Mulheres são uma classe sexual. Uma classe com a exploração laboral e reprodutivossexual em comum, atravessada pela existência de outras classes, racial e social. A forma como a opressão se reproduz a partir das três formas de exploração entre humanos existentes em nossa sociedade é e foi analisada por diversas teóricas, principalmente feministas, que definiram conceitos como a interseccionalidade e a consubstancialidade na tentativa de explicar essas relações.
Isso quer dizer que dentro da classe das mulheres, opressão e exploração de raça e de classe social acontece, e legitimar essas relações de poder é fundamental para entender as diferenças entre mulheres brancas e mulheres negras, indígenas e não brancas, ou ricas e pobres. Mas quando pensamos em sexualidade, precisamos manter em mente que as diferentes sexualidades não configuram classes específicas, mas estão indissociáveis da questão do sexo, das classes sexuais de homens e mulheres.
Isso quer dizer que mulheres lésbicas, heterossexuais e bissexuais, uma vez que pertencem à mesma classe, não são agentes ativas da opressão e exploração umas das outras no quesito sexualidade. Isso não quer dizer que suas vivências não são diferentes ou que não são negativamente afetadas umas pelas outras; a categorização de seres humanos em classes não tem a pretensão de definir a vivência de indivíduos por completo, apenas de demarcar suas relações de opressão e exploração. Isso quer dizer que nem tudo que passamos vai ser explicado pelos poderes que nos oprimem. Não quer dizer que os conflitos entre mulheres não são violentos ou são menos violentos que os demarcados por divisões de classe. Nem todo preconceito configura opressão, e uma violência não ser fruto de uma opressão estrutural não a torna menos importante. Nem tudo que machuca é fruto de uma relação institucionalizada de poder.
A razão pela qual as opressões de sexualidade são indissociáveis do sexo é que tanto a homofobia quanto a lesbofobia são ramificações da misoginia, do ódio por tudo que é considerado feminino nos moldes dos papéis sexuais. Por conta disso, os agentes ativos dessas formas de opressão derivam dos agentes ativos da misoginia: os opressores são os homens, e as mulheres reproduzem essas opressões entre si, o que não as faz agentes ativas desse sistema de exploração, mas beneficia o sistema como um todo.
Para entender melhor: opressão pode ser resumida enquanto degradação política, econômica, cultural ou social de indivíduos pertencentes a um grupo social, que resulta em estruturas de submissão e dominação e coloca tal grupo em condições de exploração. Exploração é qualquer relação (individual ou não) que não seja mutuamente benéfica e resulte no usufruto injusto dos bens ou da força de trabalho do explorado pelo explorador. Nomear uma opressão, então, necessariamente nomeia uma relação de poder. Não existe privilégio social sem uma detenção e manutenção de poder que garanta o funcionamento da estrutura em benefício do grupo privilegiado e a serviço dele próprio, e não de outros. Logo, vantagens recebidas por se adequar a exigências e barreiras criadas para a manutenção de um grupo privilegiado não configura privilégio. Por exemplo: sendo a heterossexualidade um regime político que beneficia homens, a heterossexualidade feminina não configura privilégio. A mulher heterossexual que reproduz lesbofobia contra a lésbica não está beneficiando a si mesma, mas ao sistema que a oprime da mesma forma.
“Seres humanos podem ser miseráveis sem serem oprimidos, e é perfeitamente consistente negar que uma pessoa ou grupo é oprimido sem negar que eles têm sentimentos e que eles sofrem. Nós precisamos pensar claramente sobre essa palavra “opressão”, e há muito mais atenuantes que vão contra esse tipo de uso arbitrário. Eu não quero ter que me ocupar de provar que mulheres são oprimidas (e que homens não são), mas eu quero deixar claro o que está sendo dito quando nós usamos essa palavra. Nós precisamos dessa palavra, desse conceito, e necessitamos que ele esteja bem afiado e definido.” (Marilyn Frye)
Hoje em dia, o identitarismo proveniente do liberalismo pós-moderno dominou a militância baseada em sexualidade. Isso trouxe inúmeras consequências, e uma delas foi a criação de uma opressão específica para pessoas — homens e mulheres — bissexuais. Essa opressão foi nomeada como “bifobia”, conceito que ignora completamente a divisão dos seres humanos em classes sexuais, e dissocia a questão da sexualidade de sua relação óbvia com a questão do sexo.
Isso criou rachaduras entre as mulheres, principalmente bissexuais e lésbicas, ambas afirmando que são oprimidas umas pelas outras e ignorando completamente a análise feminista da sociedade. A divisão liberal da sociedade em inúmeros grupos identitários dificulta que as mulheres se reconheçam enquanto classe e unam-se contra o patriarcado. É mais uma manobra do sistema patriarcal contra a união das mulheres.
“As conexões entre mulheres são as mais temíveis, as mais problemáticas e as forças mais potencialmente transformadoras no planeta.” (Adrienne Rich)
A existência de bifobia enquanto opressão, dentro da lógica liberal, determinaria um privilégio, o chamado privilégio monossexual. A existência desse privilégio colocaria mulheres lésbicas e heterossexuais e homens gays e heterossexuais num mesmo grupo social ou categoria de análise, o que é uma inverdade. Ainda que se ignore o fato de que o grupo social denominado enquanto opressor monossexual não existe materialmente enquanto categoria política, não seria coerente da mesma forma, pois mulheres lésbicas não detém nenhum poder em função de sua sexualidade.
“De fato, lésbicas e homens gays estão longe de uma categoria unificada com interesses unificados. Lésbicas são mulheres, e teorias lésbicas da cidadania devem continuar a examinar as contradições entre os interesses de mulheres e homens, particularmente com relação às contradições entre os interesses de homens gays e toda a comunidade de mulheres.” (Sheila Jeffreys, Unpacking Queer Politics)
Isso não quer dizer que pessoas bissexuais não estão em situação de vulnerabilidade. Mulheres bissexuais, enquanto mulheres, sofrem misoginia, enquanto mulheres que se relacionam com mulheres, sofrem lesbofobia — essa é a relação de poder estrutural à qual estão submetidas. E nomear a opressão que essas mulheres sofrem não é uma tentativa de universalizar sua vivência com a de mulheres lésbicas: existem especificidades pelas quais só mulheres bissexuais passam, mas elas não configuram uma relação de opressão e exploração específica, assim como as especificidades pelas quais só mulheres lésbicas passam também não configuram. Isso não faz com que especificidades de mulheres bissexuais sejam menos importantes ou não devam ser levadas em consideração, muito pelo contrário.
Para as bissexuais, a lesbofobia se expressa mais fortemente no sentido de descredibilização do amor por mulheres (lésbicas passam por isso também, mas bissexuais são mais estigmatizadas ainda) e da estigmatização dessas mulheres enquanto promíscuas, traidoras ou imorais; para lésbicas, a lesbofobia vai ser mais forte na ousadia que é rejeitar o acesso masculino aos seus corpos, no estupro corretivo (que bissexuais também passam por), na marginalização econômica (aqui falo especialmente de lésbicas “butch”, lidas enquanto lésbicas masculinas pela sociedade). A lesbofobia nos atinge, a todas nós, de formas iguais e diferentes, o que não quer dizer que oprimimos umas às outras. Da mesma forma, a heterossexualidade compulsória incide sobre mulheres de todas as sexualidades, até a lésbica assumida e politizada.
Outro aspecto nocivo da militância liberal é a nomeação da monossexualidade enquanto norma patriarcal. A heterossexualidade compulsória, regime político do patriarcado, não pressiona mulheres à monossexualidade, e sim à heterossexualidade. Se a mulher se relaciona com homens, espera-se que ela o faça apenas com eles. Mas se se relaciona com mulheres, espera-se que ainda fique com homens, ainda que de vez em quando. O ideário da lésbica na sociedade patriarcal não é monossexual: é a mulher-machona que se relaciona com mulheres mas fica com um homem ou outro de vez em quando; ou ainda aquela mulher feminilizada que se atrai por mulheres masculinizadas porque na verdade gosta de homens. Quando a sociedade olha para uma mulher bissexual e, independente do motivo, assume que ela é lésbica, ela não está assumindo que essa mulher seria monossexual, apenas ligeiramente desviante, uma fase, um trauma temporário com o sexo masculino. E ser lida como lésbica, sendo lésbica, não é um benefício por si só — pelo contrário, muitas vezes é motivo de agressão e feminicídio. Lesbianidade não é um privilégio. Contrariam a norma quando ficam com mulheres, e contrariam a norma mais uma vez quando não ficam com homens. Atribuir um privilégio por isso é violento e imaterial.
Relacionamentos entre mulheres — lésbicas ou bissexuais — são dificultados por diversas coisas: nossa vida repleta de traumas, a misoginia e lesbofobia internalizadas, a deficiência na construção de nossa auto-estima, a forma nociva como somos ensinadas a nos relacionar, entre outras. Especialmente no meio feminista, há também as políticas identitárias, o liberalismo e as distorções feitas da nossa teoria e prática. Sexualidade é um tema sensível, e não se pode partir diretamente das opressões da sociedade para entender a forma certa de agir. Cada caso é um caso.
E se nós (todas as mulheres) tivéssemos uma consciência de classe mais forte, como os outros grupos oprimidos tem, poderíamos apontar esses preconceitos e violências que reproduzimos umas com as outras (e aqui entram também mulheres heterossexuais) sem nos atacar, sem criar essa guerra que é completamente improdutiva para a luta das mulheres. E saberíamos também apontar esses preconceitos sem sugerir um poder político de opressão vindo de um grupo de mulheres demarcado por sua sexualidade, porque isso é uma inverdade, ofende e fomenta mais hostilidade.
A classe mulher como um todo sofre com a misoginia. Nomeia-se lesbofobia enquanto opressão incidente a mulheres que amam mulheres, como um chamado: mulheres bissexuais, vocês estão do lado de cá da trincheira. Mulheres lésbicas, elas estão do lado de cá da trincheira. Nossas lutas são muito mais próximas do que a de qualquer homem. Não nos hostilizemos.
“Esse continum lésbico de que falava Adrianne Rich continua sendo válido para a construção do movimento, continum que acredita na solidariedade entre todas as mulheres que lutam contra o patriarcado, mesmo sem ser lésbicas”. (Ochy Curiel)