Homens e mulheres formam dois grupos sociais envolvidos em uma relação social específica: as relações sociais de sexo. E as condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino biológico, mas, sobretudo, das construções sociais oriundas dessas relações sociais de sexo. Dessa forma, vejamos de perto alguns dados sobre a realidade das mulheres:
- Mais de 90% das pessoas fazendo serviço doméstico e cuidado das crianças são mulheres.
- Mulheres são 70% dos profissionais de saúde no mundo. Mas 3/4 dos cargos de liderança no setor são ocupados por homens.
- Mulheres são 97% da força de trabalho na educação infantil e 81,5% no magistério da Educação Básica. Mas são menos da metade no Ensino Superior (especialmente nas instituições públicas, mas também são menos da metade no privado). No atual ranking dos cientistas mais influentes do mundo, uma lista com mais de 6 mil cientistas do mundo todo, de 21 áreas de conhecimento, a participação de mulheres gira em torno de uma média de 20%, variando muito por área de atuação, onde é possível ir de uma participação de 23% nas Ciências Sociais até 7,7% em Física e Astronomia.
- Mulheres fazem mais de 75% de todo o trabalho doméstico não-pago no mundo todo e são a maioria que realizam o trabalho de limpeza remunerado fora de casa.
Observe como esses trabalhos – saúde, educação, limpezas – partilham uma característica curiosa: são uma extensão do que as mulheres já fazem no ambiente doméstico. Limpar, cuidar, cozinhar, educar. Aquilo que fazemos em casa, que não é considerado trabalho e nem é remunerado, é considerado trabalho (essencial!) e é (mal) remunerado fora das quatro paredes. Vejamos mais um exemplo bem atual:
Desde que a pandemia do coronavírus começou, não param de aparecer notícias atestando o óbvio: no mundo todo, as mulheres foram as mais afetadas. Em todos os sentidos.
Em Portugal, por exemplo, foi noticiado que 9 em cada 10 postos de trabalho que desapareceram durante a pandemia eram ocupados por mulheres. No Brasil, a carga de trabalho doméstico aumentou. No Japão, os suicídios de mulheres aumentaram por causa da deterioração da saúde mental. A violência doméstica e sexual dispararam no mundo todo. E, na maioria dos países, simultaneamente, as mulheres são a maioria na linha de frente do combate ao vírus.
O que esses pontos têm em comum? Como podemos nós, as mulheres, sermos ao mesmo tempo as principais trabalhadoras combatendo o covid e as primeiras a perder o emprego? Como podemos sermos nós, mulheres, as mais afetadas com o aumento do trabalho doméstico e a perda salarial? O que une essas questões todas?
A resposta é simples: a divisão sexual do trabalho.
A divisão sexual do trabalho é a maneira como as tarefas do trabalho são divididas na sociedade levando em conta o sexo dos indivíduos e a relação social que produzem. Ela funciona a partir de dois princípios organizadores: o da separação (existem trabalhos de homens e outros de mulheres) e o da hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais do que um de mulher). Dessa forma, homens são destinados prioritariamente à esfera produtiva e mulheres à esfera reprodutiva, assim como ocupações ditas masculinas são mais prestigiadas e melhores remuneradas que ocupações ditas femininas. E essa prática é válida para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço, o bastante para afirmar, por boa parte dos pesquisadores, que existem dessa forma desde o início da humanidade.
Segundo Danièle Kergoat que descreveu o verbete no Dicionário Crítico do Feminismo,
Essa noção foi primeiramente utilizada pelos etnólogos para designar uma repartição “complementar” das tarefas entre homens e mulheres nas sociedades que estudavam. Lévi-Strauss fez dela o mecanismo explicativo da estruturação da sociedade em família. Mas as antropólogas feministas foram as primeiras que lhe deram um conteúdo novo, demonstrando que traduzia não uma complementaridade de tarefas, mas uma relação de poder dos homens sobre as mulheres (Mathieu, 1991a; Tabet, 1998). (KERGOAT, Danièle.2009)
A divisão sexual do trabalho é também um dos pilares sobre o qual se assenta o capitalismo, sendo fundamental para o seu funcionamento, numa relação que une a exploração de sexo e classe com limites quase indistinguíveis. O sistema capitalista, como tal, é um modelo econômico e sócio-político muito jovem (pouco mais de 200 anos) que se estruturou aprofundando a cova da divisão sexual do trabalho, isso é, aquela primeira divisão de tarefas que forneceram a base para os papéis sociais de sexo (o gênero).
Para o capitalismo funcionar foi necessário hierarquizar não só ricos e pobres, brancos e negros/indígenas/amarelos, mas primeiramente homens sobre mulheres – e, inclusive, hierarquizando mulheres entre si, colocando umas na posição de “princesa indefesa”: feita para o casamento, frágil e submissa incapaz e incapacitada de trabalhar, criada para ser propriedade do marido e confinada no lar, para procriar herdeiros masculinos, mas privadas de controlar sua própria sexualidade e reprodução; e outras na posição de trabalhadoras braçais: exploradas, propriedades do colonizador, feitas para parir mais mão-de-obra e para cuidar dos herdeiros masculinos do escravagista, enquanto era privada de cuidar dos seus próprios filhos, privadas de decidir sobre sua própria sexualidade e reprodução. Ambas com sua subjetividade, vida, pessoalidade, criatividade, autonomia e liberdade negadas e postas a serviço dos homens e para reforço de seu status dominante.
A historiadora Gerda Lerner, que dedicou décadas pesquisando a história das mulheres e da nossa opressão, escreve em seu livro “A Criação do Patriarcado”:
“No segundo milênio antes de Cristo nas sociedades mesopotâmicas, as filhas dos pobres eram vendidas para o casamento ou para a prostituição para satisfazer o interesse econômico de suas famílias. As filhas dos homens que possuíam propriedades poderiam pedir um preço pela noiva, pago pela família do noivo para a família da noiva, o que frequentemente assegurava, à família da noiva, mais vantagens para os casamentos dos filhos, melhorando a posição econômica da família. Se um marido ou pai não pudesse pagar a sua dívida, sua esposa e crianças poderiam ser usadas como peões, tornando-se escravas por dívidas de seus credores. (…)
O produto dessa transformação da mulher em mercadoria — preço da noiva, preço de venda e crianças — foi apropriado pelos homens. Pode perfeitamente representar a primeira acumulação de propriedade privada. A escravização das mulheres conquistadas de tribos não apenas se tornou símbolo de status para nobres e guerreiros, mas certamente habilitou os conquistadores a adquirir riquezas através de venda ou troca de produtos das escravas de trabalho e seus produtos reprodutivos, as crianças escravizadas. (…)
Portanto, a escravização das mulheres, combinando ambos racismo e machismo, precedeu a formação da classe e das opressões de classes. As diferenças de classes foram no seu início expressada e construída em termos de relações patriarcais.” (LERNER, p. 213.)
Dessa forma, mulheres brancas tiveram de lutar para poder trabalhar e ter autonomia financeira que não as fizessem depender inteiramente, inclusive sua existência e de seus filhos, dos seus donos legais, os maridos. Mulheres negras tiveram de lutar para poder conseguir trabalhos significativos – não escravo, não desigual – para poderem garantir sua autonomia financeira, poder prover sua família, já que a violência policial e racial em geral não permitia que pudessem contar com seus companheiros sequer. Mulheres indígenas foram cada vez mais empurradas para os trabalhos da “civilização” imposta pelo colonizador, uma vez que sua terra, sua cultura e seu povo sofriam ataques genocidas constantes e poucas alternativas restavam.
Hoje, com a ideologia neoliberal arraigada e o sistema capitalista estabelecido — com tudo que isso implica, incluindo suas crises cíclicas por ser um modelo político insustentável para a natureza e as pessoas – essa divisão sexual do trabalho – agora também nivelada também pela hierarquia racial – continua a se fazer valer, praticamente intocada. Ainda que as mulheres estejam sendo progressivamente integradas na força de trabalho produtiva (embora não sem entraves, não igualmente e não em boas condições), o trabalho doméstico e reprodutivo continua compulsoriamente sob responsabilidade das mulheres. Isso não só diminui o seu potencial competitivo em relação aos homens no mundo produtivo (porque mulheres sempre em jornada dupla, tripla, quádrupla, tem menos tempo para dedicar-se ao desenvolvimento pessoal, e estão quase sempre exaustas), como também funciona para que homens desenvolvam suas carreiras às custas de ter uma mulher, sua esposa, cuidando 24h por dia de todas as tarefas chatas e intermináveis de manutenção da vida (roupas, comida, limpeza, administração do lar) permitindo que eles possam preocupar-se apenas e tão somente com o seu trabalho, estudos, carreira, dinheiro, sucesso. E aqui é importante ressaltar que esse estado de coisas é absolutamente estratégico para a manutenção do patriarcado e do capitalismo pois funciona para manter as mulheres mais pobres que os homens, e dependentes dele.
E é importante pontuar que, mesmo que integradas ao mercado de trabalho, a maioria dos empregos em que estão as mulheres não são mais que uma extensão do trabalho reprodutivo, de cuidados e emocional feito em casa: são secretárias, mas na maioria não são chefes; são cozinheiras, mas na maioria não donas de restaurantes ou chefs; são enfermeiras, mas na maioria não são médicas; são professoras, mas não pesquisadoras; são cuidadoras, são babás, são profissionais de limpeza, são auxiliares, são psicólogas, são pedagogas. E essas atividades são tradicionalmente pior remuneradas que atividades tradicionalmente exercida por homens.
Assim, vemos que a despeito de todas as “conquistas” e progressos, os pilares que equilibram o patriarcado permanecem firmes. Hoje ou há milênios, as mulheres seguem parindo e cuidando, pagas ou não, da sociedade. A divisão sexual do trabalho segue pouco alterada, apesar das experiências comunistas e das investidas do movimento feminista. Seguimos exploradas pelo patriarcado, pelo capitalismo, segregadas pelo racismo. Precisamos conhecer a raiz dos problemas que nos assolam e extirpa-los, definitivamente.