Em 21 de fevereiro, a SPACE International, organização liderada por uma sobrevivente que luta contra o comércio sexual, organizou um evento inovador em Londres. “Mulheres racializadas contra o comércio sexual” foi o primeiro evento do tipo a acontecer na Grã-Bretanha, focando especificamente as vozes e experiências de mulheres racializadas no comércio sexual.
O evento destacou a maneira pela qual o comércio sexual depende tanto do racismo quanto do colonialismo para explorar mulheres e meninas em todo o mundo. Os temas abordados pelas palestrantes incluem: a exploração de mulheres asiáticas em zonas militarizadas, a investigação canadense sobre as mulheres indígenas desaparecidas e assassinadas, o trauma geracional transmitido matrilinearmente através da prostituição e a conexão entre a exploração sexual histórica de mulheres negras e meninas durante a escravidão nos Estados Unidos e a super-representação de mulheres negras e meninas na prostituição hoje.
Presidido por Taina Bien-Aimé, o evento contou com oito palestrantes: Rosemarie Cameron (Inglaterra), Vednita Carter (EUA), Bridget Perrier (Canadá), Ne’cole Daniels (EUA), Mickey Meji (África do Sul), Suzanne Jay (Canadá), Roella Lieveld (Holanda) e Ally-Marie Diamond (Austrália/Nova Zelândia) — todas líderes na luta pela abolição da prostituição.
Conversei com quatro participantes que falaram no evento para saber mais sobre suas perspectivas, como se envolveram na luta contra a prostituição e a conexão entre o comércio sexual, o racismo e o colonialismo.
Vednita Carter é uma sobrevivente da prostituição e fundadora da Breaking Free, uma organização de advocacia e serviço direto que ajuda mulheres a escapar da prostituição e da exploração sexual. Suzanne Jay é uma ativista feminista de Vancouver e integrante da Asian Women for Equality (Mulheres Asiáticas pela Equidade). Ally-Marie Diamond é ativista indígena, sobrevivente da prostituição e fundadora do Tranquil Diamonds, um serviço de coaching para mulheres. Taina Bien-Aimé é diretora executiva da Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres (CATW), uma organização sem fins lucrativos dedicada a acabar com a exploração sexual comercial e a primeira organização mundial a combater o tráfico humano internacionalmente.
Raquel Rosario Sánchez: Como vocês se envolveram na questão da prostituição?
Vednita Carter: Eu me envolvi no comércio sexual através da indústria de strip-tease. Em 1972, logo depois que acabei o ensino médio, minhas intenções eram começar a faculdade no segundo trimestre. Uma amiga e eu decidimos procurar um emprego de verão e juntar dinheiro para a faculdade. Vi um anúncio no jornal para dançarinas, dizendo que podíamos ganhar mil dólares por semana. Ambas estávamos entusiasmadas com a possibilidade — achamos incrível que pudéssemos ganhar mil dólares por semana apenas dançando. Nós pensamos que seria dinheiro rápido e fácil. Nós dançávamos o tempo todo, então isso era algo que sabíamos fazer. Fomos a uma entrevista e fomos contratadas imediatamente. Não preciso dizer que não era tanto sobre dançar, mas despir e tudo mais. Foi assim que tudo começou.
Suzanne Jay: Eu, pessoalmente, me envolvi porque era membro de um coletivo feminista que administrava um abrigo para mulheres agredidas, uma linha telefônica de crise de estupro e um centro de organização feminista. Nós respondemos a muitas mulheres que lidavam com prostituição, cafetões e compradores de sexo. Eram mulheres que haviam saído ou que queriam sair da prostituição e que eram membros do coletivo (e até hoje continuam sendo membros). Eu co-fundei a Asian Women Coalition Ending Prostitution (Coalisão de Mulheres Asiáticas pelo Fim da Prostituição) depois de ver como as autoridades eleitas eram desdenhosas para com as mulheres aborígenes que buscavam alternativas à legalização da prostituição. Na época, os políticos que se consideravam “progressistas” estavam tentando banir a venda de mulheres aborígenes na prostituição de rua. Mas eu sabia, do trabalho da linha de crise e da observação clara da cultura de entretenimento em Vancouver, que as mulheres asiáticas também estavam sendo vendidas em espaços cobertos de prostituição, licenciados pela Câmara Municipal, e que não havia aumento de segurança para mulheres asiáticas nessa abordagem. Foi um truque cruel que só tirara a degradação e a violência dos homens contra as mulheres da vista do público e permitiria que os homens exigissem atos mais degradantes e promulgassem mais violência às mulheres fora do escrutínio público.
RRS: Você encontra apoio dentro do movimento feminista ou acha que o lobby dos cafetões tem permeado a maior parte do feminismo moderno?
Suzanne: Eu acho que o neoliberalismo é que permeou o movimento feminista. Minha Coalizão considera fundamental que os grupos oprimidos possam reunir e compartilhar informações e experiências para desenvolver a teoria, cuidar umas das outras e realizar ações para a mudança social. Os cafetões estão aproveitando a cultura do hiperindividualismo para nos convencer de que as mulheres não precisam umas das outras, que cada uma de nós toma decisões num vácuo e numa ampla gama de opções encantadoras, quando, na verdade, as mulheres tomam decisões restritas pelo nosso sexo (patriarcado), a cor da nossa pele (racismo) e se/ou quais alimentos as nossas mães tiveram acesso quando estavam grávidas (opressão de classe). Eu diria que a cultura cafetina suborna as mulheres mais privilegiadas a abandonarem e venderem aquelas de nós que começam com o mínimo.
RRS: Como você se envolveu neste evento?
Taina Bien-Aimé: A Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres sempre trabalhou em estreita colaboração com as sobreviventes, e entendemos que elas são fundamentais para o movimento. Elas viveram a experiência e, em Nova York, as pessoas estão ignorando totalmente as suas histórias. Mas a SPACE International está mudando a narrativa sobre o que é prostituição e como isso as afetou, incluindo seu bem-estar físico e psicológico. Temos uma parceria próxima com a SPACE, então fui convidada para moderar.
Vednita: Eu conheci a autora feminista e sobrevivente Rachel Moran há sete ou oito anos em uma reunião em Washington DC. Nessa reunião, ela explicou sua missão na SPACE International — uma organização internacional liderada por sobreviventes, formada para dar voz às mulheres que sobreviveram à realidade abusiva da prostituição — e eu achei isso maravilhoso. Nós começamos a conversar umas com as outras regularmente e, cerca de um ano depois de conhecer Rachel, fui convidada a participar do Conselho de Administração da SPACE. Estávamos ansiosas para organizar um evento no Reino Unido que centrasse as vozes das mulheres racializadas, e foi assim que fui convidada.
RRS: Você vê alguns remanescentes da escravidão ou do colonialismo no comércio sexual?
TBA: sim. Na prostituição, as mulheres são marcadas e rotuladas. Você pertence à pessoa que possui você. Esta é uma herança da era das plantações no contexto dos EUA. É uma extensão da violência generalizada contra as mulheres que vemos ser normalizada e tratada com impunidade diariamente. A troca de dinheiro não deveria ser uma luz verde para permitir que os homens perpetuem a violência horrível contra as mulheres. Aqui estamos nós, neste movimento #MeToo, e como sociedade podemos entender como isso [assédio e agressão sexual] traumatiza as mulheres quando acontece no local de trabalho, mas se ele lhe der cem dólares, é aceitável? Como isso é possível? Onde está o cérebro dessas pessoas?
A narrativa racial nos EUA é muito complicada. As mulheres negras representam 7% da população dos EUA, mas em algumas jurisdições representam mais de 50% da população prostituída. Entre as jovens traficadas por sexo (crianças e adolescentes com menos de 18 anos), 40% são meninas negras. Os compradores de sexo são esmagadoramente homens brancos. Se você conversar com sobreviventes como Tina Frundt, diretora executiva da Courtney’s House, os compradores de sexo dizem às mulheres e meninas negras e pardas: “Você é feita para a prostituição”, “Seus sentimentos são diferentes dos sentimentos das meninas brancas” e “Seus quadris são feitos para isso”. Muitos deles se baseiam em estereótipos racistas de mulheres racializadas, além da misoginia. Sabemos que as mulheres negras são sexualizadas muito mais do que as meninas brancas, e os compradores sexuais perpetuam essa desumanização.
Ally-Marie Diamond: Na Austrália e na Nova Zelândia, as mulheres e meninas indígenas, maori, tailandesas e das ilhas do Pacífico são imensamente representadas no comércio sexual. Estamos vivendo uma combinação de racismo e sexismo.
Eu me pergunto: se eu não me levantar e falar por elas, quem vai fazer isso? Quem se levantará e falará por minhas irmãs que morreram porque seus estupradores pagantes as espancaram com muita força? Quem vai se levantar e falar pelas minhas irmãs que morreram porque era a fantasia do estuprador sufocá-la enquanto a fodia? Quem vai falar pelas minhas irmãs que perderam a capacidade de dar o presente da vida porque um estuprador pagante empurrou garrafas, pepinos, cenouras, vibradores enormes, saltos de sapato, cassetetes, e tudo mais que suas mentes distorcidas pudessem inventar até agora, tão intensamente em suas vaginas que danificaram irreversivelmente os seus sistemas reprodutivos? Quem vai falar pelas minhas irmãs que não aguentam mais e escolhem a única saída: suicídio? Quem vai falar pelas crianças inocentes que perderam suas mães? Quem vai falar pelas minhas irmãs que estão tão perdidas nessas ruas que tudo o que fazem é consumir drogas e álcool até morrerem de insuficiência renal e hepática? Quem vai falar pelas minhas irmãs que ainda estão presas na vida de um estupro pago sem poder sair?
RRS: Parece que criaram uma incursão nas academias no Norte Global, que vem produzindo defesas para o comércio sexual e contribui para sanear a prostituição. Por que acha que isso acontece?
TBA: Assim como há um lobby de armas e um lobby de tabaco, há um lobby de comércio sexual. Aqui nos Estados Unidos, a penetração mais prejudicial do lobby do comércio sexual tem sido, infelizmente, na academia. Há várias fundações que sustentam a narrativa de que o comércio sexual e a prostituição são “trabalho” e que apoiam os exploradores como “empregadores”. Essas fundações, por sua vez, financiam acadêmicos — particularmente acadêmicos em departamentos de estudos de gênero e departamentos de filosofia — para perpetuarem essa narrativa…
Eu vejo os currículos universitários e é todo um debate unilateral que vê a prostituição como um trabalho e, muitas vezes, as sociedades estudantis convidam profissionais do sexo independentes e autônomas para falar com a sala de aula. Esta análise acadêmica vem da perspectiva de um sistema baseado no lucro e no capitalismo, acima de tudo, não enfocando a exploração de mulheres e meninas em todo o mundo. Esses argumentos não são apresentados de forma justa ou equilibrada, com base em evidências, para que as crianças possam ter suas próprias ideias. As verdadeiras acadêmicas feministas em muitas universidades nos dizem o quanto são evitadas e como é isolante para elas por causa da hegemonia da infiltração do lobby do cafetão na academia.
AMD: “Trabalho sexual” é um termo glorificado para um estupro pago. Isto não são bordéis ou agências de acompanhantes ou casas de massagem ou qualquer outro nome que você queira chamar. Não é trabalho ou indústria. Isso é terrorismo contra as mulheres — um ataque internacional sustentado contra mulheres, meninas e crianças vulneráveis. Eles podem não explodir edifícios ou se explodirem, mas definitivamente explodiram minha mente, meu corpo e minha alma. Eles me mandaram para uma câmara de tortura da qual eu nunca escaparia. Até hoje eu luto para sobreviver, viver, sentir-me digna de ser amada e sonhar.
Muitas das minhas irmãs foram assassinadas — uma delas foi massacrada até morrer, quando um ex-amante recusado passou por um bordel com uma espada, levando todo mundo com quem entrou em contato. Eu ouço as mulheres dizendo que este estupro pago lhes dá poder, alimenta seus filhos. Eu as ouço falar enquanto elas protegem a única estrada que conhecem. Fico feliz por elas terem voz para falar, mas estou aqui para falar pelas minhas irmãs que perderam suas vozes, que não têm forças para falar, que perderam a luta junto com a crença no amor e na própria humanidade. Estou aqui para falar por aquelas mulheres que são a vasta, vasta maioria.
RRS: Como podemos abordar e desafiar a narrativa criada pela academia, na qual as vozes privilegiadas no comércio sexual se amplificam e recusam levar em consideração as mulheres e meninas marginalizadas?
TBA: Os estudantes precisam abordar o problema que essa negligência acadêmica está causando em um discurso público mais amplo. Em qualquer outra área de estudo ou campo, as melhores práticas acadêmicas nos ensinam que devemos mostrar aos alunos os dois lados e que os acadêmicos devem ensinar os alunos a pensar criticamente. Mas quando se trata do comércio sexual, os estudantes estão sendo doutrinados a acreditar que o comércio sexual é um empregador viável para as mulheres e meninas mais vulneráveis do mundo. Para muitas ativistas estudantis, o conceito de “trabalho sexual” tornou-se uma identidade. Essas ativistas dizem: “Eu sou uma profissional do sexo” e você fica com vontade de perguntar: “O que exatamente você faz?”. Faz parte da narrativa cultural dar mais voz a esses liberais hipsters iluminados.
Mas ser prostituída não é uma identidade.
As jovens estão usando isso como uma plataforma para glamourizar o que é a prostituição a tal ponto que a idéia de prostituição se torna outra mercadoria para pessoas privilegiadas… Não é a realidade, no entanto.
Há algo que eu quero perguntar às acadêmicas que promovem o comércio sexual: você vai mandar as estudantes para estagiar na Índia para ver como as mulheres vivem e o preço que o número de homens que entram e as penetram têm no seu bem-estar? A academia deve ter um estágio obrigatório para que as estudantes frequentem o distrito da luz vermelha na Índia ou na Alemanha. Eu me pergunto como essas estudantes reagiriam se ficassem cara a cara com as realidades da prostituição. Se tivessem alguma empatia pelas mulheres tratadas como objetos por homens estranhos que penetram e usam qualquer orifício de seu corpo, elas continuariam a demonizar mulheres como nós, que defendem a abolição da prostituição?
RRS: O que você acha de ativistas que dizem que, se você critica a prostituição, é porque “odeia profissionais do sexo”?
Vednita: Primeiramente, eu sou ativista e uma vez me chamei de trabalhadora do sexo porque eu achava que era o que eu era. Foi só quando consegui me afastar daquela vida e observar o impacto que a prostituição teve na minha vida, que percebi como sofria uma lavagem cerebral para acreditar que fazer prostituição era um trabalho. De muitas maneiras, era mais fácil acreditar nessa mentira do que encarar a realidade do que realmente era — violência — e como isso estava me afetando enquanto eu estava envolvida naquela vida. Eu não odeio “trabalhadoras do sexo”. Apenas me entristece que não possamos nos ver olho a olho nisso, como mulheres. Eu sempre digo que a prostituição é uma extensão da escravidão porque quando se trata de libertar os escravos, alguns escravos pensavam que ser escravo não era tão ruim, mesmo que a maioria quisesse sair. Agradeço que os formuladores de políticas tenham concordado com a maioria e percebido que a escravidão era ruim para todas as pessoas escravizadas, independentemente da opinião da minoria. É assim que devemos ver a prostituição: a maioria das mulheres quer sair.
Eu diria às estudantes ativistas que querem perpetuar o comércio sexual: prostituição não é trabalho, é abuso sexual na pior das hipóteses. Imagine fazer sexo com seu namorado 15 vezes por dia, talvez mais em alguns dias, todos os dias. Nada pode transformar isso em uma boa experiência sexual, mesmo que seja com alguém que você ama. Eu diria “experimente por si mesma”, no entanto, eu não colocaria ninguém nesse tipo de tortura, nem mesmo meus inimigos.
TBA: Acho que seria útil que todos seguissem seus argumentos até sua conclusão lógica. Qual é o destino final com o seu apoio ao comércio sexual? Se você olhar para o modelo alemão de prostituição versus o modelo sueco, na Suécia, antes da lei que visava os compradores de sexo, 80% dos homens acreditavam que não havia problema em comprar mulheres para fazer sexo. A lei sueca incluía um programa educacional para aumentar a conscientização sobre a prostituição e questionava por que os homens sentem que têm direito às mulheres. O que os homens compram quando pagam por sexo? Eles estão comprando poder e controle sobre o corpo de outra pessoa sem se importar com a jornada que a pessoa comprada passou. Sabemos que, na maior parte das vezes, esta jornada incluiu abuso sexual infantil, racismo, violência, falta de moradia, etc. Hoje — 20 anos após a lei sueca ter entrado em vigor — 80% dos homens [na Suécia] são contra a prostituição e acreditam que é inaceitável comprar mulheres para o sexo porque entendem que isso é uma barreira à igualdade de gênero.
No entanto, na Alemanha — que legalizou todos os aspectos da prostituição em 2002 — o Estado criou um ambiente onde os homens estão sendo informados de que é perfeitamente adequado tratar as mulheres como mercadorias compráveis. Você tem cadeias de bordéis em todo o país e bordéis de vários andares para que, numa noite de sexta-feira, os homens possam ir ao bordel local. Há bordéis especializados que anunciam que você pode pagar para tomar uma cerveja, comer salsichas e escolher uma mulher para qualquer ato sexual que quiser. Se você tem um fetiche por mulheres grávidas ou quer um grupal, isso é uma compra legal. Quase 90% das mulheres nos bordéis não são alemãs — são mulheres imigrantes e mulheres racializadas. Além disso, elas são imigrantes indocumentadas, de acordo com o governo alemão. Se você é do Norte Global, as mulheres holandesas e alemãs têm oportunidades educacionais e oportunidades de trabalho que podem acessar. Essas mulheres têm a oportunidade de atingir seu potencial, por isso não precisam preencher os bordéis. Essencialmente, o Estado Alemão promulgou uma lei que dá direito aos homens e lhes diz: “É o seu pedido — não há problema algum se você for e usar mulheres como se fossem um banheiro.” Mas, como país, a Alemanha não tem a oferta de mulheres prostituídas para suprir a demanda que foi incentivada [então eles têm que trazer mulheres de outros lugares]. E é assim que você cria o elo entre o comércio sexual e o tráfico sexual.
RRS: Qual é a sua opinião sobre os serviços de apoio para as mulheres que tentam sair do comércio sexual? Se você pudesse falar diretamente com ativistas que reivindicam abrigos e mulheres que trabalham em serviços diretos para mulheres, o que você gostaria que elas entendessem sobre o comércio sexual?
Vednita: Eu sou o fundadora de um programa em Minnesota chamado Breaking Free. Somos um dos primeiros programas nos Estados Unidos que presta serviços para mulheres e meninas que escapam de sistemas de prostituição e tráfico sexual. Eu comecei este programa por causa da falta de serviços para mulheres e meninas prostituídas em minha própria comunidade e em todo o país.
Quando comecei este programa pela primeira vez em 1996, era quase impossível obter o apoio de vários membros da comunidade, como a polícia, os tribunais, financiadores, etc. Eles olhavam para essa população de mulheres como se merecessem o que passavam por estarem envolvidas na prostituição — tudo o que precisavam era de prisão e nada mais. Durante o primeiro ano da Breaking Free, tudo que fiz foi educar, educar e educar. Finalmente, consegui que as pessoas ouvissem e entendessem a conexão entre prostituição e violência doméstica. As mesmas táticas de poder e controle que mantêm as mulheres espancadas presas na violência doméstica são as táticas que mantêm as mulheres prostituídas presas na prostituição. Portas finalmente começaram a abrir.
Suzanne: Eu acho que a maioria das mulheres que estão trabalhando na provisão direta de serviços tem alguma compreensão sobre o sexismo, o racismo e a violência imposta a seus interlocutores. O problema é que os provedores de serviços também são restritos. Os gerentes, diretores executivos e os financiadores não vão permitir que as trabalhadoras defendam ou sequer imaginem mudanças sociais. Elas podem ser autorizadas a lutar por uma pequena mudança na política, na linguagem ou na prática, mas a profissionalização das posições de trabalho pago prejudica que os conhecimentos traduzidos e conexões entre as mulheres sejam usadas para derrubar o sistema que facilita a prostituição. Por exemplo, aquelas que trabalham em abrigos provavelmente são encorajadas a ter boas relações com a polícia e a “coordenar” em vez de exigir e reclamar em público por melhores respostas (que salvem vidas) às mulheres espancadas, estupradas ou traficadas.
Eu encorajaria às outras a formarem seus próprios grupos voluntários para mudarem e pararem de procurar trabalhadores pagos para fazer mudanças. Algo que aprendi cedo como organizadora é que você não pode contratar alguém para ser um revolucionário.
RRS: O que você diria para alguém que não presta muita atenção ao comércio sexual? O que você diria para alguém que tem uma vaga ideia de que “trabalho sexual é trabalho” e que o comércio sexual tem a ver com “escolhas empoderadas”?
Vednita: Isso não tem nada a ver com ser empoderada. Gostaria de lembrar àquelas pessoas o que eu disse acima, e depois acrescentar que elas precisam pensar nas meninas que estão chegando agora e no futuro. A prostituição é algo que elas deveriam imaginar como uma parte vital de sua vida? Você pode imaginar aquelas menininhas indo ao balcão de emprego à procura de um trabalho e sendo informadas de que tudo o que elas têm disponível é uma posição como uma mulher prostituída e que ela deve aceitar isso ou nada? Garotinhas nunca deveriam sonhar em se prostituir quando crescerem, nunca.
TBA: Eu diria a elas que a coisa importante a se entender sobre mulheres na prostituição é que elas não são diferentes das mulheres imigrantes que procuram asilo, ou mulheres que foram agredidas sexualmente, ou mulheres com problemas de saúde mental, etc. Não são diferentes de qualquer outra categoria de mulheres que foram estupradas, agredidas, abusadas, mutiladas ou torturadas. Como país, precisamos desenvolver protocolos para identificar essas mulheres. Nos EUA, elas vão para a emergência com ossos quebrados e ninguém lhes faz perguntas. A situação da prostituição é a mesma que existia há 50 anos com o tema da violência doméstica. Se uma mulher fosse espancada, a polícia chegaria e pediria aos homens para “serem mais gentis”, “dar uma volta no quarteirão” e talvez ir à igreja para conversar com seu rabino ou padre. Foi só quando o movimento pelos direitos das mulheres disse que nós estávamos de olho no poder e no controle que a abordagem da sociedade sobre a violência contra as mulheres mudou. A prostituição é uma prática discriminatória, mas, como sociedade, ainda não a reconhecemos como violência contra as mulheres. Quem está fazendo mal a essa mulher prostituída? Atualmente, estamos analisando o comércio sexual isoladamente, de modo que todas as questões relativas ao sistema de prostituição giram em torno dela (a mulher), em oposição às pessoas que causam os danos e aos aproveitadores (que são esmagadoramente homens).
RRS: O que você gostaria que as leitoras do Feminist Current que não puderam estar no evento da SPACE soubessem? Quais foram os principais aprendizados?
TBA: É importante afirmar alto e claro que a prostituição é sobre a colonização do corpo das mulheres para o lucro econômico dos homens. Dentro do contexto dos EUA, mas também mundialmente, como uma mulher negra do Caribe, sabemos que no momento em que os colonizadores europeus chegaram às nossas terras, a primeira coisa que fizeram foi estuprar as mulheres indígenas. Então, uma vez que eles dizimaram a população local, eles trouxeram mulheres negras através do tráfico humano. Culturalmente, nossa herança é um sistema de genocídio, tráfico humano e estupro que construiu este país. A escravidão em si era uma instituição cultural nos Estados Unidos. Mesmo quando o influxo de pessoas traficadas parou, o que sustentou a escravidão foi a criação e o estupro de mulheres negras. Isso significa que existe uma máquina interna que perpetua a violação através da exploração de mulheres negras, e isso está firme e forte até hoje.
O comércio sexual é uma continuação disso porque é um sistema econômico que está lucrando com o estupro de mulheres negras. Exceto que, na nossa cultura, a prostituição é vista como algo fora do escopo do que pode ser mudado socialmente. Toda cultura no mundo tem diferentes mecanismos culturais para prejudicar as mulheres e justificar a violência cometida contra as mulheres, bem como os sistemas para controlar o corpo das mulheres e suas capacidades reprodutivas. Por exemplo, no continente africano, existem 28 países onde a mutilação genital feminina ainda é desenfreada. Portanto, podemos fazer a análise de que a beleza do patriarcado é estabelecer sistemas de controle dos corpos das mulheres e chamar isso de cultura! A prostituição é nossa própria prática cultural prejudicial. Assim como o casamento infantil é uma prática cultural nociva em alguns países, e o pranchar dos seios é outra prática cultural nociva em outros. A prostituição é uma prática cultural nociva global.
No nível das Nações Unidas e no direito internacional, há um crescente reconhecimento de práticas culturais e religiosas que prejudicam mulheres e meninas, mas a prostituição é sempre uma exceção a isso. Nós vivemos em uma sociedade onde tudo pode ser comprado, então porque não as mulheres?
Nota da Tradutora: a expressão “Mulheres de Cor”, utilizada no texto original, em língua inglesa não é considerada pejorativa. Contudo, como no Brasil este não é o termo adotado, foi traduzido como “mulheres racializadas” — uma expressão que reforça a raça como um processo político, não uma condição natural, uma imposição de categorização política sobre grupos específicos de pessoas.
Entrevista original feita por Rosário Sanchez e publicada no site Feminist Current no dia 26 de Abril de 2019.