feminismo
e as lésbicas?

Lésbicas sempre existiram, desde que o mundo é mundo. O próprio termo é derivado dos poemas de Safo — uma importante poetisa grega, que viveu na Ilha de Lesbos centenas de anos antes de Cristo, e se dedicou a ensinar arte às suas alunas. Mesmo nessa época, o “tribadismo” era visto como prática imoral, vergonhosa. Ser mulher e amar uma igual já era um ato abominável.

Safo e suas alunas, por Amanda Brewster Sewell, 1891.

Essa discriminação ainda persiste. Como mulheres que amam mulheres, somos duplamente odiadas. Repudiadas e perseguidas. Não só rejeitamos nosso papel sexual, como não amamos aqueles que nos oprimem. Justamente por isso, sofremos constantes tentativas de invisibilidade e silenciamento.

Uma dessas recentes tentativas é a popularização do entendimento do gênero enquanto auto-identificação. A crença numa sexualidade fluida, baseada em performances, é totalmente contrária ao que significa ser lésbica: resistência.

Eis aqui o relato de minha trajetória, da defesa do “não-binarismo” ao abolicionismo de gênero.

O que é gênero?

O conceito de gênero foi criado e adotado pelo patriarcado com fins hierárquicos e subordinativos. Basicamente, consiste em um sistema político de violência às mulheres, diretamente ligado aos processos de socialização. Não é uma questão de identidade ou subjetividade individual.

As socializações feminina e masculina, que se dão a partir do nascimento, são opostas e complementares. Enquanto o macho aprende que deve ser forte e dominador, a fêmea é ensinada a se manter submissa e obediente. Além disso, aspectos físicos e comportamentais padronizadores são devidamente propagados, e qualquer ação ou sujeito que fuja à norma é imediatamente hostilizado. Nesse contexto, observamos que gênero não é algo natural ou voluntário, mas sim uma imposição.

“Gênero não é um sentimento — é um abuso de direitos humanos contra uma classe inteira de pessoas, pessoas chamadas mulheres.”
(Andrea Dworkin)

Considerando todo o cenário de injustiças e disparidades, é seguro dizer que o feminismo não busca a igualdade entre os gêneros, uma vez que estes foram criados justamente para reforçar as diferenças e, consequentemente, as vulnerabilidades da classe inferiorizada. A medida realmente eficaz seria a abolição dessas definições — em vez de uma “reforma”, com novas nomenclaturas e significações, como é proposto por um número considerável de ativistas (genderqueers).

Por que a Teoria Queer prejudica lésbicas?

Sou uma mulher lésbica. Por não ser “feminina”, já fui confundida várias vezes com o sexo oposto. Isto é, a partir da leitura da minha aparência (cabelo, roupas, postura), as pessoas logo me associavam ao universo masculino. Tanto que, por um bom tempo, eu acreditei ser um homem trans —e, sinceramente, boa parte das lésbicas passou por isso. [Falo mais sobre minha vivência aqui]

Repensei toda a minha infância, relembrando os momentos em que fui julgada por gostar de “coisas de menino”; assisti vídeos de pessoas que estavam transicionando (FTM = female to male), comemorando quando a voz ficava mais grossa, ou quando o primeiro fio da tão esperada barba nascia; desejei, mais do que tudo, estar naquela situação: confortável com meu corpo, me vestindo e me comportando da maneira que eu queria, sem ser questionada.

Estava me preparando psicologicamente para contar a minha família que gostaria de iniciar o tratamento com testosterona, quando comecei a ver também depoimentos de mulheres que haviam parado a transição, que haviam desistido de mutilar seus corpos em prol de uma identidade masculina. Ouvi suas argumentações e passei a me perguntar: Será que essa mudança realmente iria resolver o meu problema?

Então, veio o boom da Teoria Queer. Termos como “não-binarismo”, “gênero fluido”, “linguagem neutra” e afins inundaram as conversas em meus círculos de amizade, principalmente na internet e no meio acadêmico. Com isso, deixei de lado a ideia de ser um homem trans e passei a me considerar uma pessoa não-binária. Era uma maneira “mais fácil” de admitir que não me identificava com a ideia de ser mulher, sem que precisasse inundar o meu organismo com hormônios.

Com o tempo, novamente, vieram mais reflexões e questionamentos: Ora, se eu me assumo não-binária por não concordar com o que é imposto pela sociedade como sendo “coisa de mulher”, significa que as mulheres em geral estão perfeitamente confortáveis com isso? Eu realmente sou diferente delas, ou estamos todas em um mesmo barco? Alegar que não pertenço à classe feminina, por motivos subjetivos, me protegeria da violência? Obviamente, não.

Assumir uma nova identidade e gritar para o mundo “Não sou mulher!” é uma atitude totalmente contrária ao raciocínio feminista, que tem por objetivo lutar pelo direito das mulheres — em vez de simplesmente negar o que somos, exatamente por não cumprirmos com o nosso papel sexual. Não tem lógica!

Não é exagero dizer que a Teoria Queer é a cura gay disfarçada com muita purpurina. Não é preciso pensar muito para perceber que não faz sentido algum empurrar lésbicas para um novo padrão (recheado de conceitos próprios), ao invés de encorajar que estas continuem rompendo com as normas sociais, machistas e heteronormativas, como mulheres.

O silêncio seletivo da comunidade LGBTQ+

Averdade é que não existe segurança quando se é mulher. Nem quando se está inserida no meio LGBT — um espaço (supostamente) acolhedor. Prova disso são discursos que, por exemplo, criticam lésbicas que se negam a se relacionar com pessoas “que se identificam como mulheres, mas têm pênis”. Insistem, com frequência, em nos convencer de que nossa sexualidade não é mais importante que a “ID de gênero” alheia. Ou seja, usam da coerção para convencer mulheres a fazerem sexo — tática típica de estupradores. [Para saber mais, pesquise sobre Cotton Ceiling]

Ainda assim, quando uma mulher torna-se ativista queer, não é tão ovacionada quanto um homem — mesmo que ambos espalhem as mesmas ideias. Um cara que usa coroa de flores, batom, saia e salto alto é admirado, visto como um “descontruíde”, revolucionário; em contrapartida, uma mulher que deixa a feminilidade de lado (corta o cabelo, para de se depilar, usa roupas mais largas), sofre preconceito.

É importante lembrar, também, que as minorias sociais são múltiplas e as resistências, diversas; então, apesar de desafiarem o patriarcado heterossexual, os integrantes da classe LGBT possuem vivências distintas.As experiências de mulheres lésbicas, em particular, são continuamente apagadas.

Com o acréscimo de outras letras, o movimento torna-se cada vez mais “plural” (ênfase nessas aspas). Enquanto isso, a luta das mulheres permanece em segundo plano. Em resumo, nesta sigla, o “L” é meramente ilustrativo.

Como o capitalismo lucra com isso?

Simples: usufruindo do liberalismo que se instaurou nos movimentos sociais. Utilizando-se da militância para fazer marketing — afinal de contas, a falsa ideia de empoderamento gera muito dinheiro. O ativismo político tornou-se, basicamente, um nicho de mercado. Companhias se posicionam “a favor” dos movimentos apenas para anunciar seus produtos. Isso não é militar, é lucrar em cima da luta das minorias.

“Nem simplesmente uma classe, nem simplesmente um grupo de status, o gênero é uma categoria híbrida enraizada simultaneamente na estrutura econômica e na ordem de status da sociedade.”
(Nancy Fraser)

“Há mais de dois gêneros”, diz a camiseta. Na hora de comprar o produto, o cliente deve escolher entre os tamanhos masculino ou feminino. Chega a ser cômico.

No Brasil, temos alguns exemplos. Vamos começar pela Avon: propagando a noção de que a feminilidade é “para todEs”, a empresa de cosméticos estendeu suas vendas para além do público composto por mulheres — atingindo também aqueles (homens afeminados) que acreditam que gênero é performance. De acordo com o slogan da própria campanha: “Lacre também é luta”. Não, eu não estou brincando.

O programa Amor & Sexo (exibido pela Rede Globo), por sua vez, leva ao ar um conceito muito pobre de feminismo, onde as mulheres estão mais preocupadas com a falácia da “liberdade sexual” e da “quebra de tabus” — que serve aos homens, inclusive — do que com a atual exploração da classe e seu desejo por autonomia. O debate flui de maneira rasa, caricata e teatralizada, ainda muito atrelado aos ideais patriarcais. Apesar disso, os níveis de audiência só aumentam.

Até mesmo a Playboy — sim, a revista que sempre objetificou e enriqueceu às custas dos corpos de mulheres — quer “militar”, colocando Pabllo Vittar estampado em uma de suas capas. Isso sem mencionar a legenda (foto ao lado) fazendo uma referência — totalmente descontextualizada — a Simone de Beauvoir, em seu livro “O Segundo Sexo”. Ao receber críticas, o(a) responsável pela administração da página rebateu: “Se quiser, será SIM (mulher). Ninguém (e isso inclui você) tem o poder de impedir a vontade e a liberdade dos outros serem o que desejarem ser”, novamente, fazendo alusão à ideia de que ser mulher é uma escolha subjetiva e pessoal.

Por fim, aquela que mais se beneficia com o aumento da população trans: a indústria farmacêutica. Afinal, aqueles que se submetem à transição necessitam de hormônios e cirurgias — colocando suas próprias vidas em risco. Condicionar pessoas a acreditar que precisam de componentes químicos, aliados à mutilação cirúrgica, para que então possam se sentir “confortáveis” em seus corpos é, no mínimo, abusivo. Infelizmente, muitas crianças estão expostas a isso, tomando medicamentos bloqueadores de puberdade e visitando os supostos “especialistas em transgeneridade”. Seus pais, além de influenciados pelos meios de comunicação (que, obviamente, servem aos interesses capitalistas), não querem ser tachados como intolerantes, e realmente acreditam que estão fazendo o bem aos seus filhos. Por isso, aceitam acriticamente os conceitos (bem fundamentados e cheios de academicismos) referentes à “identidade de gênero”.


Estes são apenas alguns indícios (bastante resumidos, por sinal) de como a militância queer afeta não só a mim, mas a toda uma classe. É uma questão coletiva. Mulheres (e até crianças!) estão sendo prejudicadas.

Talvez agora você entenda meu lado, ou talvez prefira ignorar tudo o que eu disse, limitando-se a me rotular como transfóbica. Tudo bem, eu não ligo. Não odeio pessoas trans — como já disse, quase me tornei uma. Minha crítica é à chamada “ideologia de gênero” que só reforça estereótipos; à militância que tenta enfiar na cabeça de lésbicas que elas são “homens em corpos de mulher”; ao “ativismo de esquerda” que beneficia e alimenta o sistema dominador.

Exponho aqui estas verdades na esperança de que alguma lésbica, inserida em meio à febre queer (assim como eu já estive), tome consciência do quanto está se prejudicando. No fim das contas, fomos, somos e sempre seremos nós por nós.


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