Estas breves reflexões surgem a partir da observação das tensões que se produzem a propósito da aprovação da Lei do Aborto na Argentina*
É certo que o aborto acaba sendo um ganho de liberdade civil para uma mulher, em uma civilização sustentada pelo contrato sexual-social e, ao mesmo tempo, uma questão de sobrevivência para todas as meninas e mulheres que, diariamente, experimentam a violência sexual por parte dos homens em suas casas, nas ruas, no trabalho, escolas e universidades… o sistema prostituinte.
Porém, quando se fala ou discute sobre o aborto se omite o fato concreto que há um homem por trás da necessidade de abortar. Me incomoda ainda mais que alguns ou muitos homens façam uma discussão sobre os corpos das mulheres, auto excluindo-se do problema, quando estão completamente envolvidos, e mais, são a causa do problema.
Enquanto continuarmos apelando somente ao direito de decisão das mulheres no discurso sobre aborto, sem dizer quem (te) engravida e porque (te) engravida, se pode evitá-lo — atenção que aqui não se trata de pílulas, camisinhas ou responsabilidade afetiva — se trata de contrato sexual e heterossexualidade compulsória, se trata de coito, prática sexual penetrativa/reprodutiva com os homens, fundamento de sua política sexual, seguirá existindo o problema, por isso me/nos incomoda.
“Em nome do prazer de quem eu engravidei e em nome do prazer de quem eu estou abortando?” (Revuelta Femenina, julho de 1970).
A política sexual vigente é, precisamente, o uso desmedido de nossa vagina para o prazer masculino. Tem sido um abuso sistemático de nossos corpos, incutido em nós como prazer — colonização psíquica e sexual, como uma doutrinação, ancorada na visão falocrática, que tem impregnado as relações entre os sexos, sobretudo no último terço do século XX, por meio da aparente “revolução sexual” que conduziu a novas formas de submissão sexual, disfarçadas de liberdade sexual ou “consentimento”.
Para este novo século do fim do patriarcado, ou seja, de desnaturalização do contrato sexual e descrédito das instituições patriarcais, a política sexual é um debate que precisa ser feito para transformar as relações entre os sexos e dos sexos. Em palavras claras e simples: é preciso debater a prática naturalizada do coito, ainda que isso incomode as mulheres feministas [que vivem assim].
Conhecemos a necessidade real de abortar para muitas mulheres por gestações não-desejadas ou resultadas de estupro, e sabemos que as instituições não questionarão a prática do coito, porque é a base para seu poder. As leis não protegem nossos corpos e seus frutos, nem o governo, nem as polícias, os tribunais… nenhuma o fará. Nunca o fizeram, menos ainda com as mulheres que foram violadas sexualmente.
Tem sido e somos as mulheres e as mulheres lésbicas feministas, em qualquer contexto e condição, que trazemos à luz as violências de tantos homens.
Falar de coito/ penetração, ato sexual que dá prazer aos homens, cujo efeito de ejaculação — orgasmo masculino — é depositado no interior da vagina e do colo uterino, com grande probabilidade de gravidez para as muheres, é central no debate sobre o aborto. Além de ser profundamente explicativo para as meninas e mulheres jovens que estão observando o processo.
Não podemos seguir condescendentes com um “modelo sexual universalizado” — tanto quanto o sujeito moderno — apoiado por mitologias, rituais e teoremas misóginos que têm cancelado e deslocado o prazer próprio das mulheres, de todas — o orgasmo feminino — sem necessidade de coito.
Desmistificar o coito é vital para a liberdade das mulheres [não só o amor romântico que, aliás, envolve muitas penetrações].
Não se trata de oprimir mulheres e desencorajar a luta feminista, pelo contrário, é muito importante contar com as condições mínimas de proteção e atenção diante de tanta violência masculina. O importante é não confundirmos as reivindicações e o resultado das leis com o debate de fundo.
Graças às análises de nossas antecessoras é que temos aprendido a nomear esta realidade, para reconhecer como tem sido imposta a nós a política sexual masculina, ao colocar o coito no centro das relações entre os sexos. Por isso, acredito que ficarmos com “o velho problema do aborto” (Revuelta Femenina) não faz mais sentido. A proposta consiste na abertura de cada uma, em sua singularidade, a nossa única e verdadeira revolução feminina: a revolução clitórica.
Quero mencionar, especialmente, a essas autoras que me inspiram e elevam:
Carla Lonzi (1970). La mujer clitórica y la mujer vaginal (em português, aqui: Mulher clitoriana e Mulher vaginal)
Adrienne Rich (1980). Heterossexualidade Compulsória e existência Lésbica
Carole Pateman (1988). O contrato sexual
María-Milagros Rivera Garretas (2019). Los manifiestos de Rivolta Femminile. La revolución clitórica
Andrea Franulic Depix (2019). La revolución será clitórica o no será
María-Milagros Rivera Garretas (2020). El placer femenino es clitórico.
*que inclui a figura de “pessoa gestante”.
Texto de Jessica Gamboa Valdés, diponível aqui.