feminismo
heterossexualidade compulsória

À primeira vista, a expressão “heterossexualidade compulsória” causa grande estranhamento. Afinal, depois de tantos anos ouvindo que sexualidade não é opção, e sim orientação, uma tendência natural — e esse discurso tem uma farta e nobre razão de ser: a despatologização da homossexualidade e da lesbianidade — a ideia aparente de que uma pessoa é educada para ser heterossexual soa estranha. Então vamos analisar o que realmente isso significa.

Primeiro, começando pelo óbvio: a ideia trazida pelo conceito é de que as pessoas são forçadas a serem heterossexuais. Sim, as pessoas, todas elas, visto que o nome do conceito não é “heterossexualidade compulsória feminina”. Dessa constatação, partem algumas questões:

  • O que significa a compulsoriedade da heterossexualidade?
  • Quem ou que é o sujeito ativo — ou seja, que obriga as pessoas à heterossexualidade?
  • Qual o objetivo disso?
  • Como isso se manifesta?
  • Por que essa constatação é necessária e cara ao movimento feminista?

Partindo de alguns textos fundamentais (aquiaqui, e aqui, que servem de base para o artigo de referência desse texto, aqui), vou tentar responder a essas questões, destaco, do meu ponto de vista de mulher heterossexual, não entrando, portanto, na especificidade da existência lesbiana, que será tema de outro texto (por uma autora lésbica).


Sejamos diretas: a heterossexualidade compulsória é um instrumento de poder do patriarcado, é um regime político. Por meio da patologização de sexualidades desviantes, institui-se a heterossexualidade como aquilo que é normal — e, consequentemente, esperado.

(Já viu isso em algum lugar, não é? Outros movimentos cunharam o conceito de heteronormatividade, que dá o status de norma à heterossexualidade — o que não está errado, mas é incompleto)

Mas a heterossexualidade de que estamos falando aqui não é a mera atração sexual pelo sexo oposto. É a atração por aquilo que o outro sexo representa, suas funções, suas prerrogativas; e a submissão e assunção da prerrogativa relegada a seu próprio sexo.

A heterossexualidade compulsória só faz sentido se compreendida, portanto, dentro do contexto de uma sociedade hierarquizada por gênero (que, como sabemos, é o caso).

O regime da heterossexualidade se presta à manutenção da hierarquia entre os gêneros, já que impõe à mulher que se afeiçoe não ao macho (ou seja, um ser humano adulto dotado de falo), mas ao homem enquanto construção social.

A mulher verdadeiramente heterossexual — e, portanto, verdadeiramente mulher, porque nossas identidade e existência dependem da chancela masculina — não é aquela que gosta de pinto, mas aquela que gosta de ser controlada, passiva, maternal, inferior ao homem. Aquela que conhece seu lugar, essa, sim, é mulher de verdade, como Amélia.

“Mas, nossa, Bruna”, você pensa. “Isso é tão século passado, de quando a mulher nem podia trabalhar… hoje é diferente, já é normal que a mulher trabalhe e seja independente do homem”.

Pode ser que, materialmente, sejamos hoje menos dependentes dos homens — principalmente as mulheres mais pobres, que são forçadas a sair de casa e trabalhar pelo próprio sistema capitalista (e, apesar disso, a própria ideia de que a entrada da mulher no mercado de trabalho representou um grande fator de empoderamento precisa ser questionada e criticada porque nós só saímos de casa porque o capitalismo precisou disso e julgou conveniente ter mais mão-de-obra trabalhando e gastando no mercado). Mas tudo bem. Tomando nossa realidade material, termos nossa própria renda de certa forma ajudou em alguma emancipação (vide — dados sobre empoderamento feminino e programas sociais como o Bolsa Família).

Mas voltando. De qualquer forma, atualmente a compulsoriedade da heterossexualidade se apresenta majoritariamente nas relações sociais e afetivas entre homens e mulheres (e também somente entre homens e somente entre mulheres).

De que forma?

Vá anotando as experiências com as quais você se identifica e me conta no final.

Não podemos tomar iniciativa no flerte, porque isso é coisa de “puta” — e a figura da puta enquanto mulher dona de sua sexualidade é algo que assusta. O primeiro passo deve ser do homem pra que ele mostre pra sociedade que ele é que detém o comando, o controle, a iniciativa sexual.

Não podemos ferir o ego masculino. Que atire a primeira pedra a mulher que nunca se fez de sonsa ou inapta a fazer algo somente pra inflar o ego do cara. Que atire a primeira pedra a mulher que nunca ouviu que sua inteligência, sua assertividade, sua “personalidade forte” espantariam os homens e que ela devia aprender a ser mais sonsa se quisesse arranjar um marido.

Não podemos sair de um relacionamento tóxico. Erros devem ser perdoados, porque homens são assim, imaturos, e se você ficar do lado dele e insistir no relacionamento, você poderá mudá-lo — aquela leve síndrome de Bela & a Fera, ou Estocolmo, ou Um Amor pra Recordar, ou qualquer outro filme de comédia romântica já feito na história.

Não podemos esperar sensibilidade, romantismo, carinho, paciência ou qualquer outro sentimento positivo que pudesse tornar o relacionamento mais saudável e equilibrado. Não. Nós é que somos a mulher da relação, nós é que somos sensíveis e loucas. Eles são a voz da razão e nos dão algum juízo.

Não podemos exigir equidade no prazer sexual, porque buceta é “nojenta” e ele não pode ser forçado a gostar de fazer sexo oral. Também não pode ser negada a ele a sagrada penetração, apesar de isso ser um fator de prazer infinitamente mais masculino do que feminino e nós temos que nos acostumar com isso.

Não podemos cobrar maturidade e responsabilidade emocionais deles. Não podemos cobrar comprometimento e lealdade diretamente; cabe a nós deixá-los satisfeitos a ponto de não serem tentados a nos deixar (afinal eles são basicamente animais, impulsivos, e traição é um ato de impulso, irracional e sexual, não uma irresponsabilidade com a própria parceira). Tenha mente aberta, mana! Relacionamento aberto; ciúme é coisa de gente monogâmica ultrapassada.

Não podemos, por outro lado, reclamar do ciúme dele e do excesso de controle, porque isso é um suposto sinal de que ele nos ama e tem medo de nos perder. Não significa que ele não confia em nós ou que nos considera sua prioridade; imagine. É amor.

Não podemos questionar nada, afinal “homem é assim mesmo” e ninguém espera (nem cobra) que eles mudem.

Não podemos reclamar do nosso parceiro que faz tudo isso, porque, afinal, ele não nos bate.

Não podemos sequer contar com e confiar em amigas e outras mulheres, porque elas não são dignas de confiança; vão nos trair e roubar nosso homem; vão encher nossa cabeça de minhoca só pra minar nosso sonhado relacionamento.

E nós, mulheres heterossexuais, somos obrigadas a nos relacionar com exatamente esse tipo de homem. Somos obrigadas a entrar e a permanecer em relacionamentos tóxicos, abusivos e insuficientes — e, mais do que isso, somos forçadas a querer um relacionamento com um homem, a repelir todo e qualquer desejo de um relacionamento com outra mulher. Pior ainda: o ápice de nossa vida nos é vendido como o momento em que vamos achar um homem com quem teremos um relacionamento assim pro resto da vida. E de quem ainda teremos um rebento.

Somos ensinadas a desejar sermos encarceradas. Somos socializadas para nos entregarmos ao carcereiro e jogarmos a chave fora. Somos educadas para aceitar, tolerar e não ver absolutamente nada de errado em relacionamentos opressivos, violentos e abusivos; porque, afinal, homem é assim — e nós, como mulheres, temos de suportar.


A família é o núcleo da sociedade burguesa, porque ela, em si, reproduz em menor escala as próprias estruturas da sociedade, já disseram antes de mim. E o casal composto por homem e mulher, ainda sem crianças, é a menor unidade possível dessa microesfera social.

É, portanto, natural o receio patriarcal de mulheres quebrarem suas correntes: a primeira revolução feminina deve ser interna, no sentido de reconstrução da autoestima, valorização da própria identidade, perda do medo de ser quem se é, perda do medo de desagradar os homens, condicionar seu futuro e sua expressão de si somente aos próprios desejos e valores, não aos de homens e terceiros. A mulher precisa redescobrir o que é amar, respeitar e valorizar a si mesma — ou seja, precisa reaprender a amar, respeitar e valorizar uma mulher. Precisa reaprender a colocar mulheres no centro de sua vida, a priorizar mulheres, a valorizar seus laços com mulheres, porque é exatamente isso que não querem. É exatamente isso que nos fortalece.

Sem essa base, sem o fortalecimento individual de cada mulher, o empoderamento das mulheres coletivo, enquanto classe, nunca vai ser possível — pois, mesmo coletivamente, enquanto movimento, continuaremos reproduzindo ideias e comportamentos feitos pra nos minar. Continuaremos sendo condescendentes, com receio de sermos assertivas e de preservarmos os objetivos e metas de nosso movimento. Continuaremos com medo de sermos taxadas de “radicais” quando levantarmos nossa voz sobre a de um homem. Homem, homens, machos. Sem uma revolução interna, continuaremos, coletivamente, pensando mais neles do que em nós.

(E não é o que acontece?)


Ame a si mesma. Ame muito a si mesma. Ame a si mesma pra saber que você não merece um home medíocre, um trabalho medíocre, um salário medíocre, uma transa medíocre.

Ame mulheres! E com isso não quero dizer pra você se forçar a fazer nada, mas se explorar sua sexualidade fizer parte disso, então o faça. Redescubra a beleza feminina, a poesia de nossos corpos, a maravilha que é nosso sistema reprodutor.

Priorize a leitura de mulheres, os filmes de mulheres, a contratação de profissionais mulheres, a compra de negócios de mulheres.

Re-eduque-se pra extirpar todo o ódio que te ensinaram a ter de mulheres. Pra não falar mal à toa de mulheres. Pra não desumanizar mulheres.

Conscientize-se pra conhecer as realidades e as demandas de outras mulheres de necessidades diferentes: pretas, mães, lésbicas, bissexuais, pobres, imigrantes, indígenas, camponesas, prostitutas. Solidarize-se com essas mulheres. Torne-as visíveis, pelo menos a seus olhos.

Tudo isso também é um exercício de rompimento com a heterossexualidade compulsória.

É acabar, de uma vez por todas, com a noção de que só homens são seres humanos e merecem respeito e visibilidade.

Não continuaremos a ser o segundo sexo. Não mais.

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