Entrevista com Carol Hanisch
Carol Hanisch

A seguir, um trecho de uma entrevista de 2013 de Carol Hanisch, de Gabrielle Tree, para seu blog Menantum, que infelizmente não está mais disponível.


GT: Como você ficou associada à famosa frase feminista: “o pessoal é político”?

CH: Depois de um período no Movimento dos Direitos Civis do Mississippi e de trabalhar alguns anos na sede nova-iorquina do Southern Educational Educational Fund (SCEF), uma organização que mobilizava pelos direitos e liberdades civis no sul, me tornei uma das fundadoras do Movimento de Libertação das Mulheres (WLM). Decidi que o SCEF deveria ter um projeto de libertação das mulheres do sul, que eu organizaria. Isso foi no início de 1969 e nem todos da equipe ficaram entusiasmados com a ideia, inclusive muitas mulheres. Aquilo que virou o artigo “O Pessoal é Político” era, inicialmente, um memorando para as mulheres da equipe da SCEF, tentando conquistá-las para o novo WLM e para a conscientização. Como acontecia com outras organizações radicais, muitos no SCEF temiam que o WLM “dividisse a classe trabalhadora”. Eles chamavam de “terapia” de conscientização e “umbiguismo”, alegando que questões como o acesso ao aborto e a partilha do trabalho doméstico com homens eram questões pessoais, não políticas. O memorando respondeu a essa acusação e foi repassado ao WLM e, eventualmente, foi impresso sob o título “O Pessoal é Político” nas “Notas do Segundo Ano”, editadas por Shulie e Anne Koedt. Ainda está sendo reimpresso em todo o mundo.

GT: O que a levou ao feminismo, de modo geral, e ao feminismo radical em particular?

CH: Experiência de vida, principalmente. Em 1967, eu tinha 25 anos e já tinha visto e sentido a picada da discriminação e do assédio sexual em muitas frentes. Minha experiência e contatos no CRM me levaram a pensar nas mulheres como um grupo oprimido e me ensinaram como começar a combater isso. Eu era, na época, uma radical, pois acreditava que era necessário chegar à raiz dos problemas, mudar tudo de baixo para cima, não apenas ficar satisfeita com algumas reformas que não serviam a todas e poderiam ser retiradas a qualquer momento.

GT: O que o feminismo radical significa para você?

CH: Desenterrar e destruir as raízes da supremacia masculina, tanto a via pessoal/individual quanto a via institucional e estrutural. Significa perceber que a opressão das mulheres não pode ser superada sem acabar com o racismo e alcançar um sistema econômico e social que contemple a igualdade para todos, algo que certamente não dá com o Capitalismo. Significa buscar o que realmente queremos, em vez do que nos dizem que podemos obter.

GT: Eu ouvi você mencionar “trabalho de movimento” em conversas anteriores. O que é “trabalho de movimento”?

CH: Um movimento é quando organizações de pessoas se unem em uma força poderosa para superar a exploração e a opressão e mudar a sociedade como um todo, não apenas para progredir na própria vida. Portanto, o trabalho de movimento está em se organizar com outras pessoas para ganhar poder suficiente para realmente vencer. Às vezes é pago, mas geralmente não é. Pode ser escrever, protestar, falar, teorizar, organizar eventos ou levar as pessoas a eles, digitar um folheto, fazer chamadas telefônicas, manter registros organizacionais — o que for necessário.

GT: Você vê uma relação entre todos os tipos de opressão (sexismo, capacidade, racismo, homofobia etc.)?

CH: E tudo isso atravessa as classes econômicas também! Essa é uma pergunta difícil de responder, especialmente em poucas palavras. Certamente existe uma relação e as pessoas devem ser reunidas para combater o “inimigo em comum”, mas cada opressão tem suas próprias raízes e sua própria história e, às vezes, exigências contraditórias. Estas podem quebrar ainda mais. Por exemplo: quando se trata de racismo, há uma diferença entre a história daqueles que foram massacrados por colonizadores europeus que queriam sua terra e aqueles que foram trazidos acorrentados da África para cá para trabalhar e aqueles que fogem para aqui de países onde o imperialismo dos EUA tornou a vida miserável. As demandas de um grupo podem colocar um obstáculo para outro.

O medo de não ser “politicamente correto” pode levar ao silêncio, que também não é a resposta. Precisamos encontrar maneiras de lidar com isso sem pular na frente um do outro ou cair em xingamentos. Precisamos ser estratégicos. Não acho que a maioria das pessoas seja clara sobre isso, muito menos que estejam preparadas para ser. Não devemos ter medo dos argumentos que surgem. A união bem-sucedida entre as divisões é muito difícil e complicada. Precisamos de uma teoria melhor sobre isso, mas provavelmente será elaborada no decorrer de (termos) mais prática.

Certamente temos que ter cuidado para não misturar tudo simplesmente. A mistura é fraca. A unidade genuína é forte. Um exemplo recente: as mulheres acharam muito difícil lidar com o assédio sexual e estupro em alguns campos do Occupy porque “gênero” substituiu “sexo” no léxico. As mulheres transexuais ganharam muita atenção para seus próprios problemas, mas foram as mulheres nascidas do sexo feminino que estavam sendo estupradas e ignoradas. Muitas humanas nascidos com útero não são mais reconhecida por muitos como um grupo oprimido reconhecido, mesmo enquanto a opressão das mulheres está enraizada em nossa capacidade de gestar e parir. Tais confusões tornam impossível a organização contra a supremacia masculina.

GT: Que tipo de compromisso você assumiu com o trabalho de movimento? O que você ganhou e/ou sacrificou?

CH: Tem sido a prioridade da minha vida adulta. No entanto, tive que trabalhar em empregos fora de movimentos para me sustentar, exceto por alguns breves períodos. Ainda trabalho. Ao trabalhar em meio período, para ter mais tempo para o movimento, sofri muita insegurança financeira, que por sua vez reduziu o trabalho de movimento. Ganhei bem menos dinheiro durante a minha vida, então recebo menos Seguro Social. Tive poucas férias, não posso pagar para ir a filmes ou shows ou acompanhar as tecnologias como telefones celulares e iPads. Fico em crise toda vez que o carro ou alguma coisa quebra.

Estar tão envolvida no Movimento também causou um certo isolamento da sociedade em geral. Grande parte da cultura criada pelas empresas é insatisfatória quando se tira os óculos cor de rosa. Além disso, algumas pessoas chamam você de louca ou estridente ou de “nostálgica” ou dizem que você “ leva tudo a sério”. Eu super entendo esse último.

No lado positivo, eu certamente sei mais sobre como o sistema realmente funciona. Não acredito que a ignorância seja uma bênção ou que leve a boas decisões. Eu fui beneficiada pelas vitórias: aborto e outros direitos reprodutivos (por mais limitados que sejam), direito de usar calças e sapatos baixos na maioria das situações e um pouco mais de respeito pelas mulheres do que antes do WLM. Há mais aceitação de uma mulher como indivíduo independente e não somos consideradas uma aberração da natureza (por todos) se não casamos e temos filhos, algo que tive de aguentar por causa da falta de apoio adequado dos homens e da sociedade.

Repleto de dificuldades com algumas lutas intramovimento dolorosas, o período de florescimento do WLM no final da década de 1960 e no início da década de 1970 foi certamente o período mais intenso e gratificante da minha vida — exatamente ali, com o Movimento dos Direitos Civis. Eu faria tudo outra vez sem pensar duas vezes, porque eu teria sido infeliz num trabalho regular, levando o tipo de vida que teria tido enquanto mulher, seja na força de trabalho pública ou em casa. Ainda há muito a ganhar, mas fizemos o mundo um pouco melhor e eu fui beneficiada com isso.

GT: Quais são alguns dos obstáculos atuais que os movimentos feministas enfrentam e como podemos superá-los?

CH: Uma pergunta dessas… dava um livro! Apresentar os problemas certamente é mais fácil do que descobrir como superá-los. Isso exigirá o ressurgimento de um movimento de libertação das mulheres corajoso e radical.

Um obstáculo que dificulta hoje é a dificuldade de se sustentar com um emprego de meio período e com baixos salários, como pudemos fazer até o final da década de 1970, quando o custo de vida, especialmente o aluguel, começou a disparar e os salários e a economia estavam estagnados. Mas lembro-me das pessoas trabalhadoras do Mississippi que trabalharam de sol a sol e ainda conseguiam ir a reuniões, marchar e se organizar diante de sérias represálias.

Outra é a falta de um amplo movimento como tivemos na década de 1960, onde as pessoas estavam lutando com suas próprias opressões particulares, mas estavam conscientes de fazer parte de algo maior e mais amplo necessário para grandes mudanças. Muitas das fundadoras do WLM da década de 1960 saíram dos movimentos de direitos civis, contra a guerra ao Vietnã, luta contra a pobreza, da esquerda e da luta pela liberdade de expressão e muitas vezes continuaram a trabalhar também nesses movimentos. Algumas experimentaram um pouco disso no movimento amorfo do Occupy.

No entanto, existem obstáculos específicos ao ressurgimento de um WLM que têm a ver com a direção que o movimento feminista tomou. Quando o WLM se deparou com a inevitável reação — tanto de homens como do establishment — muitas feministas radicais baixaram a cabeça ou desistiram. Perdemos nosso impulso como uma força abrangente contra a supremacia masculina. Quando foi que você ouviu esse termo pela última vez? A organização em torno de um problema só ou o desenvolvimento pessoal e as soluções pessoais substituíram amplamente a luta coletiva mais ampla pela libertação de todas as mulheres. Como o trabalho pelas reformas substituiu a luta pelas grandes mudanças, todas as mudanças abrangentes, a própria linguagem e as idéias do feminismo radical inicial desapareceram. Até o “Movimento de Libertação das Mulheres” tornou-se o “movimento das mulheres” mais domesticado. O movimento pelos direitos ao aborto tornou-se sobre “escolha”, que é mais aceitável. Mais recentemente, um “gênero” amorfo substituiu um “sexo” específico. Mulheres com medo de ofender a sensibilidade do público são apresentadas e a liderança das radicais é suprimida. A história de muitos desses problemas entra em mais detalhes no livro “Revolução Feminista”, de Redstocking, e nos discursos no meu site.

GT: Tenho reparado que muitas das pessoas que fazem trabalho de movimento com o que as feministas críticas da raça* chamam de “linha de fundo”, muitas vezes são desconhecidas do público em geral. Por exemplo, tive de pesquisar pelo seu nome e só consegui entrar em contato por causa do seu site. Você acha que essa dinâmica — de não saber os nomes de nossas trabalhadoras do movimento que estão operando na base — reflete uma lacuna entre ativismo e academia?

CH: Como a face pública do “feminismo” virou para a academia, saber os nomes não é a parte mais crucial do problema! Mas sim ter o público em geral excluído das ideias, agitações e demandas das mulheres como um todo. A academia está cheia de teorizações e pesquisas que têm pouco a ver com a vida das massas de pessoas e suas necessidades. Com demasiada frequência, eles competem com os movimentos populares em vez de servi-los. Mesmo o bom trabalho realizado na academia geralmente é inacessível para os não-acadêmicos.

Não reconheço o “movimento de mulheres” sobre o qual muitas historiadoras escrevem. Essas histórias do WLM moderno nem sequer começam pelos anos de fundação na década de 60, mas começam pelos anos 70, após a criação dos departamentos de Estudos da Mulher, quando muitos começaram a ensinar uma forma individualista segura, apolítica, “pós-feminista”. Os meios de comunicação de massa se juntaram. Muitas escritoras pularam fora nos últimos anos cruciais da organização de um movimento de massa militante antes que este se transformasse em várias formas de luta individual e formas reacionárias de política de identidade. Alguns dos primeiros trabalhos escritos do WLM podem ser incluídos em suas histórias ou ser citados por escritores e palestrantes profissionais de tempos em tempos, mas as radicais que multiplicaram o movimento não recebem uma plataforma atualmente, mesmo na história das ideias. Alguns desses acadêmicos são mulheres que conhecemos há muito tempo, mas raramente nos convidam para suas conferências ou outros eventos para discutir a história ou o que poderíamos estar pensando agora.

Da mesma forma, os escritores do establishment procuram citações nas celebridades — ou citam acadêmicas ou citam-se entre si. Essa também é a situação em outros grandes movimentos de mudança social. Até o movimento trabalhista é em grande parte liderado por advogados, não por pessoas no campo de trabalho. Intelectuais profissionais escrevem as histórias, falam em nosso nome, realizam as conferências e, no processo, tornam-se os “porteiros” do movimento, excluindo as pessoas e idéias que são um sério desafio para o establishment. Ao ignorar (intencionalmente ou por negligência) as vozes e as atividades do que está se agitando abaixo, elas contribuem para o silenciamento dessas vozes populares tão necessárias na atual situação mundial terrível. Elas assumem isso como seu direito e é assim que deve ser, uma vez que sua posição prova que são “inteligentes” e “pessoas inteligentes precisam administrar o país”. Hoje é impossível imaginar que permitiriam que Fannie Lou Hamer, uma péssima agenciadora e líder no Partido Democrático da Liberdade do Mississippi, fizesse esse discurso ao Comitê de Credenciais da Convenção Democrática que hipnotizou a audiência da televisão em 1964 e nos ajudou a entender a situação no Mississippi.

Não me interpretem mal, acredito que advogados e a intelligentsia têm um lugar importante nos movimentos, mas obviamente eles não estão indo muito longe sem a sabedoria e a atividade das bases.

GT: Que conselho você pode dar para as novas gerações de feministas que estão fazendo trabalho de movimento?

CH: Atreva-se a praticar o feminismo do “nós”, em vez do feminismo do “eu”. A autoexpressão é agradável, mas a libertação de nossa classe sexual é crucial para nossa verdadeira felicidade. É necessário unir mulheres para vencer; você não pode simplesmente “mudar a si mesma” porque você não é o problema — a supremacia masculina é. Participe de um grupo ou organize um, mesmo que seja pequeno e informal. Um movimento sem organizações é impotente. Uma organização sem um movimento amplo e profundo pode conseguir muito pouco. Precisamos de ambos e precisamos estar cientes de como eles se relacionam — outra área que precisa de mais teoria operacional. Reúna um grupo de mulheres e faça conscientização. Não tenha medo de discutir sobre o que você quer e precisa e como as mulheres podem ganhar muito, agora e no futuro. Baseie seu trabalho na realidade, não em ilusões. Não estamos vivendo em uma era pós-feminista. Isso não será verdade até que estejamos numa era pós-supremacia masculina.

Organize-se nas bases e deixe sua liderança florescer. Seja autêntica. Esqueça a celebridade — seguir uma ou tentando ser uma. Reconheça a liderança crucial daquelas que tão facilmente se afogam por aquelas que estão mais ocupadas assegurando seus empregos ou dispostas a comprometer o que não as afeta diretamente. As pessoas estão literalmente morrendo de tanto serem comprometidas pelas responsáveis ​​que têm o seu assegurado, apesar de que todas estariam seguras se as pessoas na base, na linha de fundo, tivessem suas necessidades atendidas.

Aprenda com a história para que você não passe a vida inventando a roda e possa se proteger melhor das pausas e das estradas secundárias sem saída. Vá para as fontes originais. Estude o que as pessoas que fizeram essa história deixaram para nós, não basta ir para a última interpretação em segunda mão, servida por aqueles que têm interesse em censurar o que realmente era. Interprete essas fontes originais por si mesma. Estude a reação. Uma boa fonte para documentos originais é o Redstockings Archives for Action, agora disponível em microfilme e de propriedade de algumas bibliotecas. Muitos documentos importantes também estão disponíveis no site.

Se você encontrar, leia as “Notas do Segundo Ano”, editadas por Shulamith Firestone e Anne Koedt. Você ficará surpresa com a precisão com que Cindy Cisler previu em seu artigo “Revogação do aborto (mais ou menos): um aviso para as mulheres” o que o comprometimento com o aborto traria. Uma das melhores histórias recentes de libertação das mulheres é o livro de Carol Giardina, “Liberdade para as Mulheres: Forjando o Movimento de Libertação das Mulheres, 1953–1970”, que abre novos caminhos incorporando a atividade e as influências das mulheres negras dentro e sobre o WLM. “Ousar ser má”, de Alice Echols, é especialmente instigante ao contar os conflitos instrutivos que abalaram internamente o WLM radical inicial.

Algumas de nós que fizeram o WLM acontecer na década de 1960/início da década de 1970 ainda estão aqui para você consultar, mas chegamos a uma época em que estamos morrendo ou em que a energia da juventude nos deixou e o ímpeto para uma nova insurgência está mais ou menos nas mãos mais jovens.

Por fim, basta fazer. Mire alto para fazer grandes mudanças. Não se preocupe em avaliar alguém ou grupo. Não pense que você tem que aparecer com um evento que vai abalar a terra (é bom, mas raro). Lembre-se de que a mídia social é excelente para os detalhes da mobilização, mas quando se trata de organizar, teorizar e apresentar boas ideias, nada substitui a conscientização e a discussão presenciais.