Antes da formação dos Estados nacionais e da formalização dos processos de penalização dos indivíduos, já haviam formas de controle social que puniam pessoas de acordo com algumas regras sociais.
Criados na baixa Idade Média, os tribunais do Santo Ofício da Inquisição eram uma forma de controle comportamental instaurada pela igreja católica na Europa. Havia a perseguição a muitas formas de pensamento e ação que diferiam do que a Igreja considerava o ideal, e podiam ser punidos tanto homens quanto mulheres. Esses tribunais ajudavam a manter a ordem social e o status quo, e serão endossados mais tarde pelos Estados modernos nascentes.
No final do século XV, o papa Inocêncio VIII emite uma bula chamada Summis desiderantes affectibus (Desejar com ardor supremo), em que coloca a bruxaria como a grande inimiga da Igreja. Na sequência, o livro O Martelo das Feiticeiras (Malleus Maleficarum, no original) é publicado com ideias que associam fortemente a bruxaria ao sexo feminino. Esse livro se torna o principal manual usado pelos juízes desses tribunais, chamados inquisidores, e é considerado por alguns teóricos, como Zaffaroni, como o primeiro discurso criminológico.
Conforme a Inquisição vai se expandindo e se tornando a principal instituição punitiva por toda a Europa (e em algumas de suas colônias), uma mitologia em torno da figura da bruxa é formada e, durante a Idade Moderna, percebe-se que as mulheres passam a ser especialmente perseguidas pela Igreja.
A caracterização da bruxa é patriarcal, porque a bruxa é qualquer mulher. Segundo O Martelo das Feiticeiras, “as mulheres são por natureza instrumentos de Satanás — são, por natureza, carnais, um defeito estrutural enraizado na criação original”. Assim, identifica-se na própria natureza do sexo feminino a tendência à bruxaria porque as mulheres seriam mais “facilmente seduzidas pelo pecado”, incluindo as “damas de boa conduta”.
A ideia da bruxaria procurava também, como todos os instrumentos patriarcais, controlar a sexualidade da mulher, porque a bruxa tem uma “lascívia obscena”, de modo que as mulheres adúlteras, as que faziam sexo antes do casamento, as prostituídas etc. poderiam ser classificadas como bruxas por causa de condutas sexuais.
A construção cristã da figura da bruxa persiste até hoje em diversas sociedades, que ainda identificam uma mulher com supostos poderes mágicos como má ou contestadora da ordem social. O mesmo não acontece com homens. Homens que possuem supostos poderes mágicos têm poder nas comunidades em que atuam, como os próprios sacerdotes cristãos.
Essa identificação da mulher com algo condenável traz uma espécie de tipificação de condutas femininas, fazendo da mulher ser desviante por natureza. Coisas típicas da sexualidade feminina, como o aborto, poderiam ser consideradas como sinais de bruxaria.
Também coisas relacionadas ao sexo feminino, ainda que sociais e não naturais, foram caracterizadas como condenáveis no Martelo das Feiticeiras. Colher e misturar ervas para chás e remédios, por exemplo, até então considerado coisa de mulher, passou a ser entendido como feitiços maléficos de bruxas.
Esses tribunais eram ad hoc, ou seja, não permanentes, sendo que um inquisidor poderia viajar para vários locais e formar vários tribunais durante sua vida. Era comum que vilarejos contratassem inquisidores para julgar diversas pessoas de uma vez, de modo que ele podia até mesmo ganhar notoriedade se já houvesse condenado várias mulheres por bruxaria. A forma de se extrair confissões de bruxaria era a tortura.
O inquisidor era também um homem que acumulava em suas mãos as funções de investigador e juiz, e isso só aumentava mais a possibilidade de arbítrio. Basicamente, o tribunal era formado apenas para confirmar suspeitas iniciais e condenar o réu. Inclusive, negar a bruxaria podia ser considerado prova de bruxaria, de modo que não havia saída para a pessoa acusada.
A criminalização de condutas de um grupo submisso para a manutenção de poder do grupo dominante será uma prática que vai definir a formação do direito penal. As mulheres, por muito tempo, foram desconsideradas pelo sistema penal formal dos Estados porque a escola clássica do Direito Penal surgiu para proteger cidadãos dos arbítrios punitivos do Estado e mulheres, simplesmente, não eram cidadãs. Suas questões não eram questões de Estado e elas eram tidas como politicamente irrelevantes, mas isso não significa que outras formas de controle não agiam sobre elas e que praticamente as criminalizavam, ainda que juridicamente fosse um sistema informal.
Durante a Santa Inquisição, ser mulher era praticamente ser criminosa, porque o comportamento da mulher era considerado naturalmente desviante e a sua sexualidade era um instrumento satânico. As mulheres no patriarcado são um grupo submisso e não escaparam de serem consideradas desviantes durante a história, seja como bruxas, loucas, histéricas, adúlteras, prostitutas ou qualquer outro epíteto misógino usado para marcar o ser mulher como um crime.
Fontes:
BULA APOSTÓLICA SUMMIS DESIDERANTIS. 1484. Bula de supressão da bruxaria ao longo do rio Reno. Disponível em: <https://sites.google.com/site/magisterhumanitatis/escritores-latinos/malleus-maleficarum/bula-summis-desiderantes-affectibus>
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. The Malleus Malleficarum. Nova York: Dover Publications, 2012.
LIMA, Lana Lage da Gama. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição: o suspeito é o culpado. In: Rev. Sociol. Polit. N°.13. Curitiba, 1999.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.
SAGAN, Carl. O Mundo Assombrado Pelos Demônios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A Mulher e o Poder Punitivo. In: CLADEM. Mulheres: Vigiadas e Castigadas. São Paulo, 1995.