Esse texto se refere à última temporada de She-ra. Obviamente Spoilers.
Nota: Eu usei o nome original em inglês (Catra) da personagem Felina pelo nome do ship que virou canon, Catradora. O resto dos nomes estão na versão em português.
A última temporada de She-ra trouxe sentimentos fortes, como todos os que viram podem concordar. É uma animação lésbica que foi até o fim, por assim dizer. As dificuldades de fazer isso numa sociedade que exclui mulheres havia feito a série se perder no meio do caminho. No fim da terceira temporada, como já discuti anteriormente, houve a regressão de reprimir a mudança e focar no que “é preciso fazer”. Isso fez sua narrativa se tornar menos sobre lutas contra o mal e mais sobre como começar a lutar. Ainda bem que esse final descobriu um jeito de começar.
Catra inicia a quinta temporada perdida e desiludida numa nave do espaço. Ela havia salvado Cintilante no fim da temporada anterior ao enganar o Mestre da Horda, dizendo que ela e Cintilante o ajudariam a extrair o poder de Etheria. Isso marca o início de um novo capítulo de sua vida em que se retrata pelo que deixou pendente quando atacou Entrapta, numa ocasião em que se perdeu em si mesma ao ser também atacada por todos os lados. A lembrança do que fez com a outra lhe tiraria noites de sono posteriormente. Portanto, o gesto de ajuda à Cintilante contra o vilão maior é uma volta ao que vem não-oficialmente tentando fazer desde sempre: proteger todo mundo que lhe é próximo ou que já foi próximo dos poucos amigos dela. Esse desejo de proteção à cima de tudo, além da noção de “ficar com quem se tem um compromisso”, tem sido a qualidade que ela finge não ter, mas não consegue evitar.
Na sua perdição da quarta temporada, ela achou que, conquistando Etheria antes do Mestre da Horda chegar, teria voz contra ele. E talvez isso fosse verdade, no sentido de que ela precisava de “tomar o controle do povo” para que o Mestre da Horda não fizesse isso ele mesmo. Contudo, é claro que isso seria impossível sozinha, não passando de uma frágil barreira de contenção prestes a desmoronar. O único apoio que tinha era o de Hordak, e ela precisa “tomar o controle” através de conquistas de guerra, ao invés de alianças. Como está, na realidade, desesperada e sem recursos, acaba se aliando à pessoa mais obviamente traiçoeira — Double Trouble, que a trai, fazendo-a perder todos os territórios. Para uma personagem que tem tão bem estabelecida a necessidade de prevenir e proteger, não apenas a si mesma, mas ao que e a quem se comprometeu (Etheria um dia será nossa!!), é frustrante que tenha se atropelado de forma a tornar suas alianças tão frágeis.
No entanto, ao salvar Cintilante, vemos que ela ainda está comprometida a entender das questões de poder de Etheria nessa tentativa de se valer contra o Mestre da Horda e salvar a terra pela qual sempre lutou (mesmo que de forma possessiva), ainda que esteja sozinha demais para ser a solução. Não acho que faça sentido ela dar a entender que o Mestre da Horda não é uma grande ameaça, mas sim alguém que conseguirá facilmente deter. Ela deveria estar confusa, mas diz que pode crescer ali dentro, numa nave que não tem nada além de clones. Eu entenderia se ela tivesse dito “vou ficar bem a pesar disso tudo”, mas “isso me fará bem” saiu fácil demais. Talvez só estivesse falando aquilo para se justificar para a Cintilante, não querendo demonstrar sua fraqueza. Mesmo assim, é insensível que a narrativa não demonstre o quanto sua situação é atordoante e queira implicar que ela não liga, de fato. É claro que liga para estar prestes a ser absolvida por genocidas, isso é digno de depressão.
Naquela nave, o fato é que está sendo coagida. O Mestre da Horda pergunta “está preparada para nos servir, Catra?”. As alternativas de resposta são “sim” ou “sim”, não há como ela se posicionar contra ele. Mesmo assim, Cintilante fica dizendo “Para quê você quer ajudar eles, não vê que não vão te deixar ser ninguém?”, como se ela tivesse o direito à voz ativa depois de não lhe restar mais nada, se é que já teve algo. “Faz alguma coisa boa da sua vida, Catra”, ela diz, referindo-se a sabe-se lá o quê.
Mas então Catra começa, sim, a fazer algo de bom, e isso é se lembrar da Adora. Adora foi a única e precária forma de amor que ela conheceu a vida toda. Um amor que ela nunca se sentia no direito, um amor que era seu último recurso (Catra é -A LÉSBICA-). Infelizmente, isso se confunde com a imagem de ela ser uma pessoa horrível. Alguém que nunca fez nada de bom por… machucar a coleguinha com seus sentimentos incontroláveis infantis. Eu pensei que ela se lembrar da Adora fosse uma forma de se livrar desse sentimento de culpa, porque a Adora foi quem a perdoou em primeiro lugar. Que a lembrança da Adora pudesse fazê-la se perdoar e voltar a lutar por si mesma.
Mas não. Ainda não. Não é assim que a mente funciona, é verdade. Ela lembra e só pensa que o amor da Adora é bom demais para ela. Que, no fim das contas, a “coisa certa a se fazer” é entregar a Cintilante de volta para Adora, como que para as duas poderem ser felizes sem os “problemas do mundo” como ela. “Eu não ligo para o que vocês vão fazer comigo”, ela diz ao Mestre da Horda. Ah, Catra, não percebe que ISSO é que é errado? Vai acabar se deixando fazer parte dos transtornos que ele está causando. Por que seria melhor você ficar aí do que tentar fazer seu caminho de volta para Adora, como você fez para a Cintilante? É direito seu exigir que eles te acolham. É direito de qualquer um exigir isso.
Mas sabemos porque Catra não sente, com razão, que isso é direito seu. Ora, Adora desistiu dela tantas vezes! Ela, Cintilante e Arqueiro só a chamam de maligna por suas emoções. Como você pode confiar em alguém que te disse ser má por querer se proteger? Alguém que decidiu você não merecer carinho no momento em que discordou dela?
Sua única forma de amor conhecida insiste em fantasiar que você quer mesmo é torturar os amigos dela, mesmo você nunca tendo diretamente feito nenhum ato que os machucasse. Sua única forma de amor a condena por levar as ameaças que recebe a sério e se perturbar quando não tem autonomia frente aos perigos que enfrenta. Como confiar em alguém cujos amigos te veem como escória (ESCÓRIA!!) por exigir consideração depois de te prometerem se preocupar? Adora criou sua inimiga — rejeitar a vontade de Catra de proteção é condená-la a achar que o mundo era um lugar inóspito de onde ela só poderia esperar o pior.
Mas Catra não desistiu realmente de Etheria, desistiu? A maldade a ser combatida não foi exatamente culpa da sua descrença, como a narrativa tentou em vão sugerir. Pelo contrário, Catra ainda acreditava em seu próprio amor. Adora, Cintilante e Arqueiro não gostam da Catra por não ser uma lésbica bem reprimida o suficiente, é por isso. Porque, quando Catra está perto da Adora, abre um sorriso, quer se aproximar e se enroscar e chamar sua atenção. Porque ela prefere brigar com ela que deixar para lá, porque a Adora é sua única esperança de iluminação e vida. Para ela, é tão dolorido quando Adora a esquece, persegue, espanca até a quase morte ou despretensiosamente lança um golpe quase fatal nela que é melhor nem encarar essa realidade. Ela lutou, sim, por Adora.
Afinal, se não por ela, pelo que lutar? Lembrem-se que Adora, nessa narrativa, é uma entidade divina, não apenas uma pessoa importante para a história de Catra. Adora é o ser com potencial de descobrir a história de tudo (por mais que redirecione potencial para ir atrás de Catra obsessivamente, sem carinho), que tem poder suficiente para a mudança e a melhora (embora tenha abusado dele para incitar princesas a objetificá-la como um ser de puro mal). No fim das contas, é ela quem vale a pena. Catra tentou se virar sem ela depois do erro em abrir o portal no final da terceira temporada, controlando o maior número de regiões possível para tentar copiar sua forte presença e amplitude. Todavia, isso a fez repetir os erros de sua única e falha referência: se espelhando em Adora, retornou ao seu abusador a pesar das torturas, abusou ela própria de suas tropas e deixou-o metralhar regiões por pura ira. Não substituiu a luz que Adora emanava e que deixava de lado. Para atingir seu objetivo de conseguir voz contra Mestre da Horda, na quarta temporada, ela precisava de Adora, era ela quem estava faltando!
Ah, Catra. Não há nada que você queira fazer que não possa ser feito. Mas, primeiro, você precisa de amor. É simples!
Foi, sim, algo de muito bom que tenha se mantido viva e tentado retomar o controle sozinha, enquanto precisou, mas no fim das contas não valeria à pena sem Adora. Parou de valer quando Catra desistiu dela ao abrir o portal. O mundo todo perdeu o sentido (e a substância). Contudo, não se pode dizer esse acontecimento foi em vão. Ao menos assim, ela conseguiu chacoalhar as bases de Adora, tornando-a vulnerável pela primeira vez. Com isso, finalmente uma adulta responsável ajudou a jovem, fazendo Adora acreditar que poderia lutar por si mesma e parar de ignorar seu próprio valor. Ao menos assim, Adora acordou para seus sentimentos quanto à Catra, admitindo a raiva passivo-agressiva que a tinha feito fetichizá-la ao longo de várias temporadas. Pode-se dizer, portanto, que mesmo em seu ponto mais baixo, a esperança de Adora voltar e prestar atenção nela foi o que continuou valendo à pena para Catra. Isso torna, a propósito, completamente inválido o argumento da narrativa de que Catra podia não ter voltado da Terra Vermelha, ignorando Adora para sempre. Não. Catra tinha que estar envolvida nos assuntos da She-ra, ela merecia pegar um pouco do poder que Adora emanava, que nenhum dos povos excluídos da Terra Vermelha tinha e o que todos almejavam, se formos sinceros.
Catra precisava da Adora e de tudo o que ela representava, mas era claro que Adora havia de fazer um esforço também. Se o espírito de dignidade e justiça de Adora é essencial para o mundo, de nada adianta que Catra viva sem Adora a levar em consideração. Ela ainda não se sente no direito de fazer parte do mundo, acha que é para os outros. Aqueles a quem Adora considera dignos, os quais ela escolheu proteger.
Mesmo assim, salvar Adora, como ela fez ao entregar-lhe Cintilante nessa quinta temporada, foi um ato de amor próprio, um ato de esperança por si mesma. Catra deu um voto de confiança a Adora para que pudesse se importar. Adora foi redimida nessa cena, não Catra.
Adora sempre deu esse discurso de que queria ajudar a todos e que isso lhe fazia grande. Ao mesmo tempo, deixava Catra à própria sorte contra ameaças. Achava que o poder que emanava era algo a se apossar, através de equipamentos, e não a se compartilhar. Reproduzia a ideia de seu povo colonizador, o qual controlava tudo o que podia, achando que nisso estaria o amor ao próximo, não no ato em si. Os seres, afinal, teriam que lhe provar dignos do amor, que só existiria artificialmente. Ela condicionou Catra a acreditar nisso todas as vezes que pôs a vida da gata em risco por provocar o caos. A mensagem era que, se Catra fizesse algo de errado, não mereceria mais a vida.
E se Catra não consegue achar que Adora e todo mundo vai tratá-la com humanidade quando retornar, ela não consegue se convencer a retornar.
Ela não escolheu se juntar ao culto Cristão. Ela achou, até o último segundo, que a Horda a mataria e seria isso. Que a deixaria de lado. Não, ela escolheu o lesbianismo. Nunca duvidou do que queria, só achou que o que queria, ninguém a permitiria ter — apoio, grandeza, amor.
Mesmo assim, se ela retribuísse a paciência e persistência que alguém — Adora — já havia demonstrado por ela quando eram crianças, isso seria o suficiente. O mundo ainda seria bom se ela tivesse passado a mensagem com eficiência o bastante de que deveria haver amor. Amor real, não amor de espadas forjadas por colonizadores. Amor que salva porque pode ser recíproco, que é tudo o que você sempre precisou e por isso você o compartilha; esperando que outras pessoas te retribuam pela mesma necessidade. Catra não podia se salvar sozinha, pois aquilo não a levaria para lugar nenhum. Suas experiências já haviam lhe provado isso. Ainda sim, se desse amor só por dar, talvez alguém fizesse o mesmo por ela.
A narrativa de She-ra sofre por condenar algumas pessoas e justificar outras. Catra e Cintilante foram postas juntas naquela cena porque as duas haviam “feito algo de errado” e eram “as reais culpadas” por tudo o que aconteceu, ignorando que culpar os outros te exime da responsabilidade de interagir e demonstrar, você, o amor. Se Catra havia mesmo negligenciado a demonstração do amor que sentia por Adora, é verdade que Adora também o sentia e não demonstrou. Sendo assim, por que Catra e Cintilante são as que carregam os pecados do mundo? Como se quisessem aquele destino e merecessem o inferno. Como se Adora não precisasse provar nada e fosse autossuficiente (ninguém o é). Como se os mecanismos de enfrentamento de Catra, que foram sim muito necessários para ela por um tempo, tivessem sido pura maldade, e não essenciais para que ela entendesse o que lhe faltava (por mais que seja verdade, na quarta temporada, ela ter adiado esse entendimento e feito besteiras). Como se o seu “me desculpa” tivesse sido para Adora, e não para si mesma. Como se o fato de ela estar perdida e não conseguir ver valor em si, depois de ser estigmatizada por todos, fosse culpa dela, não do que Adora a condicionou. Como se ela pudesse saber melhor.
É tão aterrorizante ver a Horda empurrando Catra para aquele lago de dor, ainda perguntando “você não quer se ver livre disso?”, como se ela estivesse escolhendo. O pior ato de gás-lighting. O quão parecido isso não foi dos estupros corretivos e terapias de conversão? Ela já passou por tanto e, ainda assim, isso conseguiu ser mais cruel. A Horda é uma instituição de homens que querem tornar seu poder inevitável, na maior das dominações. Catra foi presa pelo patriarcado.
A verdade é que essa história nunca foi sobre a batalha entre Hordak contra as princesas. Elas precisavam, sim, derrotá-lo, para que ele parasse com a exploração e tráfego de corpos infantis. Mas nunca foi sobre a pessoa de Hordak, era sobre uma luta muito maior e mais antiga, que desde tempos distantes causavam atrocidades. Uma briga surgida a partir do momento em que o reino de mulheres — o reino da She-ra — cometeu um erro com a magia da natureza, pegando poder demais para si; e desse erro vieram dominadores masculinos implacáveis que conseguiam suprimir quase tudo, a não ser aquela magia primordial que sempre vaga pelo universo. Isso está na figura de Melog, num episódio em que os mocinhos têm que enfim encarar seu medo da magia solta a esmo, confrontando suas sombras. Foi quando decidiram escutar Catra.
Pois, sabem, Catra nunca fez parte da maldade da Horda. Ela foi o resultado da Horda — a vítima de seu condicionamento. Em Catra estão incrustadas as sombras que lhe foram infringidas por alguém que cometeu o mesmo tipo de abuso primordial contra a mágica: Sombria. Se livrar desse abuso sempre foi o motor de Catra. Ela queria isso mais que tudo, mesmo que para tanto chamasse o perigo e sangrasse sozinha. Ela foi sempre o motor para incitar as princesas a enfrentarem essa realidade, quando queriam se isolar do universo. Catra era a parte para a qual o isolamento não estava sendo o suficiente, pois a negligência com a ponta que ficou solta — a organização de Hordak — doía nela mais que em qualquer um. Nunca seria o bastante o argumento que Adora usa de deixar as coisas tranquilas, pois ela não tinha o que precisava ter. Mais que ninguém, Catra era quem insistia na saudade de tudo o que ainda não tinham visto. Ainda que fosse verdade que isso se tornara um vício do qual ela não poderia se curar sem se reconciliar com Adora.
Encarar Catra era o que faltava na narrativa. Ela merecia ser salva, que Adora fosse atrás dela. Não porque a gata decidiu fazer algo de bom de sua vida pela primeira vez, mas por que sempre quis um futuro melhor. Catra devolveu Cintilante como quem quer que o mundo continue bem, e, se fosse honesta consigo mesma (e no fim das contas ela foi), ela desejava isso sim. Sempre foi mentira que era preguiçosa e desmotivada. Catra é incentivadora por natureza. Pode-se até dizer que só depois de sua “redenção” poderia ser salva, mas porque provou de uma vez por todas para Adora que não importava quantas vezes caísse, o quanto fosse machucada, o amor sempre valeria a pena. A resiliência e perseverança eram seu dever, não um capricho — não que fosse o dever de Adora salvar a todos, mas que é necessário salvar quem se é próximo.
Adora ainda não tinha tomado o controle de sua vida e de suas ações, está enrolada em maus hábitos. Não consegue se conectar com seus amigos de forma eficiente ou ouvir suas queixas — ela ignora os avisos de Cintilante de que suas estratégias não estão funcionando, durante a quarta temporada. Não sabe exigir o que acha certo — tem muito pouco pensamento crítico e não se impõe quando acha que as princesas estão seguindo por um mau caminho na aliança. Está… desconectada, disfórica.
Assim, na cena do resgate, ela fica insistindo para a Catra resistir ao invés de tomar ação. Olha apavorada para a amiga chipada. Na realidade, está confrontando seu próprio medo: se tornar um corpo desalmado e sem expressão, nunca mais ter vontade própria. Aquele corpo na sua frente é o oposto de Catra, uma criatura de paixão e vigor devorador, selvagem. Ver sua imagem amortecida e fria, seu cabelo penteado, sua roupa simétrica… É como se a Horda tivesse conseguido reverter a Catra. Adora fica petrificada, sem saber como reagir. Pergunta a Catra porque começou a ouvir alguém quando nunca o havia feito antes. Ora, que pergunta ridícula! Catra não queria escutar o mestre da Horda, ela estava sendo obrigada a fazer aquilo. Ela, então, fica com raiva de Adora e é através dessa raiva que consegue retornar do transe. Ela precisava se lembrar de que sua raiva por Adora era significativa, que nada do que fez na série foi em vão. Sua cobrança em cima de Adora não havia sido uma fútil demonstração de má amizade, mas algo que a dava sentido para conseguir continuar. Catra precisava fazer Adora ver as coisas tal como elas são, parar de ser dispersa e não enxergar o todo. “Você é muito idiota!”, diz; ao que Adora, desesperada por uma chance de acreditar que podia consertar aquilo, responde “Sim, eu sou”. E então começa seu processo de querer melhorar e ser dona de seu destino, como nunca tinha feito o desenho inteiro. Admitir sua falta de senso foi o primeiro passo para se reconectar.
Então, Catra faz Adora prometer que vai levá-la para “casa”, criando um renovado comprometimento entre as duas. Durante todo o período do desenho, Catra havia estado desiludida que Adora cumpriria suas promessas, a ponto de ficar “morta por dentro”, tendo sua noção de lar comprometida. Ainda assim, nada nos impede de querer acreditar. A mensagem é que não existe caminho sem volta, não importasse o quanto o Mestre da Horda tentasse apagá-la. Ela sempre seria maior do que fizeram com ela, mesmo em seu pior momento. Se é verdade que a essência de Catra sempre estará lá, também é fato que Adora que ela pode vencer sua paralisia.
Adora teve que tomar a iniciativa de lhe demonstrar que o carinho ainda podia subsistir, que a vida ainda tinha sentido e substância. Em seu ato mais egoísta e libertador, ela se arrisca pelo simples arriscar. Porque queria e por nada mais.
Em oposição a Catra, Adora “ouve todo mundo”, não quer nada. Enquanto Catra precisava se lembrar de que sua luta era digna, Adora precisava reconhecer que sua luta havia sido vã. Não há sentido na rebeldia que atropela o ser.
Na nova da roupa She-ra, Adora tem mais cara de mulher e menos cara de menina. Ela, enfim, deixa de ser a inocente, defensiva e acuada, que nada fez para parar o mal da Horda durante toda a duração de sua própria série. Agora, ela simplesmente salva Catra sem pestanejar — sem perguntar se Catra quer, sem falar demais e agir de menos. Sua She-ra surge naturalmente e seu poder, pela primeira vez, não é artificial ou abusivo. Ele vem da necessidade de se conectar com o universo e ajudar o próximo. Pela primeira vez, Adora tem um bom motivo.
Depois de salvar a gata, ela ainda tem muito o que aprender e está tímida quanto a fazer o que quer. Fica indecisa se deve estar do lado de Catra ou não, quando estão de volta à nave. Mas não importa. Ela deu o primeiro passo, começou a entender como as coisas deveriam ser. A pesar da arrogância em não entender a dor que Catra sentiu depois de ser… bem, “estuprada por papas”, Adora está feliz de ter todos reunidos.
É fato que seus amigos mal parecem se importar que salvaram uma pessoa, então fica difícil ela demonstrar sua felicidade. Seus amigos são um tanto insensíveis, sempre travando lutas sem sentido.
Adora se associou a princesas que também possuíam magia, supostamente porque salvariam o dia através de sua união sagrada de amizade. Bem, me parece que, no fim, elas não tiveram uma importância maior que simplesmente usar seus feitiços na hora certa, não é mesmo? Não era disso que Adora precisava. Nem de se reconectar com os Primeiros, afinal, não passavam de um povo qualquer que havia abusado de seu poder. Ela precisava se reconhecer enquanto um deles apenas para saber como as She-ras do passado haviam usado sua magia, qual havia sido a sua história. Mas o que Adora realmente necessitava era reaver a magia abandonada, escondida na única derrota de seu inimigo. Ela precisava da energia bruta a ser lapidada do zero e não enquanto herança de povos que não existem mais. Tratava-se de algo ou alguém que não fazia parte de nada, existia de forma independente, apenas com a crença de que o amor e a lealdade podem existir para além de falhas promessas e discursos vazios. Alguém com um instinto de resguardo que lhe permite não atropelar o próprio ser. Alguém que se garante.
Adora precisava de Catra.
As princesas não tinham parte nisso. Elas precisavam mesmo aprender a se virarem sem Adora por perto. No início da temporada, Adora ter perdido os poderes ajudou bastante que elas aprendessem essa lição, mas a autonomia delas só viria de forma completa no último episódio. Até lá, elas não param de exigir que os outros façam o trabalho por elas.
A trama final gira em torno de terem que salvar as pessoas chipadas pela Horda em Ehteria, e elas ficam tagarelando com seus entes queridos chipados, mais uma vez como se eles estivessem escolhendo ser controladas. A coisa toda é muito esquisita. Os rebeldes não demonstram com eficiência estarem aterrorizados ao ver seus amados transformados em zumbis da Horda. Ao invés disso, ficam repetindo frases que supostamente indicariam preocupação com quem lutam, mas que fazem o oposto: “Ei, meu querido, tudo bem? Por que está agindo assim? Ah, você quis bater naquela pessoa? Tudo bem, eu entendo sua raiva. Deve ter sido por causa daquela coisa do passado, né? Nada a ver com seu corpo estar sendo usado contra a sua vontade”. Às vezes, parece que são eles que estão chipados, de tão robóticos.
Isso é para continuar com a vitrola de culpabilização da vítima de todas as temporadas: “Por que você não vê que eu faço tudo por você e que eu te amo?”, o que nesse caso, significa “Eu fui doce e sutil, logo sou uma boa pessoa e você é idiota de não ver que só você está errada”, geralmente dito a uma pessoa que está sofrendo controle coercivo, geralmente essa pessoa é a Catra.
O exemplo maior é quando a princesa Perfuma diz que a Scórpia chipada tinha razão em querer eletrocutar Catra em uma das cenas, o mesmo tipo de tortura por choques de poder que Catra sofreu a vida inteira. Afinal, Scorpia tinha razão em estar com raiva de Catra, que… já havia sido grossa com ela no passado quando ela havia sido gentil. Como ela ousa! Merece mesmo esse tipo de tortura!
Não que fosse completamente ineficiente conversar com as pessoas chipadas, elas conseguiam sim retornar por alguns instantes, mas obviamente não era prático esperar que essas pessoas fossem simplesmente retornar de si e lutar contra aquilo sozinhas. Elas também mereciam ser salvas — que alguém quebrasse o chip em seus pescoços. O quão mais eficiente não teria sido demonstrar o afeto através de ações, lutando para quebrar o chip?
As pessoas agem como se conteúdos com público infantil devessem ter mais diálogos vazios porque isso seria mais valoroso para as crianças. Não. Retirar a emoção da cena desta forma deixa seus personagens parecerem insensíveis e mimados. Seria melhor que mostrassem pela cinematografia da luta que os rebeldes queriam desesperadamente bater no chip do pescoço doa zumbis sem os machucar, a angústia de amar quem pode te ferir. Isso demonstraria o quanto os rebeldes estavam tentando desfazer o que a instituição patriarcal malvada tinha infringido nos cérebros de seus amados.
Como eu disse, algo do tipo só acontece no último episódio (com Spinerela e Netossa, Cintilante e o pai, Serena e Falcão do Mar), como um último recurso, e não algo planejado. Isso mostra que as princesas (e a rebelião, nesse caso), eram parte do problema. Todos hesitaram em tentar salvar quem amavam e a história foi sobre eles aprenderem a fazer isso.
É hipócrita, portanto, que Perfuma tenha tentado, no meio da temporada, fazer a cabeça de Catra. Ela vem com um papo de que entende de amor e de liberar seus sentimentos de uma forma saudável, como se isso não tivesse sido exatamente o que Catra aprendeu por conta própria nesse final. Catra não precisava de sua terapia (ninguém precisa de terapia vinda da Perfuma). A pesar da ladainha, Perfuma não entende do que quer ensinar — ela é rancorosa, passivo-agressiva e reprimida. Não faz sentido a proposta dela.
Ela não é poderosa porque é amorosa, mas porque nasceu com o poder. O desenho nunca questionou por que o recebeu. Adora não faz ideia da história dos reinos, por que ela tinha que lutar tanto para agradá-los. E também não faz questão de saber. Ela se deixou ficar no meio deles e nunca questionou o fato de seu valor estar tão diretamente associado a eles.
Sente que precisa se matar por eles, se for preciso, e não vê quando são hipócritas. É difícil se desassociar deles completamente, eu entendo. Como ela poderia tomar uma posição contra eles quando lhe deram o que ela deu a Catra: um pingo de esperança? Era melhor aceitá-los e buscar ela própria o que a rebelião não supre nela. Mas é verdade que ela deveria ter começado a buscar isso mais cedo, pois só se confronta no final.
A propósito, as princesas se associam a Sombria, que tem um histórico de, no mínimo, torturar e ameaçar a vida de crianças inocentes. As princesas ficarem com ela permitiu que a bruxa retornasse para torturar Catra no fim da terceira temporada, fazendo a gata perder a cabeça de vez. E todo mundo acha isso tudo perfeitamente aceitável.
Até que Catra começa a insistir para Adora finalmente confrontar a feiticeira e se desfazer dos traumas. Adora precisa se conectar consigo mesma de uma vez por todas, encarar seu passado.
Isso significa, obviamente, deixar as princesas de lado e encarar Catra. Adora não era nada além de a soldada da Horda que persistia por achar que um dia seria diferente, que ela e sua companheira tomariam o controle. Subtraindo-se todas as distrações, era só isso. Ela havia de desfazer a lesbofobia internalizada que a impedia de ver seus desejos com clareza e a escolher seu coração — o coração de Etheria! Catra ainda não havia concluído que precisava ficar com Adora, mas percebe que só ela pode lhe dar forças para salvar Etheria. No final, era isso o que Adora sempre precisou — amor incondicional, como nem seus amigos, mesmo que importantes para ela, lhe deram até então.
Ah, Adora. Ainda que você falasse a língua dos anjos, que falasse a língua dos homens… sem amor, você não é nada.
Sabem, essa história nunca foi sobre Adora escolhendo o lado certo. Ela não é a agenda gay, como Noelle insiste em dizer. Inocência sua. Isso é uma história sobre imperialistas masculinos tentando forçar tecnologias entorpecentes em corpos humanos, e a melancolia de saber que a resistência feminina só foi forte o bastante para se isolar. E, quer saber, voltar à natureza para vencê-los só é possível se você alinha sua vida pessoal ao seu ideal político.
Isso é feminismo. E lesbianismo.
Noelle chamou as feministas de obcecadas com características femininas biológicas (naturais), escolhendo a agenda queer sobre a agenda das mulheres. Por agenda queer, quero dizer as políticas identitárias (que geralmente também se chamam de feministas, mas não estou de acordo com essa visão) que condenam as feministas da segunda onda como “mulheres que excluem trans”. Lamento dizer, Noelle, mas você falou sobre a natureza, falou sobre o pessoal ser político e argumentou que as mulheres deveriam, antes de tudo, se amar; e que sem isso nada é possível. Na verdade, os únicos casais que você fez beijar no final foram aqueles compostos por duas mulheres. Parece que, intuitivamente, a agenda feminista chamou sua atenção. Apesar de ter culpado a vítima igual uma liberal nas temporadas anteriores, no final, você lutou pelas mulheres em uma narrativa antipatriarcal. Foi radical.
Honestamente, muito obrigada.