De todos os processos para os quais o feminismo me despertou, compreender a feminilidade e me enxergar nela foi certamente o mais doloroso. Tem sido doloroso, na verdade. E acredito que sempre o será. Considero a feminilidade, especificamente aqui, enquanto o atributo visual da estética, da aparência, e não somente o conjunto de comportamentos aos quais somos submetidas por nascermos mulheres. Porque, para mim, foi muito mais fácil entender os meandros da feminilidade quando se trata unicamente do comportamento submisso aos homens. Há tempos já entendi a nossa socialização para o cuidado, para o casamento, para a maternidade. Há tempos já entendi como funciona a indústria pornográfica, a cultura do estupro. Mas a questão da beleza — do que fomos obrigadas a entender como beleza — , da imagem, sempre foi uma ferida muito grande que eu me recusava a tocar.
Sempre fui apaixonada pelo universo das intervenções estéticas. Comecei a usar maquiagem ainda muito cedo; me recordo de ter a minha própria necessaire com batom, sombra e gloss ainda na infância. Lembro da primeira vez em que me depilei com gilete (eu devia ter uns nove anos) e como aquilo foi prazeroso. Era um rito de passagem: eu estava me tornando mulher. Com o passar dos anos, principalmente na adolescência, recheada de insegurança graças a uma montanha-russa hormonal, as intervenções estéticas se configuraram um ritual para mim. Era realmente gratificante. Por mais torturante que fosse fazer a sobrancelha, eu me sentia outra pessoa após o procedimento. Me sentia útil, válida. Bonita.
Toda a minha autoestima (e estou certa de que não somente a minha) foi desenhada em torno da minha aparência. Embora, durante a adolescência, eu detestasse o padrão que as minhas colegas de escola seguiam — cabelo liso, comprido, minissaia e um esforço gigantesco para receber aprovação dos meninos — eu escapei daquilo usando as mesmas ferramentas. Não queria ter cabelo comprido, mas passei a adolescência toda alisando o cabelo para que eu pudesse tê-lo curto; odiava me espremer para caber em roupas cor de rosa, mas tinha várias roupas justíssima de látex preto; achava ridículas as maquiagens das meninas da minha sala, mas acordava todo dia quarenta minutos antes de o despertador tocar para treinar o delineador com sombra preta e roxa.
Eu não tive outra escolha, mesmo que na época acreditasse ser diferente daquelas meninas, superior a elas. De uma forma ou de outra, fui empurrada para acreditar que a beleza é algo completamente natural. Achava que as meninas bonitas eram sortudas e haviam sido abençoadas por nascerem daquele jeito. E eu teria que correr atrás do prejuízo. E corri. Corri muito para chegar a lugar nenhum. O que eu conquistei tentando ser bonita? Absolutamente nada. Só perdi a minha adolescência inteira me comparando às outras meninas e me sentindo cada vez pior.
Foi um alento quando começou a se falar em beleza natural. Eu, gastando dinheiro e tempo de vida em maquiagens (à minha moda), sonhando em por silicone, passando horas no cabeleireiro para alisar meu cabelo, finalmente encontrei um discurso que me contemplava. Pensei: “finalmente posso ser do jeito que eu sou e continuar sendo bonita”. A maquiagem não era mais uma imposição, mas uma escolha. Mas era muito difícil, depois de uma vida inteira em função da aparência artificial, escolher sair de casa sem maquiagem. Era absolutamente impossível. Eu sentia que havia algo de errado comigo; não conseguia ser capaz de escolher sair de casa sem me maquiar ou fazer chapinha. E todo aquele discurso da beleza natural me levou a pesquisar sobre rotina de pele que demandariam horas da minha semana— afinal de contas, já que era para ser natural, eu não poderia simplesmente aparecer na padaria com uma pele cheia de manchas e espinhas. Preciso estar bonita. E, de novo, minha autoestima passou a girar em torno da minha velha conhecida: a beleza.
Quando me dei conta de que o problema não era eu, e sim o fato de a beleza ser uma ferramenta criada pelos homens para subjugar e adestrar mulheres, eu finalmente consegui assimilar como somos vigiadas, moldadas e cerceadas o tempo inteiro, independente de nossa escolha. Não há escolha quando se nasce mulher e se cresce em uma sociedade que nos domestica, adoça e treina para viver em função de um atributo que foi inventado. Não existe naturalidade na beleza. As tendências estéticas mudam com o passar dos anos, mas isso nunca significa que os padrões estão desaparecendo: muito pelo contrário, estão se reinventando para encontrar novas formas de nos oprimir.
Compreender a beleza enquanto parte da nossa socialização para a feminilidade me fez notar quanto o patriarcado joga baixo conosco; as discussões sobre feministas poderem usar maquiagem ficaram irrisórias perto do entendimento sobre as artimanhas minuciosas desse sistema. Da Vênus de Milo, com seus seios firmes e abdômen trincado, à harmonização facial para parecer mais natural, o patriarcado esfrega na nossa cara que nada mudou. Nós nunca tivemos escolha.
O exercício de dissociar o autocuidado e a autoestima da aparência é diário, eterno e tem seus altos e baixos. Por vezes pode parecer um percurso muito solitário, utópico, surreal. Mas é um caminho sem volta.
Libertar-se da feminilidade é um ato corajosíssimo. Lembrar que você não está sozinha nesse processo, também.