Texto de Janice Raymond

Quando me pediram para falar na Conferência de Feminismo Radical de 2014 em Londres, as organizadoras me pediram para falar sobre o futuro do feminismo radical. A única maneira que eu poderia abordar o futuro era evocar o passado e o presente, destacando alguns dos marcos do ativismo feminista radical em minha própria vida e trabalho, com a esperança de que a história das ideias feministas radicais e ativismo possa gerar alguma sabedoria sobre o futuro.

radical feminist conference london 2014
Cartaz da Conferência Feminista Radical 2014, organizada em Londres (UK) pelo RadFem Collective.

Eu me tornei uma feminista radical no final dos anos 1960. Mas eu provavelmente era uma feminista radical antes disso, já que cresci em uma família extensa de seis garotos. Por sorte, eu era a mais velha. O período que abrange o final dos anos 1960 e 1970 foi um momento vibrante para o feminismo, não sem suas diferenças, no entanto, entre as chamadas marcas do feminismo.

Durante parte desse período, eu estava na pós-graduação. Para muitos estudantes dos EUA, neste momento, era impossível envolver-se no trabalho acadêmico sem estar envolvido nas principais questões políticas do dia — os direitos civis, o movimento antiguerra enquanto os Estados Unidos estavam tentando esmagar o Vietnã, o movimento ambientalista e, claro, feminismo. Tive a sorte de estudar com Mary Daly e fazer parte de um grupo feminista radical de estudantes de pós-graduação de diversas universidades na área de Boston que se tornaram ativistas.

Na época, eu estava trabalhando em um doutorado com foco em ética médica. O aborto legal era um dos debates controversos do dia nos Estados Unidos. Antes da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1973, que legalizou o aborto até a viabilidade fetal, eu comecei a falar publicamente em vários estados e fóruns públicos sobre o direito da mulher ao aborto. Muitos desses convites vieram até mim porque, na época, eu era tecnicamente membro de uma comunidade religiosa progressista de freiras católicas. É claro que uma freira católica falando em favor do direito das mulheres ao aborto gerou publicidade e apressou minha saída formal da comunidade.

Em meados dos anos 1970, fui contratada pela Universidade de Massachusetts em Amherst, uma das maiores universidades públicas dos Estados Unidos, onde por 28 anos fui professora. Na época, o Women’s Studies era um novo campo acadêmico nos campi universitários dos EUA. Muitas docentes nos programas de Estudos sobre Mulheres dessa época eram feministas socialistas, e feministas radicais eram definitivamente minoria. Isso foi antes do advento da teoria pós-modernista, quando muitas das feministas socialistas se tornaram pós-modernistas e quando esse tipo de teoria passou a dominar um grande número de programas de Estudos sobre Mulheres.

Ao mesmo tempo, o Movimento Feminista pela Saúde das Mulheres estava evoluindo, inicialmente para desafiar muitas práticas médicas que afetavam as mulheres. O Movimento Feminista pela Saúde das Mulheres também gerou centros de saúde para mulheres nos quais os problemas de saúde das mulheres eram abordados e tratados — lesões de mulheres agredidas, infecções vaginais, menstruação, menopausa, contracepção, aborto, esterilização de mulheres afro-americanas nos Estados Unidos e internacionalmente e aprendizado de autoajuda. [1]

Muito do meu ensino, escrita e ativismo na época estavam concentrados no uso de tecnologias destrutivas para os corpos e mentes das mulheres — por exemplo, tecnologias de controle de comportamento e modificação, como a psicocirurgia (anteriormente chamada de lobotomia) e terapias de eletrochoque. Nos Estados Unidos, essas tecnologias eram usadas com muito mais frequência em mulheres do que em homens. Quando comecei a escrever sobre essas chamadas terapias, encontrei mulheres que haviam sido submetidas a elas.

Uma delas era uma ativista feminista lésbica cujos pais, quando ela era jovem, a internaram involuntariamente em uma instituição mental, e submeteram-na à lobotomia porque um psiquiatra alegou que isso curaria seu lesbianismo. Em vez disso, a cirurgia infligiu severa perda de memória, catatonia periódica e dores de cabeça crônicas que duraram até a idade adulta.

TECNOLOGIAS REPRODUTIVAS

Em uma conferência em Groningen, na Holanda, em 1984, eu conheci um grupo de ativistas feministas radicais e acadêmicas, e fundamos um grupo internacional de direitos das mulheres chamado FINRRAGE que monitorava as políticas e programas governamentais de reprodução, tecnologias reprodutivas, engenharia genética e o rápido desenvolvimento de novas técnicas, como a sub-rogação (barriga de aluguel) e drogas reprodutivas que foram direcionadas para uso em mulheres em todo o mundo.

As mulheres do nosso grupo fundador vinham da Austrália, Argentina, Bangladesh, Suíça, Reino Unido e EUA. Nós falamos em muitas conferências sobre as novas tecnologias reprodutivas e genéticas, testemunhamos perante os órgãos estaduais e nacionais, e editamos um periódico chamado Engenharia Genética e Reprodutiva (Reproductive and Genetic Engineering) [2]. Algumas de nós também escreveram livros sobre essas questões. O meu foi intitulado “Mulheres como se fossem úteros: tecnologias reprodutivas e a batalha pela liberdade das mulheres”. [3]

Embora a maioria das discussões sobre reprodução tecnológica seja focada em tecnologias ocidentais, como fertilização in vitro e congelamento de embriões, o uso reprodutivo de mulheres está ocorrendo em um nível médico internacional onde corpos de mulheres estão sendo traficados para reprodução e/ou utilizados em turismo reprodutivo.

Corretores substitutos, por exemplo, admitem francamente que buscam mercados novos e mais baratos para mulheres que criarão filhos para outras pessoas, já que a taxa atual é mais barata e a chamada oferta de mão-de-obra mais inquestionável. A Índia tornou-se o centro desse turismo reprodutivo, com uma proliferação de centros de mães de aluguel que anunciam o aluguel de mulheres e bebês para ocidentais, através do uso de mulheres indianas pobres como substitutas.

FEMINISMO LÉSBICO

Também durante os anos 80, as chamadas “guerras da sexualidade” surgiram no movimento feminista nos Estados Unidos e em outros lugares, principalmente levantadas pela questão da pornografia. Lésbicas estavam particularmente envolvidas nesses debates sobre sexualidade.

Na década de 1970, o lesbianismo não havia sido separado do feminismo porque muitas lésbicas se identificavam especialmente como feministas radicais. O feminismo lésbico era uma política de compromisso com as mulheres e os direitos das mulheres, não um destino biológico, e não simplesmente um estilo de vida.

Durante a década de 1980, o lesbianismo tornou-se uma identidade sexual sem uma política feminista. Nada contribuiu tanto para essa divisão — entre aquelas que viam o lesbianismo como apenas uma identidade sexual e aquelas que se identificaram como feministas lésbicas — como o surgimento de uma cultura sexual libertária que apostava sua reivindicação de uma sexualidade lésbica liberada baseada na demanda dos modos de comportamento sexual do sexo masculino — pornografia, prostituição e BDSM lésbico. [4]

Os debates sobre a sexualidade lésbica dominaram a primeira escola de verão lésbica da Grã-Bretanha, realizada em julho de 1989. Nesse encontro, fiz uma palestra, que se tornou um artigo publicado chamado “Colocando a política de volta no lesbianismo”. Basicamente, argumentei que havia pouca diferença entre uma cosmovisão conservadora que localiza as mulheres neste mundo principalmente como objetos sexuais das fantasias e desejos dos homens, e um estilo de vida libertário lésbico que está cada vez mais preocupado com a foda como se isso fosse toda a razão e finalidade de ser lésbica.

É difícil ver o que é progressista ou rebeldia numa posição que localiza o desejo feminino e que aprisiona o dinamismo, a vitalidade e o vigor sexual feminino nas práticas de demanda masculina de objetificação sexual, subordinação e violência, desta vez engajadas por mulheres.

Era previsível que a visão feminista lésbica fosse categorizada como antissexo e como feminismo radical puritano; e que aquelas de nós que tornaram certas formas de comportamento sexual lésbico problemáticas seriam acusadas ​​de serem dogmáticas e sem graça! [5]

O feminismo radical historicamente tem reivindicado a de-sexualização das mulheres na mídia, no mercado e no mundo em geral.

O que as libertários e liberais sexuais conseguiram foi a re-sexualização de mulheres usando a retórica de libertação feminista e lésbica para afirmar que a sexualidade é um impulso radical. Mas a sexualidade não é mais radical do que qualquer outra coisa. Existem certas expressões que podem ser radicais e outras expressões que não são. É irônico que as libertárias sexuais queiram revigorar as formas masculinas de sexualidade, nas quais baseiam suas pretensões à liberação sexual.

Não quero que fiquem com a impressão de que as lésbicas não resistiram a essa visão da sexualidade. Certamente muitas lésbicas resistiram, e ainda estão na vanguarda, por exemplo, do movimento anti-pornografia. As lésbicas estão lutando internacionalmente contra os sistemas globais de prostituição e escravidão sexual. Mas enquanto antigamente você podia contar com um movimento político do feminismo lésbico, aquele esforço político agora parece diminuído.

O feminismo lésbico era um movimento baseado no poder de um “nós” — não na fantasia ou na autoexpressão sexual de uma mulher — uma política compartilhada, que sustentava que a prostituição, a pornografia e a violência sexual não podiam ser racionalizadas em nome da liberdade de escolha, e que o tráfico sexual é uma prostituição globalizada.

TRÁFICO SEXUAL E PROSTITUIÇÃO

Na década de 1990, tornei-me diretora coexecutiva, junto com Dorchen Leidholdt, da Coalizão Internacional contra o Tráfico de Mulheres (CATW). [6] Por muitos anos, tenho trabalhado com mulheres em diversas partes do mundo para combater a prostituição e o tráfico sexual de mulheres e crianças.

Como ativista abolicionista feminista, visitando mais de 50 países, encontrei centenas de mulheres que estiveram em sistemas de prostituição e cujas vidas foram devastadas por ela. Conheci mulheres que pensavam que estavam migrando de seus países por trabalho e acabavam na indústria do sexo. Conheci garotas fugitivas em meu país, que fugiram porque um parente do sexo masculino abusou sexualmente delas em casa, mas se viram levadas e cafetinadas para a indústria do sexo. Estive em bordéis onde vi crianças pequenas atendendo compradores do sexo masculino. E conversei com homens que são usuários habituais de prostituição que se sentem no direito de usar os corpos de mulheres e meninas para satisfazer suas supostas necessidades sexuais.

Como ativista, aprendi que trabalhar contra a indústria do sexo é como trabalhar contra mais nada. A indústria tem amigos em altos escalões e tornou-se um grande lobista em nome da legislação nacional e internacional que favoreceria sua expansão.

Perguntamo-nos onde estão todos os ativistas antiglobalização quando se trata de confrontar a indústria do sexo globalizada.

Em vez disso, o debate sobre a prostituição se concentrou principalmente na escolha e no consentimento das mulheres. Dos críticos do capitalismo internacional, ouvimos muito pouco sobre o papel da indústria do sexo e sua exploração econômica e sexual das mulheres. Há uma percepção acadêmica dominante de que a prostituição é apenas sexo, não exploração sexual; apenas sexo, não uma indústria do sexo; e que devemos preservar o que quer que seja chamado de “sexo”. Somos instadas a jurar lealdade a qualquer prática que seja representada como sexo. A própria linguagem do “trabalho sexual” e da “trabalhadora do sexo” ajuda a lavar o sistema de prostituição em todo o mundo.

No discurso pró-prostituição, prostituição é trabalho sexual, não exploração sexual. Os proxenetas são agentes de negócios de terceiros, agentes que as mulheres escolhem para se proteger e gerenciar seus interesses econômicos, e não os exploradores de primeira classe.

Em Vitória, capital da Austrália, os cafetões que são donos de bordéis legais são designados como licenciados de serviço de trabalho sexual. Os usuários de prostituição são consumidores ou clientes que proveem mulheres com rendimentos, não abusadores. Os bordéis são espaços seguros para as mulheres exercerem o seu ofício, não os locais onde as mulheres são controladas e mantidas sob controle. As mulheres na prostituição são profissionais do sexo e não vítimas de exploração sexual. E as vítimas do tráfico são trabalhadoras sexuais migrantes cuja passagem de um país para outro é facilitada pela migração de pessoas que se movimentam. Mesmo as palavras “acompanhantes” e “agências de acompanhantes” fazem o sistema de prostituição parecer mais chique e seguro.

Esta estratégia retórica dá apoio a uma indústria do sexo global, apoiando seus objetivos para normalizar a prostituição como trabalho e sancionar seus perpetradores como simples empresários e capitalistas cordiais.

O sistema global de prostituição é baseado no gênero. A maioria dos estudos que entrevistaram usuários de prostituição — aqueles homens que exploram mulheres para o sexo da prostituição — documentou que as visões de gênero sobre as mulheres figuram largamente nos motivos por que os homens compram mulheres para atividades sexuais. Do britânico que admite “quero que minha prostituta seja uma namorada de mentirinha… que seja genuinamente atraída por mim”, até o misógino que responde com orgulho: “Bem na hora, inclinei-me para a frente e descarreguei no rosto dela! Ela ficou surpresa e chocada, isso me deixou mais excitado do que o ato” — as opiniões e ações dos homens como usuários de prostituição são baseadas em ideias sobre mulheres que se ajustam às suas visões de gênero de quem são mulheres e como as mulheres devem agir. [7]

TRANSGÊNERO

Há gênero e há transgênero. Quando publiquei pela primeira vez O Império Transexual, em 1979, [8] a palavra gênero era entendida como separada da palavra sexo. Sexo era o que definia uma pessoa biologicamente, e gênero era entendido como o comportamento socialmente construído que era apropriado ao sexo.

Em seu novo e brilhante livro, “Gênero Dói”, Sheila Jeffreys analisa a história da palavra gênero e enfatiza o fato de que as feministas radicais usaram o termo para falar sobre os papéis de gênero, a “ordem de gênero” ou a hierarquia de gênero, mas em cada um desses usos, ficou claro que isso significava uma construção social e política do comportamento masculino e feminino.

Agora, como Jeffreys aponta, o gênero substituiu a palavra sexo, “como se o gênero em si fosse biológico”. [9] A fusão de sexo e gênero é alcançada na construção da categoria transgênero. O termo transgênero, substituindo o transexual, expandiu-se para incluir não apenas aqueles que se submetem à cirurgia, mas também aqueles que evitam a cirurgia, usam apenas hormônios do sexo oposto ou simplesmente se identificam como membros do sexo oposto.

Às vezes as pessoas me perguntam: “Qual é o problema com transgeneridade?” e por que isso é uma questão tão importante, especialmente no esquema de questões urgentes com as quais as feministas se preocupam. Como eu via e vejo agora, transsexualidade e transgeneridade levantam questões sobre o que é gênero e como desafiá-lo.

Defensores da transgeneridade argumentam que é um desafio radical à transgressão de gênero — expectativas de gênero e limites rígidos do comportamento de papéis sexuais socialmente apropriados — se uma pessoa se submete a cirurgia ou tratamento hormonal para configurar o corpo para o sexo oposto ou simplesmente reivindica pertencimento ao sexo oposto pela autoidentificação. Se tivermos que mudar nossos corpos para desafiar as normas de gênero, não estamos transcendendo o gênero, ou seja, não estamos livres do gênero. Estamos trocando uma identidade de gênero pela outra. De que serve um “fora da lei” do gênero que ainda segue as regras do gênero?

O “império transexual” é o conglomerado de especialidades médicas que se unem para tornar possível o tratamento e a cirurgia transexual. Assim como na prostituição e no tráfico sexual, as pessoas ignoram a indústria médica que colonizou a insatisfação de gênero. Como uma ampla faixa de conduta e lutas pessoais são rotuladas como problemas psicológicos ou como síndromes que exigem soluções médicas, todos os tipos de comportamentos são tratados com drogas, cirurgia e outros meios técnicos. Cada vez mais, conflitos pessoais, éticos e sociais são definidos como problemas médicos quando eles são, na verdade, problemas humanos por viver em conflito com normas sociais e políticas.

Levando o modelo médico às extremidades da imposição da conformidade de gênero, o estado indiano de Madhya Pradesh está investigando alegações de que até 300 meninas foram cirurgicamente transformadas em meninos para pais que queriam filhos. Defensores dos direitos das mulheres denunciaram a prática de que a cirurgia transsexual faz uma “zombaria das mulheres na Índia”. [10]

Desde a revolução islâmica de 1979, o Irã se tornou o segundo país depois da Tailândia a realizar mais cirurgias transsexuais do que qualquer outra, onde muitos homens gays e algumas lésbicas experimentam pressão para transicionar cirurgicamente como forma de normatizar sua homossexualidade.

Em um país onde atos homossexuais são criminalizados e puníveis com a execução, pessoas que passam por cirurgia de redesignação sexual podem existir sem medo. A lei serve para encorajar, se não obrigar, os homossexuais a se submeterem a uma cirurgia para escapar do assédio e da punição. As autoridades propuseram a cirurgia transexual como uma forma de “heteronormatizar” pessoas com desejos pelo mesmo sexo ou que se envolvem em relações do mesmo sexo.

Embora o Irã tenha algumas das leis mais repressivas contra as mulheres e as relações entre pessoas do mesmo sexo, tem uma indústria médica liberal e lucrativa de mudança de sexo, na qual grande parte do custo da cirurgia é coberta pelo governo. [11]

Especialmente preocupante no Ocidente é a institucionalização de clínicas de identidade de gênero baseadas em hospitais que tratam crianças que atuam com comportamentos contrários ao sexo. Um dos principais efeitos da definição da identidade de gênero como um problema médico a ser resolvido por tratamentos hormonais e cirurgia é encorajar os pais a verem seus filhos como necessitados de tratamento transgênero. As crianças passam então por avaliação psiquiátrica e tratamento hormonal, muitas vezes seguidas de cirurgia. Essas clínicas estão se multiplicando em países como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Austrália. [12]

Qualquer mulher que tenha experimentado a agonia de não se encaixar numa sociedade em que o gênero é definido por papéis rígidos dificilmente é insensível à experiência e ao sofrimento que os transexuais e aqueles que se identificam como transgênero. Como as pessoas que querem mudar de gênero, muitas mulheres se sentiram insatisfeitas com seus corpos e se viram em um estado psiquicamente desarticulado porque não podiam aceitar seu papel. Entretanto, através de um processo de conscientização, muitas feministas aprenderam que há toda uma estrutura de poder masculina que define quem e o que podemos ser.

Hoje, há mais mulheres que se identificam como homens trans do que quando publiquei meu livro em 1979. No entanto, ainda é principalmente uma via de mão única de homens descendo a rodovia trans. [13] E é certamente um fluxo unidirecional de homens que se identificam como mulheres trans na estrada online, exigindo o reconhecimento de sua “feminilidade” e atacando principalmente feministas radicais que recusam esse reconhecimento, tentando calar nosso discurso público e até nos ameaçando com violência e morte.

O debate sobre transgeneridade conseguiu dividir muitas feministas. No entanto, se não podemos concordar sobre o que é uma mulher, como podemos concordar em muito mais?

Como podemos reivindicar defender os direitos das mulheres se cedermos nossa mulheridade aos homens? Os hormônios, a cirurgia e a autoidentificação fazem uma mulher? A tragédia é que muitas mulheres não mais reconhecem que nascer uma mulher transmite uma história comum e uma vida de significado biológico, social e político.

Quando organizações pelo direito ao aborto estão sendo pressionadas a parar de usar a palavra “mulheres” sobre as que engravidam e procuram abortos, e incluir em suas publicações que homens podem engravidar (pessoas que se identificam como homens trans), para onde foram todas as feministas?

Homens que afirmam que são mulheres e seus defensores dedicaram uma enorme energia para garantir que um homem, seja ele submetido à cirurgia transexual ou se ele simplesmente se identificar como mulher, seja autorizado a entrar nos corpos, eventos, reuniões, festivais etc, de mulheres.

Parece que os quartos das lésbicas são agora o tópico do dia da imprensa e da blogosfera trans. Certos fóruns trans foram organizados especificamente para discutir e criar estratégias sobre como as lésbicas podem ser pressionadas a sair e fazer sexo com aquelas que se identificam como lésbicas trans. Como diz um ativista trans, “os corpos das mulheres trans são corpos femininos, tenham ou não pênis”.

Talvez o epítome dessa incongruência seja que os homens que afirmam ser lésbicas agora alegam ter um pênis lésbico ou, como um ativista trans expressou, um “pau de mulher”. No entanto, as lésbicas que rejeitam que os homens possam ser lésbicas são arrastadas como transfóbicas. [14]

Este é o mundo de Alice no País das Maravilhas — onde Alice é a feminista radical e o Senhor Ovo é o defensor das pessoas trans — como exemplificado na seguinte conversa entre os dois. Primeiro, o Senhor Ovo afirma com uma dose completa de certeza masculina: “Quando eu uso uma palavra, significa o que eu escolhi que significasse. Nem mais nem menos!” Ao que Alice responde: “A questão é se você PODE fazer com que as palavras signifiquem tantas coisas diferentes.” Ao que o Senhor Ovo admitiu: “A questão é quem deve ser o mestre, isso é tudo”.

FEMINISMO RADICAL E O FUTURO

De fato, a questão de quem deve ser o mestre é a questão do poder político. E isso me leva à questão do futuro do feminismo radical.

Eu não tenho nenhuma sabedoria especial em prever o futuro. No entanto, sei que um futuro feminista radical deve levar a questão do poder muito a sério, e as mulheres devem estar preparadas para agir em um contexto mais amplo de mundialismo do que apenas a comunidade feminista radical.

Ao longo da história, as mulheres na maior parte do globo careciam de influência e controle sobre o mundo político em que vivemos por causa do status vitimizado e derivado das mulheres no patriarcado, ou porque em alguns contextos feministas radicais as mulheres optaram por se dissociar do mundo político.

Em conclusão, quero me concentrar em uma visão feminista radical de mundialismo para o futuro.

Trabalhar no mundo significa um confronto com o poder e uma capacidade de desafiar o poder patriarcal, especialmente instituições e indústrias poderosas que sujeitam as mulheres à violência e à exploração. É perceber que a opressão das mulheres — seja através de tecnologias que manipulam e mutilam o corpo feminino, ou através de sistemas de tráfico e prostituição que exploram sexualmente o corpo feminino, ou através de tratamento médico que supostamente constrói um corpo feminino a partir de um homem — tem se tornado industrializada, e que o que estamos desafiando são indústrias poderosas.

Eu sempre acreditei que o feminismo radical não é e não pode ser separado do mundo em que existimos. Até mesmo a dissociação radical e voluntária do mundo, originalmente assumida como uma postura separatista radical, pode produzir uma visão panorâmica que nos afasta de uma parte do que deveria ser um mundo comum e de uma influência feminista radical nesse mundo, esse mundo que está cada vez mais globalizado pelas indústrias que gerenciam e controlam grandes populações de mulheres — por exemplo, a indústria médica e a indústria do sexo, que se uniram para promover o acesso sexual e reprodutivo aos corpos das mulheres à medida que internacionalizam tanto a prostituição quanto as mães de aluguel para promover o tráfico sexual e reprodutivo.

O ativismo feminista radical do qual participei durante a década de 1970 e que continuou durante a maior parte da minha vida de ativista envolve muitas palestras e testemunhos em fóruns não-feministas, grupos de cidadãos, comissões governamentais e legislaturas em várias partes do mundo. Envolve novas formas de traduzir ideias feministas em fóruns de políticas públicas e legislativos, construindo uma capacidade de traduzir políticas feministas em fóruns públicos.

Isso implica, às vezes, trabalhar com pessoas com as quais talvez nunca tenhamos pensado que trabalharíamos, como a polícia ou legisladores conservadores que estão prontos para aprovar leis, por exemplo, que dão proteção e assistência às vítimas de tráfico. E envolveu trabalhar com mulheres que eu nunca teria tipificado como feministas radicais, mas que em seu trabalho para com as mulheres são radicais no sentido mais fundamental dessa palavra.

Grupos que se esforçam para fazer mudanças políticas precisam procurar maneiras de agir em relação às diferenças de ideologia e táticas. Às vezes, esse esforço resulta em organizações agindo em associações maleáveis. Às vezes, isso resulta em coalizões junto daqueles com os quais nunca poderíamos nos ligar noutras questões, como a pauta antiguerra ou os direitos reprodutivos.

A ativista afro-americana Fannie Lou Hamer nos lembra que uma coalizão não é uma casa. Como o líder dos direitos civis dos EUA, Bayard Rustin, declarou:

“A questão é em qual coalizão participar e como torná-la responsiva ao seu programa… a diferença entre conveniência e moralidade, na política, é a diferença entre vender um princípio e fazer concessões menores para ganhar maiores”.

As ativistas feministas radicais do futuro ver-se-ão desafiando aqueles que deveriam ser nossos aliados naturais, por exemplo, as chamadas organizações de direitos humanos, como a Anistia Internacional, que elaboram políticas que visam a descriminalização de prostituição, prostíbulos e usuários de prostituição.

Certamente, as feministas radicais enfrentam um caminho difícil, pois muitas vezes lutamos tanto contra a direita quanto contra a esquerda, incluindo a versão da esquerda da liberação sexual e reprodutiva das mulheres e a versão da direita da moralidade sexual e reprodutiva das mulheres. Mesmo dentro do feminismo, o feminismo radical assumiu questões que outras feministas ou evitam ou escolhem estar do lado oposto, como nas batalhas sobre tecnologias reprodutivas, pornografia, prostituição e transgeneridade.

O que é importante para o futuro do feminismo radical é que aquelas de nós que são feministas radicais se envolvam com o mundo. Temos que recuperar este mundo para nós e para outras mulheres.

Por mais de 35 anos, tenho tido o privilégio de trabalhar em um contexto internacional com algumas feministas muito mundistas e radicais. Ao longo das décadas tenho sido uma feminista radical, o feminismo radical tornou-se mais global. Eu acho que o feminismo radical do futuro continuará essa comunidade global. Eu não poderia ter me envolvido em muito do trabalho que fiz sem uma comunidade de feministas globais.

O grupo de mulheres que fundou a Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres na Ásia-Pacífico eram principalmente presas políticas que foram detidas e algumas torturadas durante a ditadura de Marcos nas Filipinas. Elas foram vítimas de um regime brutal que usou sua vitimização não apenas para enfrentar uma ditadura política, mas também depois para se opor à indústria do sexo globalizada. Rachel Moran em seu livro “Paid For” usou sua experiência pessoal de exploração sexual para transformar a experiência em reflexão sobre políticas públicas de prostituição e trabalhou para criar uma legislação nacional que tenha como alvo os homens que compram mulheres para o sexo da prostituição. [15]

As organizadoras desta conferência trabalharam para fazer exatamente isso — criar uma conferência — e, contra grandes dificuldades, garantir um espaço apesar dos protestos de defensores da transgeneridade que limitariam o discurso feminista radical — e, no processo de fazê-lo, tenho certeza, elas aprenderam muitas lições sobre a organização feminista radical e o que é preciso para criar um fórum público.

Ninguém vai dizer que esta é uma tarefa fácil. Mas o feminismo radical teve grandes ganhos. Quando Kathleen Barry deu nova vida ao abolicionismo feminista da prostituição nos anos 1970, [16] era quase impossível desafiar a ideologia política aceita de que a legalização da prostituição protegia as mulheres e que era o sistema legal progressista sobre prostituição. O comprador masculino era invisível e poucos queriam falar sobre a demanda masculina pelo sexo da prostituição. Foi só na década de 1990 que feministas abolicionistas foram levadas a sério pelos legisladores sobre a legalização não ser a resposta, e que a alternativa era penalizar os usuários de prostituição — os homens.

As abolicionistas feministas começaram com um país e, ao longo de uma década de ativismo, lutaram para mudar o sistema legal sueco de prostituição para criminalizar os compradores do sexo masculino e descriminalizar as mulheres prostituídas. Hoje, a maioria dos países nórdicos têm legislação que criminaliza a compra de atividades sexuais. A República da Coreia do Sul e as Filipinas têm leis semelhantes às da Irlanda do Norte e do Canadá. A França e a República da Irlanda estão considerando a legislação anti-demanda (NT: atualmente, ambas já implementaram o modelo nórdico, em 2016).

Como feministas radicais, podemos nos encontrar em posições em que nosso ativismo político carrega os riscos de sermos ostracizadas de nossas famílias ou grupos de iguais, ou de sermos demitidas de nossos empregos, mas raramente temos que morrer por nossas crenças e políticas.

A tarefa mais importante do ativismo é agir. Encontre seu próprio local de ativismo, seja antimilitarismo ou ativismo ambiental, e imponha essa localização com uma direção feminista radical.

A tarefa do ativismo feminista radical é desenvolver estratégias que melhorem a vida das mulheres e, portanto, a condição humana. Esse tipo de ativismo requer pensamento crítico, participação no mundo e exige fazer julgamentos e agir de acordo com isso. Encontre alguma maneira de revitalizar o ativismo feminista radical no mundo.


Notas

[1] The Boston Women’s Health Book Collective first published Our Bodies Our Selves in booklet form. The original book edition was republished by the New England Free Press in 1971 and sold for 40 US cents.
[2] See the Prologue in Made to Order: the Myth of Reproductive and Genetic Progress. Eds. Patricia Spallone and Deborah Lynn Steinberg (New York: Pergamon Press), 1987. Written by the founders of FINRRAGE, the prologue illustrates the group’s history and goals and how reproductive technologies affect women in different parts of the world.
[3] Janice G. Raymond. Women as Wombs: Reproductive Technologies and the Battle Over Women’s Freedom (San Francisco: HarperSanFrancisco), 1993.
[4] See Dorchen Leidholdt and Janice G. Raymond, Eds. The Sexual Liberals and the Attack on Feminism (New York: Pergamon Press), 1990.
[5] Janice G. Raymond. “Putting the Politics Back into Lesbianism.” In Classics in Lesbian Studies. Ed. Esther D. Rothblum (London: Haworth Press), 1997.
[6] For more information, visit the website of the Coalition Against Trafficking in Women (CATW) at www.catwinternational.org
[7] For a fuller discussion of male attitudes towards women in prostitution, see Chapter II, “Prostitution on Demand: the Prostitution Users,” in Janice G. Raymond. Not a Choice, Not a Job: Exposing the Myths about Prostitution and the Global Sex Trade (Potomac Books, an imprint of the University of Nebraska Press), 2013.
[8] Janice G. Raymond. The Transsexual Empire: the Making of the She-Male (Boston: Beacon Press), 1979. For an updated discussion of the politics of transgender, see “Fictions and Facts about The Transsexual Empire” at Janiceraymond.com
[9] Sheila Jeffreys. Gender Hurts: a Feminist Analysis of the Politics of Transgenderism (London: Routledge), 2014. p. 5.
[10] “Indians Pay Surgeons to Turn Girls into Boys.” The Telegraph, June 27, 2011.
http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/asia/india/8601488/Indians-pay-surgeons-to-turn-girls-into-boys.html. Accessed May 2, 2012.
[11] Sasha von Olderhauser. “Iran’s Sex-Change Operations Provided Nearly Free-of-Cost.” Huffington Post, June 6, 2012. http://www.huffingtonpost.com/2012/06/04/iran-sex-change-operation_n_1568604.html. Accessed May 2, 2012.
[12] Jeffreys, Gender Hurts, Chapter 6.
[13] For example Az Hakeem, in his gender identity disorder clinic in London, writes, “The ratio of biological males to females referred to the service is approximately six to one.” Az Hakeem. “Psychotherapy for Gender Identity Disorders.” Advances in Psychiatric Treatment, 18, pp. 17–24.
[14] Kitty Barber. “A Tranny Close to Home.” November 27, 2012. http://kittybarber.wordpress.com/tag/ladystick/ Accessed January 25, 2013.
[15] Rachel Moran. Paid For: My Journey Through Prostitution (Dublin: Gill & Macmillan Books), 2013.
[16] Kathleen Barry. Female Sexual Slavery (Englewood Cliffs, N.J.: Prentice-Hall), 1979.

Janice G. Raymond
Biografia
Uma ativista de longa data e acadêmica feminista sobre violência contra mulheres e exploração sexual, Janice Raymond é a ex-codiretora da Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres (CATW). Ela é autora de muitos livros e artigos, mais recentemente o livro Não é uma escolha, não é um emprego: expondo os mitos sobre prostituição e a indústria sexual global (Potomac Press, EUA; Spinifex Press, Austrália). A Dra. Raymond é atualmente Professora Emérito de Estudos da Mulher e Ética Médica na Universidade de Massachusetts, Amherst (EUA), onde lecionou por 28 anos. Em 2007, a Dra. Raymond recebeu o International Woman Award do Zero Tolerance Trust na Escócia.