsabilidade.
Plano Educacional
- O grupo deve abordar a situação em que as membras vivem.
- O grupo deve verificar as satisfações e frustrações das participantes.
- É importante compartilhar as preocupações familiares, problemas e aspirações das mulheres.
- Reflexão e ação devem ser sempre um processo de grupo.
- Ao enfrentar os problemas, é importante distinguir entre fatores individuais, grupais e sociais.
- O grupo deve garantir que todas as membras participem das decisões e ações.
Etapa 2
Objetivo — Organização e educação na comunidade, à medida que o grupo começa a se consolidar.
Critérios para trabalhar a nível popular
É vital levar em conta:
- O tipo de comunidade onde as membras do grupo vivem ou trabalham: suas principais necessidades e problemas, sua idade, sua origem e história.
- Como as pessoas dessa comunidade se relacionam umas com as outras e com pessoas de outras comunidades?
- Características da comunidade: tipo de moradores; seus problemas; ruas, casas, etc.
- Personalidades-chave e situações da comunidade.
- Atividades preponderantes.
- Necessidades importantes e recursos existentes.
Plano Organizacional
- As atividades em grupo devem promover a participação das pessoas na comunidade.
- Vários tipos de reuniões e atividades devem ser organizadas.
- As coordenadoras devem ser treinadas para assumir a responsabilidade de liderar o grupo.
- Cada grupo deve estar aberto a novas membras e à cooperação com outros grupos.
- Cada grupo deve buscar ganhar o reconhecimento da comunidade.
- O trabalho da comunidade deve alcançar resultados concretos.
- Cada grupo deve estabelecer um relacionamento contínuo com sua comunidade através de reuniões, assembleias, visitas domiciliares, boletins informativos, e assim por diante.
- O plano deve ajudar o grupo a responder às necessidades reais da comunidade.
Plano Educacional
- Os problemas devem ser priorizados.
- Novos valores e novas formas de agir devem ser desenvolvidos.
- O processo educacional deve enfatizar que os problemas não são individuais, mas sim coletivos; que eles devem ser enfrentados coletivamente; e que é crucial abordar as causas fundamentais dos problemas e sugerir possíveis respostas de acordo com as capacidades do grupo.
- O processo educacional deve ser um fórum para reflexão e solução de problemas sobre a situação pessoal das membras do grupo.
- A educação e a reflexão em nível de grupo devem ser integradas com um processo de desenvolvimento individual.
- O grupo deve prestar atenção à resposta da comunidade a seus esforços.
Etapa 3
Objetivo — Institucionalizar o processo de educação e organização quando o grupo assumir sua forma definitiva.
Critérios
Para que o processo de organização se torne permanente, o grupo deve:
- Dar maior ênfase à compreensão e à luta contra os obstáculos que enfrenta em um determinado contexto.
- Reconhecer as pessoas que tentam trabalhar de forma responsável.
- Avaliar constantemente se está caminhando para uma verdadeira permanência da organização e da ação.
Para que o processo educacional se torne permanente, o grupo deve:
- Agir de forma que seu trabalho seja legitimado dentro da comunidade.
- Promover a orientação de tomar ações conjuntas para resolver problemas comuns.
- Aumentar o nível geral de conscientização na comunidade.
- Promover a solidariedade e as mobilizações que possam ser necessárias para fazer avançar a luta popular.
Plano Organizacional
Cada grupo deve:
- Estabelecer objetivos para curto, médio e longo prazo.
- Reavaliar constantemente suas ações em termos de seus objetivos e resultados.
- Superar o chauvinismo local.
- Promover a participação na luta popular.
- Aumentar seus próprios recursos através de atividades geradoras de renda.
- Formar um grupo central contínuo para a ação popular.
Plano Educacional
Cada grupo deve proporcionar um espaço para as membras:
- Refletir continuamente sobre suas vidas, experiências e ações em grupo.
- Afirmarem e desenvolverem suas personalidades.
- Estabelecer uma identidade de grupo com uma abordagem própria e consciência de classe.
- Desenvolver uma visão e uma atitude socialista em relação à vida.
Ao articular uma abordagem sistemática do processo de desenvolvimento organizacional e ao traçar as etapas mencionadas acima, vislumbramos quatro dimensões que caracterizam o modelo organizacional. Essas dimensões são ao mesmo tempo a orientação e a configuração dos diferentes tipos de práticas que a organização desenvolveu ao se definir a si mesma.
Avaliação
Começando com uma análise estrutural e depois da implementação na prática concreta, uma abordagem não-estrutural teve suas limitações. Isso foi o resultado de uma decisão ponderada de que deveríamos usar uma metodologia não-determinista que contrabalancearia a natureza teórica da análise e serviria como um veículo adequado para grupos autogeridos.
Contudo, no decorrer da implementação de nosso modelo, surgiram situações que indicavam que esta decisão constituía um salto teórico que deixou pendurada a análise preliminar da situação injusta.
O que faltava era uma análise da situação atual em termos das forças sociais que atuam na arena política, econômica e social, e sua expressão global. Chamamos essa falta de análise de ‘problema teórico’; outras carências, derivadas da ausência de estrutura metodológica, chamamos de ‘problemas metodológicos’.
O primeiro desses problemas metodológicos é o de enfatizar um processo acima da eficácia de seus resultados. Olhamos para o processo como uma expressão do nível de desenvolvimento alcançado pelas membras do grupo, esperando que este processo fosse autodirigido para objetivos determinados pelo próprio grupo.
O perigo desta abordagem é que muita energia é gasta para facilitar o processo, enquanto pouca atenção é dedicada a alcançar os objetivos. Neste ponto, surge o problema da eficácia, de alcançar resultados dentro de um determinado período de tempo.
Da mesma forma, a ênfase colocada na sistematização do processo difundiu nossa análise e nossas ações em uma confusão de possibilidades difíceis de priorizar, com o consequente perigo de diminuir ainda mais o foco do trabalho.
Um segundo problema metodológico deriva da tensão entre a valorização da própria experiência e a validação tanto da compreensão teórica quanto das experiências das outras. Ao procurar estabelecer a experiência vivida e seus ensinamentos como um ponto de referência constante, nossa abordagem tornou mais difícil para os grupos valorizar e utilizar a teoria, assim como as experiências de outras organizações. Em consequência, cada grupo tenta começar do zero, ignorando o que poderia ser aprendido com a história de outras organizações; assim, muito esforço é gasto na acumulação de experiências e na construção de tradições.
Há também uma tendência a sobrevalorizar o ativismo e o concreto, desprezando a reflexão ideológica e teórica por princípio como desnecessária e sempre parcial ou contingente. Um fenômeno relacionado é o esgotamento entre pessoas com mais tempo na organização, que já percorreram alguma distância e passaram por um processo e, assim, alcançaram uma perspectiva mais ampla e eficaz sobre as ações e planos do grupo. Tais pessoas estão sujeitas a uma espécie de paralisia — porque devem esperar que novas membras passem pelo mesmo processo e descobrir por si mesmas o que já é óbvio para aquelas com mais experiência.
Sucessos: a prática como “regulação”
Descobrimos que o processo de organização que começou há mais de doze anos tem um impulso ad hoc inerente. Continuando a trabalhar com grupos da classe popular, nutrindo sua identidade com reflexão e análise de suas necessidades e aspirações como classe, conseguimos consolidar essa identidade como um ponto de referência permanente.
Ao estabelecer um ativismo contínuo que pode enfrentar a injustiça de nossa situação, enquadrando objetivos que se estendem por um alcance social cada vez mais amplo, asseguramos a permanência e o dinamismo da organização. Atualmente, estamos operando em quinze estados do país.
Nosso compromisso com a identidade, com o trabalho sistemático, com a análise e avaliação dos efeitos sociais de nossa intervenção, todos asseguraram o desenvolvimento harmonioso da organização e a fizeram avançar como um todo, sem dividir ou deixar de lado seu caminho.
Mostrou-se necessário ter um tipo de sistema de regulação interna para que o processo pudesse se sustentar diante de requisitos objetivos e funcionais diversos e às vezes vagos. As experiências concretas dos grupos têm servido como este sistema de regulação. As experiências tanto dos grupos mais antigos quanto dos mais novos determinaram a prática de tomar decisões sobre planos e metas.
Dificuldades
À medida que a organização continuou a se desenvolver, chegamos a ver uma certa tensão entre se enfatizar a expansão ou a consolidação de nossas estruturas organizacionais existentes. Devemos continuar expandindo a organização ao mesmo ritmo que anteriormente? Ou devemos dedicar mais de nossos recursos para consolidar o nível de treinamento e desenvolvimento organizacional e a base de financiamento dos grupos existentes?
Cada ano, durante nosso processo anual de definição de prioridades, discutimos onde colocar mais ênfase: no aspecto qualitativo (ou seja, na consolidação); ou na expansão quantitativa. Obviamente, este não é um problema que jamais poderá ser resolvido para sempre. Ao invés disso, tentamos estabelecer critérios que nos permitam manter uma tensão produtiva entre os dois.
Outra dificuldade surge na tentativa de esclarecer o impacto ideológico de nossos esforços. Se apenas as transformações de consciência pudessem ser medidas, seria muito mais simples abordar essa questão! No entanto, vemos que tais transformações estão ocorrendo — por exemplo, quando membras de um grupo analisam um determinado problema em termos de estruturas socioeconómicas em vez de carências pessoais ou culturais.
Outra evidência de tal transformação é quando as soluções que são sugeridas são soluções coletivas que falam em toda a extensão do problema e não apenas respostas individuais ou locais. Da mesma forma, vemos desenvolvimento quando a pessoa inteira é levada em consideração na resposta a problemas individuais ou de grupo. As pessoas são vistas não apenas como coleções de necessidades e problemas, mas como seres orgânicos com sentimentos, uma autoimagem, uma rede familiar, e assim por diante.
Uma última dificuldade são os bloqueios que enfrentamos na tentativa de discutir questões políticas. Nosso meio cultural e ideológico trabalha para descartar qualquer consciência crítica. Culturalmente, qualquer linguagem que soe “esquerdista” ou questione o status quo é reprimida e desacreditada.
Isso é o resultado da ideologia que mantém uma hegemonia silenciosa e sutil em nosso ambiente. Assim, torna-se muito mais difícil para nossa organização falar e questionar o que está ocorrendo na Venezuela. Da mesma forma, a situação exige que encontremos uma nova linguagem para expressar nossas opiniões, algo que é difícil de criar.
Os grupos mais antigos
Há vários grupos que abriram caminhos para a organização, sendo pioneiros sem quaisquer diretrizes ou modelos para preparação ou avaliação. Hoje é importante manter e alimentar seus esforços. Os objetivos e a estrutura interna que eles estabeleceram para si mesmos, seus canais de coordenação e suas diretrizes, são a própria base de nossa organização.
Dentro destes grupos estão algumas pessoas que internalizaram completamente o processo organizacional, enquanto outras apenas passaram por ele. A filiação caiu em alguns dos grupos mais antigos e novas membras não foram incorporadas, de modo que os grupos permanecem presos em uma determinada etapa de seu desenvolvimento.
O processo de desenvolvimento pessoal e organizacional impulsiona os indivíduos e grupos mais antigos a representar os valores e experiências da organização, o que tem causado conflitos e até mesmo crises. Muitas vezes a organização é rígida ao exigir demais de seus membros mais antigos. Outras vezes ocorre o contrário: os membros mais antigos são rígidos e exigentes com a organização. Um equilíbrio entre estes extremos é mantido através do nosso compromisso tanto com o processo vivo dos grupos quanto com seus efeitos teóricos e práticos.
Ser uma organização exclusivamente feminina
Nossa organização é composta inteiramente de mulheres. Essa composição social é a fundação base da nossa identidade.
Em repetidas discussões e confrontos com outros grupos dedicados à ação popular, temos defendido o papel de uma organização de mulheres populares. No nível mais amplo do nosso movimento, existe um vácuo organizacional para as mulheres da classe popular. Não há casos concretos em que a participação das mulheres tenha ido além das demandas e formas de organização de curto prazo que reforçam os papéis tradicionais das mulheres. Nossa organização preenche, assim, uma função vital e indispensável.
Cada vez que um novo círculo de mulheres populares é formado, especialmente com grupos cujos esforços são menos concretos, o mesmo debate ressurge: o grupo deve continuar somente com mulheres ou deve se reconstituir como um grupo misto? Até agora, continuamos a manter um senso da diferença entre nós, enquanto uma organização popular de mulheres, e de outras organizações populares mistas — e vemos valor na manutenção dessa diferença.
Vemos nosso papel como promovendo a participação das mulheres nos problemas da classe popular como um todo. Como organização, também trabalhamos pelos direitos da mulher — para que nós, mulheres, possamos falar por nós mesmas e ocupar nosso lugar de direito na luta.
Caso queira utilizar esse texto para estudo em seu grupo, coletiva ou organização, pode fazer o download do PDF clicando aqui.
Publicação original:Equipo de los Circulos Femininos Populares, Programa de Unidades de Produccion. Caracas — VenezuelaTradução: Aline Rossi