criminalização midiática e lesbofobia: o que as feministas têm a ver com isso?
dia desses, mandei para um amigo a reprodução da manchete de um jornal assumidamente de esquerda, algo mais ou menos assim: “seguidor do atual presidente, o casal X e Y foi preso em flagrante por suspeitas de agressão ao filho adotivo”. eu não sei porque, mas ainda me impressiona a baixeza que manchetes de jornal podem atingir. minha primeira reação foi questionar qual seria a relevância da informação sobre em quem o casal havia votado, e qual era a principal parte deste título: a agressão à criança ou o posicionamento político daquelas pessoas.
neste texto, eu nem quero começar a discutir a intenção das matérias de jornais que denunciam fatos indesejados com discurso policialesco, sobre isso escrevi uma dissertação de mestrado e um milhão de publicações em redes sociais. para me posicionar brevemente, sou contra jornalismo policial e também sou contra o presidente que o Brasil elegeu, mas isso não vem ao caso no momento.
meu amigo me alertou que chamadas como esta estão muito comuns ultimamente, e disse: eu reconheço que as estratégias desses jornais têm sido antiéticas, mas como combater notícias falsas e falta de ética, sendo éticos? acontece que essa é uma pergunta que as editorias jornalísticas deveriam se fazer, se estivessem a fim de produzir conteúdo de qualidade, em tempos em que as pessoas se informam por memes e correntes, via aplicativos de mensagens instantâneas; em tempos em que a busca pela fonte da informação e pelo pensamento crítico estão em crise; tempos em que a crítica ao senso comum se torna rara e alvo de perseguição política. só que, pelo que se pode ver, não dá para esperar nem metade disso do jornalismo — aqui eu gostaria de falar em “mídias hegemônicas”, mas, honestamente não tenho visto nada diferente nas ditas “mídias alternativas”. são as mesmíssimas estratégias discursivas.
vivemos em uma sociedade punitivista e eu já perdi as contas de quantas vezes comecei texto usando essa frase. a informação sobre em quem as pessoas votaram agora se tornou importante nas manchetes de jornais porque consideramos que a decisão política-eleitoreira de cada um de nós é digna de punição. porque queremos marcar na história os erros das pessoas, associando suas condutas desviantes à decisão política por votar em qualquer um que seja representante político. não damos chance à mudança ou à transformação social, e sentimos um prazer imenso em estigmatizar pessoas, em enquadrá-las em grupos de vilões ou mocinhos; em maus e bons; em bandidos e cidadãos de bem. “Marcos matou a esposa”: “pudera, era seguidor daquele político”; “Pedro esfaqueou o presidente”: “pudera, era seguidor do outro político”; “Jeferson assaltou a geladeira”: “pudera, era mau caráter”; e por aí vamos.
a verdade é que essas manchetes são demonstrações de como as mídias não passam de braços fortes do Estado nos processos de criminalização de condutas: servem como agentes criminalizatórios mesmo quando falam sobre condutas que ainda não foram tipificadas como “crimes” propriamente ditos. agem como se todos os erros devessem ser transformados em crimes e punidos — e a gente sabe bem que tipo de punição é demandada pela sociedade em que vivemos: prisão; e a gente sabe muito bem quem é diretamente atravessado pela prisionização: a juventude negra e pobre.
eu poderia dizer que saber em quem as pessoas votaram, via de regra, não dita caráter. mas não vou dizer isso, porque caráter não existe. quando falamos de caráter, estamos, na verdade, falando de personalidade, e não existem monstros no mundo real. não existem pessoas boas ou más, somos seres complexos, de personalidades complexas, e tomamos decisões erradas todos os dias. e qual é o papel das mídias nisso? as mídias reforçam os estereótipos e são o palco de disputas perfeito do Patriarcado, aquele espaço mesmo onde as duas meninas estão de biquíni lutando no sabão pelo prêmio de mais bonita. precisamos reconhecer que nossa emancipação não virá pelos meios de comunicação, o máximo que podemos fazer é “humanizar” esse poço sem fundo de bosta. e aí é com cada uma de vocês escolher as batalhas que vão travar.
e qual é o papel das feministas nisso tudo? criticar tudo que foi feito e é mantido pela lógica patriarcal, inclusive os concursos de beleza, inclusive o judiciário, inclusive a política partidária, e não menos quem dá holofote a tudo isso: o poder midiático. nada disso vai nos libertar.
por tudo isso, gostaria de falar sobre o caso de uma lésbica que apanhou numa praia do Rio, no início desta semana. lésbica visível, ou seja, cuja aparência deixa evidente sua sexualidade, ela estava com a namorada na orla e sofreu severas agressões por parte de um homem. manchetes sobre o caso também evidenciavam a sexualidade desta mulher, mas, principalmente, denunciavam seu alinhamento político. esta mulher se coloca publicamente como conservadora. e era aqui que gostaria de chegar. os veículos de comunicação poderiam falar de misoginia, de violência masculina, de lesbofobia, mas a principal parte das manchetes evidencia o alinhamento político da mulher agredida.
em primeiro lugar, não me importa quem começou a agressão. toda e qualquer violência contra mulheres, especialmente por parte de homens, tem base na misoginia. numa sociedade que educa mulheres a serem submissas e homens a serem predadores sexuais, agressivos e impositivos, toda e qualquer agressão a mulheres tem base no ódio às mulheres. eu não tenho a menor dúvida disso, e nenhuma autoproclamada feminista deveria ter. caso contrário, partiríamos do pressuposto de que algumas pessoas são misóginas e outras não, quando sabemos que uma sociedade misógina só pode ter frutos misóginos. em uma comparação, seria o mesmo que afirmar que toda agressão a negros, especialmente as perpetradas por brancos, num mundo de supremacia branca, tem origem no racismo. e isto é inegável, porque partimos do pressuposto que uma sociedade racista só pode criar frutos racistas e por isso precisamos estar sempre ligadas nesses sinais, com uma postura de combate antirracista e de destruição das hierarquias de uma supremacia branca. dito isto, reafirmo: toda agressão a mulheres é, necessariamente, uma agressão machista e misógina, numa sociedade que legitima e encoraja a violência masculina o tempo todo.
em segundo lugar, toda agressão contra lésbicas é uma agressão lesbofóbica, e negar isso é colaborar para o apagamento lésbico, numa sociedade que odeia mulheres e multiplica seu ódio contra lésbicas: seres que negam o homem como centro do mundo e de seus afetos. recentemente, vi uma pesquisa de um homem gay atacando a pesquisa de mulheres lésbicas sobre assassinato e agressões feitas por lesbofobia. o argumento dele é que, em alguns casos, “não há provas de que a motivação foi o ódio às lésbicas”. mas, se partimos do pressuposto de que a sociedade é misógina, e que as lésbicas são perseguidas, apagadas, silenciadas, estupradas para terem suas sexualidades “corrigidas”, e que a sociedade é inerentemente lesbofóbica, que tipo de “provas” estamos esperando para contar a história das mulheres atravessadas por violência masculinista? provas da polícia? provas do agressor? provas do juiz? provas da reportagem policial? todas essas são provas produzidas com as armas do Patriarcado.
depois, qual é a intenção de se evidenciar o alinhamento político da mulher que sofreu agressão masculina? como vimos nos exemplos lá em cima, este tipo de discurso serve para deslegitimar as pessoas envolvidas nos casos noticiados. o resultado dessa exposição é termos mulheres autoproclamadas feministas dizendo que a mulher “apanhou pouco”, “mereceu”, ou que ela deveria “aprender com a surra que levou”. eu já disse aqui e repito: quem de nós aprendeu alguma coisa apanhando ou sofrendo tortura? a agressão, seja ela verbal ou física, nunca, nunca poderia servir de pedagogia. muito menos a agressão a mulheres. muito menos a agressão a lésbicas. mulheres que caíram no discurso de que “algumas mulheres merecem apanhar” não entenderam nada da luta antissexista e não deveriam dizer que são feministas.
quem lida com mulheres em situação de vulnerabilidade social já ouviu esposa afirmar que apanhou do marido porque mereceu. quem lida com mulheres em situação de vulnerabilidade social já ouviu egressa dizer que foi presa por um “livramento” divino. quem lida com mulheres em situação de vulnerabilidade social já ouviu mulheres em situação de prostituição defender sua exploração sexual como forma de “trabalho”. quem lida com mulheres em situação de vulnerabilidade social já ouviu mulheres em situação análoga à escravidão defender seus “patrões”, afirmando serem parte da família.
quem se diz feminista não pode nem poderá nunca culpabilizar mulheres atravessadas pela violência masculinista por sua opressão. quem se diz feminista não pode nem poderá nunca alegar que mulheres que defendem suas amarras o fazem “porque querem”. pouco importa o posicionamento político das mulheres que apanham, ou morrem, ou são estupradas sistematicamente por seus maridos. quem se diz feminista precisa lutar contra todas as formas de opressão e precisa estar disposta a destruir todas as amarras patriarcais que aprisionam mulheres. ainda que sejam as amarras de ideologias que não são as nossas. ainda que as mulheres jurem de pés juntos que “escolheram” as amarras com glitter, ou plumas, ou diamantes. as feministas precisam estar atentas, o tempo todo, às armadilhas, aos discursos, aos pensamentos e às condutas patriarcais. não seremos livres até que todas as mulheres sejam livres.
Arte da ilustração de Aira Meira
muito interessante
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