Misoginia é uma palavra que vem do grego “miseo” (ódio) e “gyne” (mulher) e significa literalmente “ódio às mulheres”. Falamos o tempo inteiro sobre “sociedade misógina”, que o patriarcado é “misógino”, mas pouco paramos para refletir no que isso significa.

Quando vemos tudo que acontece com mulheres, sobre como mulheres são vendidas, abusadas, violadas, exploradas, tudo que homens fazem ou permitem que seja feito com mulheres e crianças, ficamos chocadas. É muito comum que, na nossa incredulidade, entrar em modo de negação e creditar toda essa violência a “monstruosidade”, “desumanidade”, “maldade”, dividir homens em “bons” e “maus”. E isso tanto é um erro de análise quanto um erro estratégico que pode comprometer nossa própria segurança. Homens não são “monstros”, não existem os homens bons e os homens maus. Todos os homens, atenção aqui: TODOS, estão de alguma forma comprometidos com a violência e dominação das mulheres. Seja por ação ativa ou omissão.

E isso acontece porque desde meninos, a grande lição patriarcal que todas as instituições encarregam-se de passar com excelência e permear por toda nossa cultura, é o ódio contra as mulheres. A misoginia.

Sem criar uma sociedade que efetivamente odeia mulheres, as rejeita, as inferioriza, as desumaniza, as objetifica, não é possível fazer todo o trabalho necessário de dominação pela coação, exploração, violação, tortura e morte que homens cometem contra mulheres para manter a estrutura patriarcal que sustenta os privilégios masculinos. É preciso que meninos aprendam a ver meninas como seres inferiores, que sintam nojo, asco, desprezo, que não queiram de maneira nenhuma ser identificados com nada que seja associado a mulheres, sob o risco de isso representar sua desqualificação como pessoa. É preciso separar os grupos por sexo e criar hábitos e comportamentos muito bem demarcados e característicos para que não haja dúvida qual o sexo a ser explorado. Para que essas pessoas, desse sexo feminino, sejam imediatamente identificadas, para que não sejam confundidas. E para que um grupo possa ser comparado ao outro, para que uma hierarquia entre eles possa ser criado. Para que exista um grupo mais forte e outro mais fraco. É preciso ridicularizar esse grupo, é preciso objetificá-lo, é preciso desenvolver um sentimento de que mulheres são algo a ser obtido, tomado, algo que pode lhe pertencer por direito. Para que a sociedade patriarcal opere a pleno vapor é preciso que homens odeiem mulheres.

E eles odeiam. Não tenha nenhuma dúvida disso.

Ofereça uma boneca para um menino de 7 anos brincar. Ofereça itens rosa (que hoje é uma cor associada a meninas), para um menino de 10 anos, pode ser qualquer coisa, uma camiseta, uma caneta, uma caneca. Peça para um grupo de garotos de 12 anos usar uniformes com estampas de flores, corações e unicórnios. Coloque um filme da Barbie Sereia para um grupo de adolescentes assistir. Observe a reação e as respostas. O que você verá não são manifestações de um gosto pessoal e sim o processo de internalização de ódio a tudo que é associado a meninas. Você verá um completo terror em ser confundido com uma menina. Você verá meninos manifestando repulsa, nojo, escárnio, desprezo, raiva, e sem eles sequer saberem porquê, já que se você perguntar diretamente se eles gostam de meninas a resposta será: “claro!!!”. Mesmo porquê, veja também, todo menino é socializado, desde muito cedo a desenvolver fixação na ideia de ter meninas para si como “namoradas”, e são desde muito jovens orientados a desenvolver um interesse muito específico em mulheres: por seu corpo.

Meninos aprendem muito precocemente para que meninas “servem”, para serem namoradas, nunca amigas, nunca companheiras, nunca líderes, nunca da turma. Mas namoradas, as bonitas, as gostosas, as tesudas. Nunca ser confundido com elas, parecer com elas, ter os mesmos interesses que elas, porque elas são inferiores, fúteis, fracas, precisam de um homem par guiá-las.

Pergunte a um homem adulto sobre mulheres que ele admira. Mulheres cientistas que ele conhece. Mulheres artistas que ele acompanha, cantoras, atrizes, artistas plásticas das quais ele é fã. Mulheres executivas que ele respeita. Pergunte a um homem adulto sobre mulheres que o inspiram.

Pergunte a um homem adulto sobre mulheres que ele acha bonita, mulheres que ele acha gostosa, mulheres que ele não acha bonita nem gostosa, mas “comeria”. Pergunte a um homem sobre mulheres que ele nunca “comeria”, mulheres que “são pra casar”.

Compare as listas.

Peça a um homem para “imitar” uma mulher. O que você vê? Escárnio.

Peça a um homem para descrever uma “boa mulher”. O que você vê? A descrição de uma serviçal pronta para ser estuprada 24 horas por dia.

Misoginia. Isso é misoginia.

A misoginia é o pilar central que sustenta o patriarcado. É o valor que permeia todas as estruturas, todos os sistemas, todas as estratégias que existem para garantir que homens permaneçam por séculos explorando mulheres e dominando-as por meio da violência. Porque só uma sociedade que odeia mulheres, só uma socialização que ensina uma metade da população a desumanizar e odiar a outra metade consegue alcançar e manter seu propósito de dominação.

E aí você pode pensar: nossa, meu pai/namorado/irmão/avô/parente/amigo não é assim! Bom, talvez você não tenha notado, talvez ele não seja assim… com VOCÊ. E aí isso não conta porque relações afetivas próximas tendem, às vezes, em humanizar, um pouco, o olhar masculino. E aí isso não significa que esse seu ente aí tão queridão não seja um poço de misoginia com as outras mulheres. Porque o ponto não é só como aquele determinado homem trata você, né? Como ele trata TODAS as mulheres? Ele consome pornografia? Ele prostitui mulheres? Ele tem autonomia doméstica e se recusa a depender de qualquer mulher para realizar tarefas para ele? Ele faz/ri de piadas misóginas? Ele trata mulheres com condescendência? Ele divide mulheres entre “boas” e “más”, “direitas” e “erradas”, pra “casar” e pra “comer”? Ele acha que certas mulheres “merecem”, “provocam”, “procuraram” ?Ele se opõe abertamente ao grupo de amigos quando depara-se com ações misóginas? Como é a relação dele com ex-namoradas? Como é o comportamento dele com mulheres que o contrariam, o rejeitam, o desaprovam?

A diferença entre o homem “bom” e o homem “mau”, é que aquele homem ali, por um acaso, por interesse, por seja lá qual foi o motivo, foi bom para você. E estar livre da misoginia é sobre ser “bom” para toda e qualquer mulher, porque se é uma pessoa decente que enxerga mulheres como seres humanos. Tornar-se homem, no patriarcado, é, em instância primeira, ser destituído da capacidade ver mulheres como pessoas.

E mulheres também aprendem a odiar-se. A odiar umas as outras. Também internalizamos a misoginia. Meninas aprenderem a odiar a si mesmas é outra estratégia fundamental para garantir que vão aceitar toda a violência, todos os maltrato, que vão suportar a virulência masculina e ainda vão achar que mereceram. Vai garantir que uma mulher sinta-se grata se um homem lançar-lhe atenção, se um homem tratá-la bem, se um homem fizer o mínimo, se tiver o básico da decência, porque ela será treinada a acreditar que não merece ser amada, que não é uma pessoa, que não tem nenhum valor. Que ser escolhida, desejada, preferida por um homem é uma maneira de ser reconhecida em sua alteridade. Que sua existência só é legitimada a partir da aprovação masculina, sobre seu corpo, sua aparência, seu comportamento. Meninas aprenderem a odiar a sim mesmas, odiarem o próprio corpo, terem nojo de si, é o toque final na estruturação dessa relação futura homem-mulher, é o arremate na legitimação do poder masculino sobre as mulheres. O domínio é psíquico, a jogada de mestre é fazer a presa entregar-se voluntariamente ao caçador e ainda sentir-se grata.

E a misoginia está em toda parte. Abra os olhos e veja. Não é bonito nem agradável, mas é muito importante para que possamos nos defender. Para que possamos denunciar. E resistir.

Ninguém nos ensina como se ama uma mulher e este é o primeiro passo da revolução. Romper essa amarra psíquica muito bem engendrada pela misogina. Reconhecer mulheres como pessoas em sua integridade e interessa. Parece clichê mas sim, essa é uma revolução a ser travada pelo amor.