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Entrevista com Carol Hanisch e Kathy Scarbrough

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Entrevista com Carol Hanisch e Kathy Scarbrough

Carol Hanisch e Kathy Scarbrough são editoras do Meeting Ground Online, um blogzine que se descreve como “Pela Libertação das Mulheres e da Classe Trabalhadora”. São ambas feministas radicais veteranas do Movimento de Libertação das Mulheres, com quem tive o privilégio de aprender nessa entrevista.


Não conhece as convidadas? Fica aqui uma apresentação rápida:

Carol Hanisch foi membro-fundadora do coletivo Radical Women de Nova York em 1967. Iniciou o protesto do grupo em 1968 contra o concurso Miss América Pageant, onde ela e três outras pessoas interromperam o concurso pendurando uma grande faixa com os dizeres “Libertação das Mulheres” na bancada. Hanisch escreveu o artigo “O Pessoal é Político” (1969) e foi editora do livro Feminist Revolution (1975), lançado pelo grupo Redstockings. Ela também fundou a revista Meeting Ground (1977), que teve continuidade como o blogzine MeetingGroundOnLine.org, um site “para a libertação de mulheres e das pessoas trabalhadoras”. Carol também fez parte de movimentos anti-racismo, anti-guerra, trabalhista e ambiental.
Seus artigos e discursos podem ser encontrados no site de Carol Hanisch (original em inglês): http://carolhanisch.org/

Kathy Scarbrough conheceu Carol Hanisch e Kathie Sarachild em 1979, quando seu então grupo feminista da faculdade as convidou para um debate, logo após a publicação da versão censurada do livro Feminist Revolution. Foi membro das Redstockings por algum tempo, no início dos anos 80, e alinhou-se com ideias socialistas/comunistas através do feminismo. Scarbrough participou do movimento Anti-Guerra e de Solidariedade Latino-Americana nos anos 80 e foi para Cuba com a Brigada Venceremos em 86. Participou de algumas tentativas sôfregas de reviver o Movimento de Libertação das Mulheres no final dos anos 80 e início dos anos 90. Co-edita (com Carol Hanisch) o “blogzine” Meeting Ground Online, e é ativa em alguns grupos de esquerda locais em Nova Jersey, sendo um deles focado em questões de imigração, e também do grupo Feminists in Struggle (FIST). Kathy é PhD em neuroendocrinologia reprodutiva em 1990 e define-se como alguém que “entende o sexo até o nível de genes individuais”.

Nessa entrevista, falei com as duas incansáveis feministas radicais sobre a história do movimento feminista radical norte-americano, a relação com a Esquerda, as dificuldades organizativas e os aprendizados que podem deixar para as feministas mais jovens nas fileiras da luta hoje.


1. Nos anos 60/70, muitas feministas radicas vinham de outros movimentos, como o Movimento Pelos Direitos Civis ou a Nova Esquerda. As mulheres muitas vezes participavam de múltiplas organizações e movimentos ao mesmo tempo. Quão importante foi esse “multiativismo” para o desenvolvimento da teoria e consciência feminista radical?

Carol Hanish: O envolvimento em múltiplas lutas foi e ainda é importante, tanto quanto seja possível — não apenas para o feminismo, mas para outros movimentos sociais. Isso de fato contribuiu para as radicais teorizarem melhor na altura, e isso ainda é verdade.

Fomos enormemente influenciadas pelo Movimento pelos Direitos Civis, Poder Negro e pelos movimentos trabalhistas. Mesmo aquelas que não participaram diretamente sentiram esse impacto. Foi um período de grande aprendizado para a maioria de nós, um duro enfrentamento do que realmente estava acontecendo depois de muitas mentiras que tinham passado por verdades nos EUA. Aprendizados sobre raça, classe, imperialismo (especialmente na Guerra do Vietnã) e pobreza e repressão e supressão usados contra aqueles que lutavam por direitos e libertação. Agora estamos passando por outra grande exposição sobre quão “excepcional” os EUA realmente são, incluindo quanto a fundação e a prosperidade da “América” pelos europeus foram baseadas na escravidão africana e na exploração de pessoas imigrantes racializadas e mão-de obra branca forçada, colonização e abate de nativos americanos e as repercussões.

Depois de várias décadas durante as quais o anticomunismo empurrou essas verdades para baixo do tapete, muitas de nós entramos na década de 1960 tendo que reavaliar e reaprender nossa história — feminista e radical — e também aprender quão profundas eram as condições terríveis do presente. E ainda estamos aprendendo.

As mulheres sempre foram ativas em movimentos radicais, embora frequentemente forçadas a operar nos bastidores. Os Direitos Civis/Poder Negro e outros movimentos nos ensinaram a pensar sobre nossa própria opressão como mulheres e a importância de nos organizarmos em uma força a ser reconhecida ao invés de tentarmos elevar-nos individualmente além da nossa sorte. Vimos outros ganhando alguma libertação e, portanto, acreditamos que era possível também para as mulheres.

Também tivemos influência de revoluções socialistas em outros países. A revolução chinesa teve um grande impacto em algumas de nossas teorias. Vemos a influência do “Diga as coisas como elas são” do Movimento dos Direitos Civis, e de “Fale dores para lembrar dores” da revolução chinesa sendo combinadas com “Bitch, Sisters, Bitch” em um cartaz que penduramos em reuniões de conscientização da Radical Women de Nova York em 1968. Era um método que havia sido empregado com sucesso antes de nós.

2. Sinto que, apesar das gerações mais jovens de mulheres estarem crescendo em uma altura em que o feminismo é “divertido” e até “popular”, ironicamente, essas jovens são mais difíceis (ou menos prováveis) de se organizar em grupos, coletivos e organizações reais. Parece que o “ativismo individual” é a mais nova tendência, uma espécie de “feminismo empreendedor”, no qual uma mulher individual faz sua parte sozinha e isso basta. O que pensam disso? Estamos falhando em recrutar mulheres?

Estamos todas fracassando em nos organizar de uma maneira suficientemente poderosa e devemos examinar o porquê disso. Alguns grupos são ativos, mas pequenos, e não conseguimos desenvolver uma estrutura e uma teoria capazes de unir uma organização com poder suficiente para fazer grandes mudanças. E não é apenas no Movimento de Libertação de Mulheres. Grupos do movimento desmoronam facilmente, ou pelo menos não têm força suficiente para atrair e manter membros em crescimento.

Francamente, muitas de nós, veteranas, olhamos para trás e vemos quanto ainda não foi resolvido, e que perdemos muito do que tínhamos ganhado ao passo que a teoria que tornou isso possível foi enterrada. Enquanto isso, a vida cotidiana se tornou mais exigente e frustrante. A enorme disparidade entre o 1% e o resto de nós e a perspectiva sombria para o planeta esgota a esperança e a paciência. Paramos de pensar grande e começamos a procurar um pouco de alívio aqui e ali.

Nossos movimentos, como o resto da sociedade, são atingidos pela ideologia do sucesso individual em oposição à conquista da libertação para todos. A adoração de celebridades e o “sucesso” pessoal fazem parte disso. Algumas mulheres passam seu tempo apenas cultivando suas carreiras ou seu “empoderamento” pessoal e às vezes até atacam o movimento feminista que tornou possível seu sucesso.

É predominante e prejudicial para os Movimentos quando a competição entre indivíduos e grupos leva à falta de unidade. A conveniência das mídias sociais e da Internet leva muitas a acreditarem que clicar e comentar é tudo o que precisa ser feito. O “sonho americano” de hoje é obter o máximo de cliques!

Além disso, nossa atenção continua se afastando das opressões da vida cotidiana da mulher/pessoa comum e pulando de uma situação urgente após a outra, muitas vezes sem entendimento comum das conexões ou como construir esses grupos de interesse únicos. Parece que não conseguimos ir além da pequena abordagem de “grupo de afinidade”. Não há ninguém organizando as organizadoras.

Enquanto isso, grupos liberais de pautas únicas que são bem financiados, geralmente por fundações corporativas ou ricas, são capazes de plantar e fazer crescer sua linha política liberal e nos afundar. No começo, fizemos muito com muito pouco dinheiro. Não há qualquer possibilidade de que possamos “esgotar” o dinheiro deles, portanto, temos que encontrar outras maneiras de fazer o trabalho.

“Pequenos grupos sozinhos não têm poder suficiente, precisamos de uma maneira de federar pequenos grupos para aumentar o poder”, diz Kathy Scarbrough

KS: Já vi a Carol falar sobre a necessidade de organizar as organizadoras antes. Só contemplar esse conceito é interessante. Pode ser bom ter dezenas de pequenos grupos se as organizadoras trabalharem juntas. É mais fácil entrar em acordo num pequeno grupo do que em grupos maiores, onde se gasta muito tempo tentando fazer isso. Mas pequenos grupos sozinhos não têm poder suficiente, então precisamos de uma maneira de federar pequenos grupos de afinidade para aumentar o poder.

Sobre a sua outra pergunta, parece-me que muitas mulheres estão gastando tanto tempo nas mídias sociais, conversando entre si e compartilhando artigos, além de polêmicas com oponentes que não têm tempo ou interesse de irem para o terreno, para a organização cara a cara. É bom compartilhar e descobrir o que está acontecendo, mas precisamos fazer algo com esse conhecimento! Crie um programa para ação coletiva. Estou em um grupo que está tentando recrutar mulheres para ação coletiva, mas há uma grande competição com os esforços de mídia social de nossas membros.

As mídias sociais podem ser poderosas para iniciar uma discussão nacional, mas precisamos aprender mais como usá-las de maneira poderosa e não virarmos alvos nelas.

CH: O “feminismo divertido” faz parte da tentativa da cultura atual de nos entreter até a morte — às vezes, literalmente. É novo apenas até certo grau. É espantoso que muitas mulheres achem “divertidos” os itens de “tortura feminina” que jogamos na lata de lixo da liberdade no Miss America Protest em 1968. Mas algumas tentaram fazer com que o Miss America Pageant Protest se concentrasse em “diversão” também. Muito pouco do que enfrentamos hoje é novo.

“As mulheres como classe nunca serão livres sob o capitalismo ou sob condições de supremacia branca.”

3. Feministas radicais ainda são as principais agentes na linha de frente das lutas para abolir a prostituição e a indústria do sexo hoje. E essas são, sobretudo, reformas legais. Nós sabemos a importância das reformas para as mulheres — voto, estudo, aborto, etc — mas essas lutas podem consumir muito tempo, de modo que podemos facilmente nos tornar “ativistas monotemáticos”. Isso não borra as linhas entre ação radical e reformismo? Onde está a separação aqui e como podemos balancear ambos para não perder o norte?

CH: A organização monotemática é melhor quando incorporada em um grupo com uma visão e posição comum sobre o todo com um programa articulado para orientar o trabalho. Ainda não é muito claro como fazer isso de forma bem-sucedida, especialmente em nossa situação atual, em que as radicais geralmente não são muito eficazes no cenário geral. Parte disso pode ser devido a nossas próprias falhas, mas parte disso tem a ver com a dispersão física e teórica. Não há publicações feministas radicais que combinem teoria e ação.

A unidade não pode apenas ser exigida ou reivindicada, deve ser entendida e forjada na prática. Fale em teoria e muitas feministas se opõem como se isso fosse autoritário ou interpretam à sua maneira, mas as pessoas não podem se unir sem uma teoria compartilhada.

Por outro lado, temos acadêmicas que querem “teorizar” o feminismo sem nenhuma conexão com a prática, a ação, a história precisa ou, especialmente, colocar as teorias à prova. A luta pela teoria é irrelevante a menos que seja uma luta pela verdade, não para mostrar quão inteligente você é.

Algumas pessoas acham muito mais confortável trabalhar em pautas únicas, pois parece mais fácil. Isso significa que elas não precisam se preocupar em defender ou avançar o todo. Um único problema pode parecer mais “factível” sem a “bagagem” do todo, mas o poder do todo pode dar suporte essencial à pauta única que a impulsiona e a mantém em movimento nas raras situações em que as reformas são conquistadas. Quando as reformas não fazem parte de um programa claro do que realmente queremos e precisamos, sua vitória parcial pode fazer com que o objetivo radical desapareça, ou pelo menos se perca o momento e então tenhamos que começar do zero.

A grande questão para a organização de pauta única é: “Como ela se integra ao todo para tornar o todo mais poderoso?”. Como lidamos com a vitória ou a derrota da luta limitada — ou, mais provavelmente, como lidamos com as vitórias ou reformas parciais que são oferecidas para nos calar a boca, sem conceder aquilo pelo que realmente estamos lutando?

Continuo pensando que deve haver uma maneira de usar as reformas para exigir MAIS, em vez de resultar na maioria das pessoas indo para casa com um suspiro de alívio quando um pedacinho é ganho, que é essencialmente o que aconteceu com a luta pela revogação do aborto que buscava dar poder às mulheres sobre nossos próprios corpos.

A decisão Roe x Wade da Suprema Corte se baseou em questões de privacidade e não reconheceu o aborto como um direito da mulher. Também continha uma série de restrições que deixaram a porta aberta para as centenas mais que foram adicionadas desde então. O aborto tornou-se gradualmente indisponível em 90% dos condados dos EUA, embora ainda seja considerado “legal”, a menos que a Suprema Corte anule Roe x Wade.

KS: A vitória parcial do aborto mostra como raça e classe econômica afetam o trabalho do Movimento de Libertação das Mulheres. Como você descreveria a relação que Cindy Cisler (e outras profundamente envolvidas na questão do aborto no final dos anos 60 e início dos anos 70) tinha com o movimento de libertação das mulheres como um todo?

CH: Cindy estava profundamente enraizada no Radical Women de Nova York, um dos grupos fundacionais nos EUA. Ela participou de reuniões, participou de conscientização e de outras ações que não apenas sobre aborto. Ela esteve envolvida no Miss America Protest e ajudou na publicação do [livro] NOTAS DO PRIMEIRO ANO. Ela elevou nossa consciência sobre a importância de Repelir vs. Reformar [NT: sobre a política de combate às drogas nos anos 70], na qual muitas de nós estávamos ativas, o que por sua vez fortaleceu seu trabalho pela revogação das leis do aborto.

“Para ser boa na luta pela liberdade, é preciso ser uma combatente pela liberdade.” — Carol Hanisch

4. Falando nisso, afinal, o que significa ser uma feminista radical em termos de prática política?

CH: Para mim, significa enfrentar, analisar e atacar a opressão feminina em suas raízes, a qualquer custo, e manter o que realmente queremos bem à frente e ao centro. Significa estar disposta a correr o risco de seguir pelo caminho que o coração amedrontado tem medo de trilhar — lutar pela verdade, liderar, enfrentar novos caminhos, colocar o pensamento necessário no não-resolvido. Para ser boa na luta pela liberdade, é preciso ser uma combatente pela liberdade. Eu me arrepio quando ouço acadêmicas falando sobre como elas estão “teorizando” a libertação das mulheres, geralmente para torná-las menos ameaçadoras para os poderes que existem.

KS: Significa entender que as mulheres como classe nunca serão livres sob o capitalismo ou sob condições de supremacia branca e agir de acordo. Não se trata de “garantir o seu” sob o sistema atual, mas de mudar o sistema inteiro.

CH: Sim, isso é bastante básico. Ao mesmo tempo, precisamos lembrar que o trabalho do Movimento de Libertação das Mulheres é focar no fim da supremacia masculina, enquanto simultaneamente enfrentamos tudo o que está entre nós e a libertação. As mulheres são tão facilmente convencidas a colocar as necessidades dos outros à frente das nossas. Aprendemos com a experiência que se não lutarmos por nós mesmas, ninguém vai.

5. Embora muitas feministas radicais tenham vindo da esquerda marxista — e, na minha opinião, é difícil negar a influência de Marx na teorização feminista radical — muitas escritoras feministas radicais dizem que o relacionamento com as chamadas “feministas socialistas” não era muito bom. Não era apenas controverso, mas muitas vezes antagônico em muitos tópicos. Por que? O que podem nos contar sobre a relação do MLM com a esquerda naquela altura?

CH: É muito complicado explicar bem de forma sucinta. A década de 1960 e o início da década de 1970 foram um período de grandes turbulências e muito aprendizado. Nosso entendimento de termos como socialismo, comunismo, feminismo, radical, liberal e assim por diante, estava em andamento. Ainda está, claro.

Nos anos 60, estávamos saindo de um período anticomunista, quando qualquer associação com o socialismo ou Marx poderia causar muitos problemas, se não mortes. A maioria de nós estava muito desconectada dessa história, o que impedia nosso pensamento.

O termo “feminista socialista” representava um amplo espectro e ainda representa. Algumas queriam ter pouco a ver com o marxismo e outras queriam ter pouco com o feminismo, e etc. Algumas eram muito apegadas às organizações da Nova ou Velha Esquerda em que participavam e relutavam em ofender os homens nessas organizações ao salientar que homens oprimiam as mulheres. Algumas viam o sexo como uma classe semelhante à classe econômica, enquanto outras atribuíam a opressão das mulheres apenas ao capitalismo, enquanto outras sustentavam que estava enraizado em ambos. Novamente, muito disso foi distorcido pelo fato de que ser chamado de socialista ou comunista podia trazer punição ou demissão como “ultrapassado”. Como resultado, o entendimento desses termos ainda não é muito unificado.

Uma divisão primária nos primeiros anos foi entre o que foi chamado de “feministas” e “mulheres políticas”. Muitas “políticas” atribuem a culpa ao “sistema”. Isso poderia significar capitalismo, mas muitas vezes vinha com uma grande dose de “enraizamento” psicológico.

Originalmente, as “políticas” agitavam principalmente por melhores papéis, tratamento e liderança dentro da Nova Esquerda, principalmente do SDS (Estudantes para uma Sociedade Democrática), enquanto as “feministas” (na verdade feministas radicais) assumiam a sociedade em geral. Sabíamos que não receberíamos melhor tratamento dos homens de esquerda isoladamente, porque todas vivemos na sociedade em geral e sentimos suas pressões. Por exemplo, feministas radicais acreditavam que homens e capitalistas se beneficiavam da opressão das mulheres e demandavam de ambos: os centros públicos de cuidados à infância E exigiam que os homens dividissem o trabalho doméstico e os cuidados infantis. Muitos grupos eram compostos de ambas as tendências e frequentemente se sobrepunham. Eventualmente, chegamos mais ou menos sob a égide da libertação das mulheres.

“Aprendemos com a experiência que se não lutarmos por nós mesmas, ninguém vai.”

Muitas das “RadFems” de hoje não estão muito interessadas ​​nas questões de socialização das tarefas domésticas e dos cuidados com as crianças e em fazer com que os homens as compartilhem ou nas mudanças que precisam ser feitas na sociedade em geral para possibilitar essas mudanças. Por exemplo, nunca teremos bons cuidados infantis públicos gratuitos, enquanto os capitalistas apropriam o dinheiro do nosso trabalho nas áreas de trabalho pública e privada (família) e desperdiçam nossos impostos em trilhões na máquina militar dos EUA.

Eu tive discordâncias com algumas RadFems que afirmavam que os homens são livres e não são explorados por nada, nem mesmo pelo capitalismo, e não vêem um motivo para se unir a eles. Muitas das primeiras feministas radicais sustentavam que os homens eram ambos, opressores e aliados necessários na luta pelo socialismo, mas precisávamos construir um movimento de libertação das mulheres muito forte para possibilitar essa aliança.

6. Feministas radicais são abertamente de esquerda, algumas são comunistas, outras são anarquistas, maoístas etc. Mas também há um setor considerável de feministas radicais que recusam a influência de Marx em nossa teoria — porque ele é homem; ou há quem diga que não podemos contar com marxistas e a Esquerda porque a URSS falhou com as mulheres e as organizações de esquerda de hoje ainda são dominadas por homens e apóiam agendas anti-mulheres. O que vocês acham disso? Na sua opinião, qual deveria ser agora a relação entre o movimento feminista e a esquerda mais ampla (especialmente os partidos de esquerda)?

CH: Elas estão certas sobre a maioria da esquerda ainda ser dominada por homens e que se opõe ao feminismo real, mas ignorar a supremacia masculina na esquerda não vai funcionar. As feministas radicais devem continuar lutando contra a supremacia masculina na esquerda, desde dentro como de fora. Todo grupo de esquerda deve ter um núcleo feminista, em vez de um núcleo feminino.

Muitas das RadFems atuais parecem mais serem as descendentes políticas de lésbicas radicais e feministas culturais, que muitas vezes eram separatistas. Elas se apropriaram do termo “feministas radicais” para significar “extremo” mais do que “raiz”. Muitas ainda consideram a recusa do relacionamento com os homens como a coisa mais “radical” que se pode fazer e os problemas que mais as interessam não incluem aqueles dos relacionamentos com homens e de creche que a maioria das mulheres tem que lidar em suas vidas diárias. Isso não é bom para organizar um movimento de massas.

Dispensar a URSS como um completo fracasso, incluindo nos ganhos para as mulheres, é o resultado de uma história deliberadamente distorcida. Mulheres e trabalhadores estavam obtendo ganhos importantes sob o socialismo/comunismo antes de serem reprimidos pela reação imperialista, muitas vezes liderada pelos EUA, bem como por erros internos cometidos quando alguém tenta algo tão grande e novo. A maior parte da história, mesmo aquela escrita por aqueles que se dizem socialistas, não fala muito sobre isso. As mulheres em muitos países socialistas obtiveram o voto antes de nós, nos EUA. Também fizeram incursões na tentativa de resolver os problemas de assistência à infância e trabalho doméstico. Enquanto isso, os EUA ainda nem aprovaram a Emenda dos Direitos Iguais, garantindo direitos legais básicos às mulheres!

Por mais desconfortável que seja, as mulheres não têm escolha a não ser continuar lutando contra a supremacia masculina e pelo apoio à libertação das mulheres nas formações de esquerda, incluindo os partidos. Fazer o contrário é ser deixada para trás. Nenhuma metade da população pode excluir a outra metade e esperar um resultado positivo.

Estamos enfrentando forças tão poderosas que precisamos de todos a bordo. Temos que ter cuidado, porém, quando ouvimos os homens dizerem: “Deixe as mulheres liderarem”. De alguma forma, isso me parece outra maneira de os homens não fazerem sua parte no trabalho revolucionário, pois é muito difícil e não é imediatamente recompensador.

“As mulheres não têm escolha a não ser continuar lutando contra a supremacia masculina e pelo apoio à libertação das mulheres nas formações de esquerda, incluindo os partidos” — Carol Hanisch

KS: Não vejo como alguém pode se identificar com o feminismo radical e não considerar Marx. Parece um encolhimento tão sombrio do que era o feminismo radical, e eu o atribuo ao surgimento de organizações de pautas únicas em torno de estupro, pornografia, prostituição e violência contra as mulheres. Essas questões são importantes, mas nunca chegaremos a lugar nenhum sobre prostituição e pornografia se elas forem divorciadas de uma compreensão do capitalismo.

Temos que lutar contra a exploração capitalista de nossos corpos, bem como contra a idéia de direito masculino aos corpos das mulheres. Ambos são opressivos. Curiosamente, na minha experiência, são mais frequentemente as feministas socialistas (assim como a maioria da esquerda dominada por homens) que aceitam prostituição e pornografia como “trabalho sexual”.

As feministas fazem parte da esquerda. Precisamos continuar lutando junto dos grupos de esquerda, mas com a nossa própria base de poder independente. Eu não sou integrante de nenhum partido de esquerda, mas estou ciente de que as feministas estão lutando duro dentro do Partido Verde aqui nos EUA.

CH: As “mulheres políticas” da Nova Esquerda se interessavam muito mais pelo psicológico. Algumas das “feministas” foram muito mais influenciadas pela esquerda antiga e pelo movimento operário. Curiosamente, grande parte da teoria que saiu desse grupo era mais materialista, como a linha pró-mulher, que afirmava que as mulheres não eram “bagunçadas” (no sentido de terem que mudar a si mesmas), mas que “bagunçavam as mulheres” (oprimidas). Eu estava no grupo materialista, embora não me sentisse bem em me chamar de marxista porque nunca tinha lido muito além do Manifesto. Além disso, muitos que se autodenominavam marxistas eram muito críticas à libertação das mulheres, o que fez com que muitas de nós resistíssemos a ler Marx a princípio.

Quando finalmente chegamos à fonte, descobrimos que eles frequentemente citavam Marx errado. Grande parte da Nova Esquerda era anticomunista. Por exemplo, no Vietnã: alguns eram contra toda a guerra ou se opunham ao recrutamento militar ou à guerra como uma questão moral. Alguns apoiaram a Frente de Libertação Nacional do Vietnã em sua luta para libertar o Vietnã do imperialismo dos EUA. Era muita trapalhada e, portanto, não era tão forte quanto poderia ter sido.

KS: Isso é interessante da perspectiva de criar um movimento maior a partir de grupos de afinidade menores. As coalizões anti-guerra eram assim tão amplas ou, na verdade, um grupo razoavelmente coeso chamava uma manifestação e os outros apenas vinham com suas próprias demandas?

CH: Há uma diferença entre mobilizar e organizar organizações e movimentos contínuos. As enormes mobilizações contra a guerra foram coalizões, com cada grupo listado no anúncio e cada um mantendo seus próprios slogans e símbolos nas marchas. Mais ou menos como as marchas das mulheres recentes. Apesar de que sempre houve uma tentativa de subestimar ou calar a ala radical.

“Temos que lutar contra a exploração capitalista de nossos corpos, bem como contra a idéia de direito masculino aos corpos das mulheres.” — Kathy Scarbrough

7. Um dos desafios que temos agora é o apoio hegemônico à narrativa trans em detrimento da agenda de libertação das mulheres. Contudo, vejo que isso já é mais que um problema teórico ou mais que uma questão do capitalismo se beneficiando da oferta de soluções altamente médicas/cirúrgicas/cosméticas para problemas que são sociais.

Conforme a ideologia trans afeta cada vez mais pessoas da classe trabalhadora (incluindo inúmeras mulheres, principalmente jovens lésbicas), como você acha que podemos lidar com essa tomada neoliberal do movimento feminista e da esquerda? Como as mulheres podem responder a isso?

CH: Certamente temos que aumentar a consciência das pessoas sobre o que isso significa não apenas para as mulheres, mas para a esquerda e a sociedade como um todo. Existe algo muito perigoso para todos nós em permitir que aquilo que não é baseado na realidade passe como verdade, e até pressionar outros a entrar no embalo da fantasia, como ser forçado, por lei, a usar pronomes que desafiam a realidade. Há uma forte conexão aqui com o “pós-modernismo”, outra contribuição acadêmica para subverter o materialismo científico.

Grande parte da esquerda está abandonando sua própria reivindicação de materialismo científico e se recusando a apoiar metade da população e justamente quando condições objetivas estão em ascensão para o que poderia ser um grande salto em frente. Duvido que este truque divisivo seja acidental.

KS: Isso é particularmente difícil porque, é claro, acreditamos em direitos civis para todos. E não é apenas o apoio de esquerda à narrativa trans — muitas instituições tradicionais compraram esse discurso, por exemplo, bibliotecas, departamentos de veículos motorizados, governos estaduais. Na cidade de Nova York, você pode ser multado em US$ 250.000 por “errar o gênero” de alguém.

O problema é que isso coloca “direitos trans” contra os direitos das mulheres. As mulheres precisam do direito de espaços públicos femininos justamente por causa da violência e ameaça de violência que enfrentamos diariamente. As mulheres lutaram e conquistaram alguns programas que visam nivelar o campo de jogo e não vamos desistir deles.

As pessoas trans precisam de proteções aos direitos civis e as Feminists in Struggle — um grupo feminista recém-formado — acreditam que isso é melhor quando se cria uma nova categoria para a proteção dos direitos civis: os estereótipos sexuais. Não se deve ser discriminado por manifestar comportamentos, vestimenta, aparência, aparência etc., normalmente associados ao sexo oposto. A proteção contra os estereótipos sexuais também ajudaria muitas mulheres.

CH: Feministas radicais querem acabar com o gênero, não expandi-lo. Sempre houve homens que pensaram que as mulheres têm mais que os homens, e as mulheres transexuais agem dessa maneira. Os homens trans, por outro lado, estão abandonando a luta feminista com uma espécie de solução pessoal, que têm o “direito” de fazer, mas isso não é bom para a libertação das mulheres e, portanto, está aberto à crítica das feministas.

“Abolir estereótipos sexuais de uma vez por todas exige um movimento, não podemos fazê-lo individualmente.” — Kathy Scarbrough

KS: Parece verdade que várias pessoas escolheriam fazer isso sozinhas, num esforço para escapar das jaulas da supremacia masculina, em vez de trabalhar para mudar o mundo, para que todos pudessem se sentir confortáveis ​​em seus próprios corpos. Aumentar a consciência dos pais sobre a política envolvida nisso (para que eles respondam adequadamente quando seus filhos expressam infelicidade por serem meninas ou meninos) e sobre jovens lésbicas é particularmente importante. Parece que a comunidade de lésbicas nos EUA já é bastante ativa nessa área.

É uma mensagem feminista central de que somos forçadas a obedecer aos estereótipos sexuais ou seremos punidas. Nenhum de nós, mulheres ou homens, se encaixa nesses estereótipos. A pressão de gênero deve ser abolida, não estar em conformidade ou ser justificada. Mas abolir esses estereótipos de uma vez por todas exige um movimento, não podemos fazê-lo individualmente.

Kathy Scarbrough, PhD em Endocrinologia Reprodutiva, apresentou “Sex & Gender, and Women’s Liberation” no Left Forum de 2016. Para assistir em inglês: https://youtu.be/bc9a-23kvc0

8. Se naquela época, nos tempos do WLM, quando o movimento estava nas listas da CIA, as mulheres já tinham que lidar com as acusações da Esquerda sobre o feminismo ser “política de identidade”, agora, após uma imensa tomada neoliberal, os berros estão mais altos que nunca. Como vocês veem essa questão do “identitarismo”? Existe realmente um “feminismo identitário”? Se sim, como podemos combater isso?

CH: A opressão feminina não é uma “identidade”. As fêmeas são metade da população, o sexo atualmente explorado pelo capitalismo e pela supremacia masculina. Na raiz da opressão das mulheres está a nossa capacidade de gerar filhos, não a forma como pensamos sobre nós mesmas. A redução do sexo (e da raça) a “identitarismo”, como faz a esquerda (e não são apenas os homens brancos), é uma tentativa de silenciar e parar nossos movimentos de libertação. Temos que lutar pela realidade, mesmo que isso signifique não ser uma mulher “legal”. Uma revolução, como Mao disse uma vez, não é uma festa do chá.

KS: Só o fato de saber que a acusação de “política de identidade” é uma maneira de tentar descartar suas preocupações é muito útil para combatê-la.

“Na raiz da opressão das mulheres está a nossa capacidade de gerar filhos, não a forma como pensamos sobre nós mesmas.” — Carol Hanisch

9. Muitas feministas criticaram a falta de estrutura na organização política do movimento feminista. Entre outras coisas, elas geralmente apontam como isso corroeu o movimento por dentro. Em termos de organização, o que estava errado? O que estava certo? Que conselhos vocês dariam às feministas mais jovens para se organizarem melhor?

CH: Este é um problema enorme. Um tamanho único não veste todo mundo. Até certo ponto, a estrutura frouxa dos primeiros dias da conscientização era uma força, porque permitia que um grande número de mulheres participasse e o movimento crescesse rapidamente. Você não precisava de um diploma universitário ou outras credenciais. As pessoas sempre precisam ter sua própria experiência de luta para realmente entender e aprender como contribuir para a luta.

No entanto, a falta de estrutura se transformou em uma fraqueza quando chegou a hora de concordar com a teoria, tomar ações e consolidar nosso poder depois que o movimento se espalhou. Não ter uma estrutura viável também permitiu que qualquer mulher se apresentasse como porta-voz do movimento sem a experiência, o entendimento e a responsabilidade de fazê-lo. As autopromotoras, geralmente com a ajuda da mídia de massa, viram uma oportunidade e correram soltas, arruinando o trabalho de construir uma unidade real em torno das demandas de massa.

É sempre melhor que um grupo ou movimento possa chegar a um consenso, mas quando não puder, a votação poderá ser necessária para avançar. Precisamos ter unidade para construir poder suficiente para fazer o tipo de diferença que pode nos libertar. Simplesmente pedir às pessoas geralmente não funciona muito bem. Você precisa explicar por que as pessoas devem cooperar com você ou com seu grupo. Não existe uma receita mágica para resolver o problema de estrutura. Temos que olhar ao nosso redor e voltar à história para ver o que funciona e o que não funciona em determinados estágios de desenvolvimento e estarmos dispostas a atualizar quando o que estamos fazendo não atende às nossas necessidades.

KS: Eu acrescentaria que nosso nível atual de individualismo apresenta problemas aqui. Muitas vezes, quando o consenso falha e o grupo decide votar, aquelas que perdem a votação deixam o grupo. Nós nunca seremos poderosas se as boas feministas não permanecerem nos grupos e lutar pelo que achamos certo. E também aceitar que, às vezes, você não conseguiu convencer as demais.

CH: Todas nós abandonamos grupos — ou fomos forçadas a sair deles. Às vezes, o grupo não é o que esperávamos. Eu não diria que uma mulher SEMPRE deve permanecer em um grupo que não combina com ela, pois sua presença não seria construtiva para o grupo ou para o indivíduo. Mas, nesse caso, é necessário encontrar outro grupo ou formar um novo que funcione para você e procurar maneiras de se aliar a outros grupos, quando possível. Grupos pequenos não são ideais e nunca devem ser uma meta em si, pois geralmente não são muito mais poderosos que um indivíduo, mas às vezes são o melhor que podemos fazer.


Carol Hanisch e Kathy Scarbrough são co-editoras do blogzine Meeting Ground Online Pela Libertação de Mulheres e da Classe Trabalhadora: http://meetinggroundonline.org/


Artigos traduzidos do Meeting Ground Online: