Existem muitos seres humanos admiráveis, não há dúvida. Existem inclusive muitos homens bons, que se chocam com abusos machistas, raciais e de classe e que estão aí na luta por um mundo melhor. Mas os homens de bem possuem uma falha inevitável em seus discursos quando se ofendem pela frase “todo homem é um abusador em potencial”.

Ser um abusador em potencial não quer dizer que todos os homens vão abusar. Quer dizer que o sistema patriarcal prepara o caminho para lhes dar essa oportunidade — e muitos não vão achar nada demais alguns desses conceitos, como a cantada ou a delegação das tarefas domésticas e da criação dos filhos à uma companheira.

O sistema prepara o caminho para homens abusarem mulheres quando toda a cultura afirma, das mais diversas formas, que as tarefas domésticas são mais bem feitas por mulheres. Que mulheres são naturalmente maternais e por isso têm a função de ter e criar os filhos.

Certa vez, quando eu fui buscar meu filho na escola, encontrei uma das mães que sempre fazia o mesmo trajeto que eu. Começamos a conversar sobre os nossos respectivos trabalhos e seguimos até o portão da escola nesse tema, falando sobre os desafios técnicos, o desenvolvimento tecnológico em torno do tópico. A meio da conversa, fomos saudadas por um pai à espera de sua filha. Após a saudação inicial, ele imediatamente começou a nos perguntar sobre a maternidade, de como lidávamos com tudo, como o sono e a alimentação das crianças.

O que não parece nada demais, a princípio, se revelou altamente ofensivo para nós duas, que fomos “obrigadas”a parar de falar sobre carreira para responder a pergntas “inocentes” sobre maternidade — como se a maternidade fosse a única coisa que nos definisse como pessoas. Esse é apenas um exemplo simples de como somos vistas e de como esses papéis são impostos a nós. Em nenhum momento esse homem esclarecido e “bom” assumiu que nós já estávamos em uma conversa sobre outro assunto. Ele assumiu imediatamente que, como somos mães, o nosso único assunto seria maternidade. Sequer lhe passou pela cabeça nos perguntar sobre o que nós estávamos falando para depois dar seus dois segundos de prosa sobre o assunto. Nos interrompeu na moral, e a nossa socialização nos obrigou a escutar a fala do grande homem. Aposto que se ele tivesse encontrado outros pais, ele teria imediatamente perguntado sobre o trabalho, sobre o tráfego, sobre viagens.

Essa atitude de relegar os cuidados — de tudo e de todos — às mulheres é muito tóxica. E os homens de bem, ou os homens bons, não a combatem devidamente no seu dia a dia porque se beneficiam dela. Muitos o fazem por costume. Outros o fazem por conveniência. Imagina um homem, um dia, pensar: nossa, ter filhos e uma baita responsabilidade! Eu vou ter que batalhar muito para ser um bom pai, tem muita coisa para fazer. Cuidar de criança não é fácil, dá trabalho! E ele assiste a novela, um filme, vê como a maioria dos amigos se comporta, e lá no fundo pensa: nossa, quer dizer então que eu não preciso me esforçar tanto, por que a sociedade não vai me cobrar? Eu não vou ser execrado, eu não vou preso se fizer o mínimo indispensável, e ainda vou poder dar a desculpa de que estou cansado/estressado/atarefado?

E ele acaba se acomodando. Porque sabe que, se não fizer aquilo tudo que ele mesmo se propôs a fazer, como bom homem que é, alguém fará. Alguém sentirá pena do seu fardo. Afinal, ele não bate na companheira. Ele até dá flores no dia das mães. Lava uma louça quando vê que acumulou demais, bota uma roupa na máquina de lavar. Mas ele não está ali, dobrando toda a roupa e guardando, sabendo se os filhos têm roupa própria para o inverno que está começando, deixando a casa limpa de noite para as crianças brincarem no dia seguinte, porque ele tem uma tarefa importante: a sua carreira.

Carreiras masculinas não podem ser afetadas por tarefas domésticas, no nosso mundo. Os homens ou terceirizam (geralmente para mulheres) ou vivem num pardieiro mesmo. Faz parte da socialização, um sistema de ensino “informal” que cria a masculinidade tóxica. Homens não podem se preocupar com aparência, não passam horas penteando cabelo e passado maquiagem e cuidando de casa, porque isso tiraria tempo precioso em que deveriam estar usando para criar, legislar, falar, agir.

As mulheres ainda não estão sendo criadas para que se dediquem a qualquer outra coisa que não esteja relacionada aos cuidados da casa e dos filhos e da própria aparência. E precisamos começar a nos tornar essas pessoas que criam, agem, têm carreiras, legislam, falam, sem nos preocupar única e exclusivamente com a nossa aparência, pelo menos. Quanto às tarefas domésticas e aos cuidados dos filhos, é imprescindível um trabalho de base mais extenso para que homens que vivam com mulheres como companheiros dividam as tarefas e a criação dos filhos de forma igual e sem “mimimi”. São trabalhos estafantes mas, se organizar direitinho, ninguém vai perder uma promoção porque passou aspirador de pó no chão ou lavou a louça do banheiro.

E por gentileza, parem de assumir que as mulheres são maternais e que o único assunto que possa interessar a uma mulher que é mãe são as crias. As mães são seres humanos. Quando a gente quiser falar dos filhos, a gente avisa. Não nos interrompam, não nos expliquem sobre coisas que nós já sabemos (como o nosso próprio corpo ou a nossa área de atuação) e tenham juízo. Não somos crianças.