Histórias de uma ex empregada doméstica
Cenas do filme “Histórias Cruzadas” que ilustram o contexto americano pós libertação, marcado pelo Aparthied no Mississipi, um dos estados do Sul marcados pelas Leis de Jim Crow. ¹

O Brasil é o país com maior número de empregadas domésticas do mundo. O quê eu e 7 milhões de pessoas temos em comum?

Quando eu tinha aproximadamente 8 anos, eu morria de medo do fogo. Em um de seus poucos dias em casa, minha mãe esbravejou “hoje você vai perder uma de suas frescuras”, pegou uma caixa de fósforos com palitos longos e cabeças vermelhas, segurou minhas mãos e me guiou até o fogão.

Eu chorava compulsivamente! Minha mãe, muito serena, porém firme, reforçou — “ você não pode ter esse medo de fogão, sendo uma mocinha”. Pegou um palito dobrou em minhas mãos e riscou. Repetimos o processo algumas vezes até que eu não chorasse mais.

Empregada doméstica e babá desde muito nova, mamãe estava me dando um alerta da realidade — eu, preta e pobre, realmente não poderia ter medo do fogo do fogão, não poderia ter nojo de limpar o banheiro, não poderia simplesmente não saber lavar, passar e dobrar roupas. Como num prelúdio, ou numa premonição, ela sabia que eu não seria poupada. E realmente não fui! Aos 15 anos, diante de um câncer de mama que quase matou minha heroína, eu assumi seu posto. Uma infância/adolescência interrompida, e eu apenas mais uma menina negra e empregada doméstica.

Dados da Pesquisa Nacional de Amostra Domicilar (PNAD) do Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia (IBGE) apontam que em 2015, 88,7% das trabalhadoras domésticas entre 10 e 17 anos no Brasil eram meninas e 71% eram negras.²

Eu não queria esse destino, muito menos minha mãe, que tanto batalhou para que eu me preocupasse apenas em estudar, mas a vida assim o quis. Diante do sofrimento que o câncer dela trouxe, eu não poderia simplesmente fechar os olhos e chorar, tive que enfrentar meus maiores medos.

Acordava às 6, arrumava as coisas para o dia que iniciava às 8 no trabalho e terminava numa correria para pegar a primeira aula no ensino médio às 18 e 45. Minha última aula terminava às 10 e 20, quando levava meu corpo cansado para o ônibus, calculando quantas horas poderia dormir, isso se tudo estivesse bem em casa.

Não era somente o cansaço físico, também acumulava o cansaço mental do estudo e do sofrimento tratamento quimioterápico de minha mãe. Eu escondia tudo que passava e sentia de todos à minha volta, tinha vergonha. Não poderia demonstrar que estava destruída de todas as formas possíveis. Era apenas uma menina, que gostaria que tudo aquilo fosse um sonho ruim. Mas o pesadelo durou dois anos ininterruptos, que mudaram minha vida, minha autoestima, minha forma de olhar o mundo.

O trabalho, desgastante e pesado, passa desapercebido para muita gente. Por que me irritava tanto colocarem um prato sujo, cheio de restos de comida, na pia que acabei de esvaziar? Por que me trazia tanto desespero ver uma mancha de hidrocor no uniforme que eu teria que lavar? Por que me consumia ver o armário com roupas desorganizadas?

Era como se todo o esforço valesse muito pouco ou nada. E essa é uma das máximas do trabalho doméstico — ele não pára, o organismo vivo de uma casa de classe média/alta, precisa manter seu funcionamento e a empregada é a responsável pelo seu bem estar, sua conservação.

Eu jamais poderia dizer por todos 7 milhões de trabalhadores domésticos do Brasil³ (Dados da OIT — Organização Internacional do Trabalho, organismo da ONU responsável por questões de trabalho), mas, por minha própria experiência, 10 anos atrás.

Quando você se esforça muito e o fruto do seu suor vale muito pouco (não somente financeiramente), é muito natural internalizar que não “importa” o seu esforço, você nunca será suficiente. É como ser um “meio humano”, invisível, não notável, por muitas vezes desprezado. Esse processo trouxe marcas intensas e preços altos na minha autoestima.

Um dos legados da escravidão, um dos resquícios da sociedade brasileira que insiste em dizer que somos todos iguais, mas que grita matematicamente e sufocadamente, que o aphartheid nunca foi velado. Dados das Ongs Criola e Geledés, no relatório — Situação dos Direitos Humanos das Mulheres Negras no Brasil⁴, apontam que “53.6% das famílias chefiadas por mulheres no país são lideradas por mulheres negras (IPEA, 2013). Dessas, 63.4% das mulheres negras estão ocupadas no trabalho doméstico (IPEA, 2012), recebendo 86% dos rendimentos das mulheres brancas com a mesma ocupação. Chefes de família, sozinhas, pobres, negras e domésticas.

Ficava difícil acreditar numa vida de conforto pra mim. Tinha a sensação de que o “sonho de uma vida melhor” ficaria para a minha próxima geração. Não conseguia me ver longe do trabalho pesado e do pouco dinheiro. Era a realidade nua, crua e cruel.

Passei por muitas coisas nesses dois anos. Pude ver pessoas simples, que se importavam se estava de pé por muito tempo, ou que sabiam que não teria força física para carregar móveis pesados. Ví mulheres com empatia, que se preocuparavam quando eu me contorcia de cólicas. Mas pude ver o lado obscuro, que muita gente só mostra quando as cortinas se fecham e o show para o público acaba. Isso principalmente nas faxinas que fazia esporadicamente, para aumentar o pouco que recebia.

Chamem de sombra como Jung ou de micropoderes como Foucault, eu talvez chamaria de “ser gente“, não somos seres lindos, gentis e perfeitos. Na verdade sabemos ser cruéis, duros e egoistas, principalmente se estamos no nosso hábitat, no nosso reino particular.

Somos rainhas e reis dentro de nossas casas, com o que nós compramos e construímos e as empregadas as servis, que também pagamos com nosso dinheiro. Tudo para manter o ambiente doméstico, bonito, acolhedor, prático.

No espaço chamado lar, pude entender que o ser humano desconta suas frustrações em quem lhe parece “menor”. Sem ter nenhuma ideia da questão de estereótipos das mulheres negras nesse país, percebia olhares de desprezo, de nojo, de desejo e não tinha para onde correr, introjetei ideias de objetificação, subalternidade, inferioridade.

Fico pensando nessas milhares de mulheres, no que vivem, suportam e no impacto dessas experiências na saúde física e mental, na forma como encaram o mundo, se conseguem construir uma autoestima fortalecida, mesmo sendo constantemente inferiorizadas.

No meu caso o processo foi doloroso. Anos pedindo desculpas, sem ter cometido um erro sequer, uma extrema dificuldade de me pronunciar em público, de olhar nos olhos sem tremer, além da síndrome da impostora.

Mas tive muitas oportunidades também. Pude encontrar forças e apoio para seguir estudando (uma tarefa estenuante de jornada dupla), também tive a chance de conhecer pessoas que me incentivaram, acreditadaram no meu potencial, mas sei que nem todas que vivem o trabalho doméstico, tem as mesmas chances.

Hoje, formada psicóloga, tendo viajado para alguns lugares que minha mãe nunca teve oportunidade de conhecer, me dói ver que nós, mulheres negras somos a imensa maioria no trabalho doméstico. Não porque seja um trabalho indigno, mas porque é desgastante, pesado, muitas vezes humilhante e ouso dizer, que a expressiva maioria das que se sustentam pelo trabalho doméstico, não o desejam para seus filhos, elas desejam uma vida melhor.

Nomês do dia do trabalhador, deixo um pouco das minhas histórias com minha primeira experiência profissional, informal e marcante, buscando que todos que me acompanharam até aqui, reflitam sobre as condições de trabalho das mulheres que, muitas vezes deixam seus filhos, sua própria casa, para dedicar-se à outras famílias. Será que estamos libertas? Será que LEI COMPLEMENTAR Nº 150, DE 1º DE JUNHO DE 2015[5], que dispõe sobre o contrato doméstico está acontecendo na sua prática? O que essa expressiva massa feminina e negra tem vivido?

Precisamos dar visibilidade e voz para quem muitas vezes é obrigada a silenciar.

Tamillys Lirio, Mulher Negra, Psicóloga

Fontes

[1] Filme Histórias Cruzadas: Nos anos 60, no Mississippi, Skeeter (Emma Stone) é uma garota da sociedade que retorna determinada a se tornar escritora. Ela começa a entrevistar as mulheres negras da cidade, que deixaram suas vidas para trabalhar na criação dos filhos da elite branca, da qual a própria Skeeter faz parte. Aibileen Clark (Viola Davis), a emprega da melhor amiga de Skeeter, é a primeira a conceder uma entrevista. Apesar das críticas, Skeeter e Aibileen continuam trabalhando juntas e, aos poucos, conseguem novas adesões. Distribuição Disney

[2] Dados da Organização Internacional do Trabalho. Disponível em: http://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-domestico/lang–pt/index.htm

[3] Relatório Mundial sobre trabalhadores domésticos — “Domestic workers across the world:
“Global and regional statistics

and the extent of legal protection” ; Organização Internacional do Trabalho (OIT) — Disponível em https://www.unric.org/pt/actualidade/31011-oit-apresenta-relatorio-sobre-trabalhadores-domesticos-no-mundo

Obs.:Alguns números a nível mundial (dados relativos a 2010):

*52,6 milhões a nível mundial

*83% são mulheres

*29,9 % estão excluídos(as) da legislação nacional do trabalho

*45% não têm direito a descanso semanal/férias anuais remuneradas

*Mais de um terço das trabalhadoras domésticas não tem direito à protecção na maternidade.

[4] A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil: violências e violações — ONGs Criola e Geledés. Disponível em: https://www-geledes-org-br.cdn.ampproject.org/c/s/www.geledes.org.br/situacao-dos-direitos-humanos-das-mulheres-negras-no-brasil-violencias-e-violacoes/amp/

[5] Lei complementar Nº 150, de 1º de junho de 2015.
Dispõe sobre o contrato de trabalho doméstico; altera as Leis no 8.212, de 24 de julho de 1991, no 8.213, de 24 de julho de 1991, e no 11.196, de 21 de novembro de 2005; revoga o inciso I do art. 3o da Lei no 8.009, de 29 de março de 1990, o art. 36 da Lei no 8.213, de 24 de julho de 1991, a Lei no 5.859, de 11 de dezembro de 1972, e o inciso VII do art. 12 da Lei no 9.250, de 26 de dezembro 1995; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp150.htm