As fábulas são composições literárias cuja finalidade é educar por meio da representação do cotidiano, feita através de analogias com as vivências das personagens — animais que ganham características humanas — e o mundo real. Esse tipo de gênero é frequentemente usado para ensinar crianças sobre valores éticos e morais que costumam já ser bem conhecidos pelos adultos. Como explicar o óbvio tem sido uma tarefa difícil, pensei: por que não usar desta ferramenta didática para mostrar como o neoliberalismo coopta o feminismo, minando-o? Eis, então, a fatídica fábrica patriarcal e, claro, capitalista.
Não poderia escolher outro animal para representar a supremacia do patriarcado que não a raposa: nas fábulas, ela ocupa o papel da trapaça, dos conflitos e de quem busca atingir os fins sem dar a mínima importância para os meios. Qualquer semelhança não é mera coincidência.
Em “A raposa e o corvo”, a raposa enxerga um corvo com um belíssimo e desejável pedaço de queijo no bico. Imagine, então, que estamos falando do patriarcado olhando para uma mulher detentora de comportamentos e desejos que não condizem com os que esperam dela. Ora, é óbvio que a raposa — ou o patriarcado, como preferir — não deixaria aquela situação passar despercebida! Só os homens podem usufruir do queijo — só os homens podem criar seus próprios modos de viver, de produzir, de se relacionar… foi assim ao longo da história e deve continuar sendo! Um queijo na boca de um corvo, como assim?! Corvos não foram feitos para comer queijos. Mulheres não foram concebidas para serem livres.
Há quem diga que a raposa é leviana, mas, ao contrário: ela age de caso pensado. Não seria tão fácil para a raposa simplesmente tirar o queijo da boca do corvo, mas o fato é que ele não deveria estar lá. Sendo assim, o perverso personagem arma um plano para ferir o corvo e fazê-lo, por si mesmo, largar o queijo. Por que sair de malvada se a raposa, esperta que só ela, pode manipular e reverter situações a favor de si?!
A raposa, então, diz que duvida que o corvo sabe cantar. Assim como o patriarcado, em sua forte aliança com o capitalismo, diz todos os dias às mulheres que a aparência delas importa, mascarando suas fantasias, fixações por padrões inatingíveis e fetichismos com o tal do “amor próprio”. Então, o corvo abre a boca e deixa cair exatamente aquilo que a raposa deseja. Então, as mulheres se despem, ficando exatamente como os homens querem que elas estejam.
Moral da história? Essa fábula é sobre como o patriarcado se mascara para conseguir o que deseja. E sobre como nós, mulheres, na ânsia de mudarmos nossas vidas, acabamos dando a esse sistema exatamente tudo o que ele precisa para se manter. Somos convencidas por campanhas que se dizem inclusivas e defensoras da tolerância e da diversidade a nos submetermos a diversos procedimentos estéticos, sob o pretexto de que “não importa o que precisamos fazer; o que importa é nos amarmos”; somos motivadas a despir nossos corpos em forma de “protesto” ou acreditando ser um ato de “liberdade”, quando na verdade estamos dando munição para que os nossos opressores continuem nos colocando na posição de meros objetos.
Mulheres, agarrem seus queijos! A única forma de nos emanciparmos é desviando dos caminhos que eles trilharam para nós, construindo nossa própria jornada. Não é possível lutar contra a raposa — ou patriarcado — se fizermos uso das armas que ela criou exatamente para agir contra nós. Precisamos nos aliar e moldar o nosso próprio meio de vida! Tentar atingir aquilo que o patriarcado nos impõe jamais nos permitirá desfrutar do queijo — da liberdade — de forma plena.
Ainda não ficou claro como funciona o plano da raposa? Veja só alguns exemplos: