Pelo que o feminismo luta? Pela libertação das mulheres da opressão do patriarcado. Mas o que isso significa objetivamente? Quais são as pautas que conduzem a luta feminista, quais são as reivindicações e propostas práticas, em torno do qual o feminismo se articula como estratégia para atingir seu objetivo?

A primeira coisa que é preciso entender é que existem duas perspectivas de ação quando falamos de movimentos sociais. Uma é a perspectiva revolucionária, que entende que é necessário pôr abaixo todo o atual sistema estruturante da sociedade, e a outra é a perspectiva reformista que acredita que é possível fazer “reformas”, mudanças por dentro da estrutura, de forma a reorganizá-la.

O feminismo é, eminentemente, um movimento revolucionário. Compreendendo a maneira como o patriarcado estrutura-se, não existe nenhuma via de “reforma” para esse sistema, já que ele organiza-se unicamente baseado na exploração das mulheres para conceder profundos privilégios à classe masculina. Não é possível, portanto, haver “reformas” para esse sistema de coisas pois ou mulheres estão libertas desse sistema hierárquico ou não estão, não há um meio-termo quando falamos de exploração. E uma vez dado o fim da hierarquia baseada no sexo toda a lógica de organização da nossa sociedade perde sentido e faz-se necessário um novo modelo.

É por isso que o feminismo não luta por “igualdade” por dentro do patriarcado. Antes, entendemos que a “igualdade” só é possível com a falência deste sistema. Só existe uma estrutura patriarcal, com um sistema capitalista, só existe racismo, porque existe uma lógica de dicotomia e desigualdade. Onde uma classe (sexual, social, racial) explora sistematicamente a outra. E não existem mecanismos possíveis que anulem esse jogo de forças. No máximo o que a estrutura permite são medidas paliativas que amenizam a tensão entre os pólos, sempre em benefício dos dominantes. Aqueles que nos dominam reorganizam-se constantemente, cedem espaço, cedem direitos e usam das mais inimagináveis estratégias para manter apaziguada a luta entre as classes e manter seus privilégios.

E por isso que o feminismo também é naturalmente anticapitalista e antirracista. Não há como pensar em desmantelamento do patriarcado sem derrubar o principal pilar que o sustenta: o capitalismo. Foi com o capitalismo que a exploração do corpo reprodutivo da mulher especializou-se em níveis inimagináveis a partir da industrialização, cultura de massa, globalização, tecnologias em rede e etc. E da mesma forma não há como pensar em desmantelamento do patriarcado sem derrubar as teses racistas que historicamente colocaram mulheres negras na posição de maior vulnerabilidade a toda essa cascata de opressões que sofremos.

De maneira pragmática, as pautas feministas organizam-se lutando contra pontos considerados estratégicos para a manutenção do patriarcado. Consideramos, por exemplo, que a hierarquia que combatemos estrutura-se por meio da socialização para papéis sociais baseados no sexo de nascimento: o gênero; que é a socialização de meninas desde o seu nascimento para a subalternidade (também chamada de feminilidade), que acontece desde o nascimento de meninas e a socialização de meninos desde o seu nascimento para a dominância (também chamado de masculinidade).

Portanto o feminismo é abolicionista de gênero. Isso significa que feministas lutam pelo fim dos estereótipos de gênero, que dividem o mundo em coisas de menino” e “coisas de menina”, condicionando comportamentos desde a mais tenra idade. Feministas lutam pelo fim das amarras da feminilidade, o que significa falar contra a socialização para a docilidade, subserviência, sensualidade. Defendem a construção de uma estima para mulheres que seja desatrelada de padrões de beleza. Também defendem que meninos não sejam extipardos da sua sensibilidade sendo treinados para serem máquinas de perseguir e violentar mulheres. O abolicionismo de gênero, o fim dos papeis sociais atrelados ao nosso sexo, é uma das chaves mais importantes para o fim do patriarcado e beneficia aqui igualmente homens e mulheres, e principalmente, nossas crianças, que têm a chance de crescer livres, inteiras, tendo sua subjetividade respeitada.

Lutamos pela abolição de gênero principalmente por meio da conscientização de mulheres e buscando modelos mais propositivos e libertadores para a socialização das crianças. Combatendo ativamente os estereótipos de gênero. Sendo críticas à industria da beleza, objetificação das mulheres, combatendo a ideia de que existem múltiplos gêneros ou fluidez de gênero, ou não-binariedade de gênero, simplesmente porque a teoria feminista e os dados nos mostram é que não existe possibilidade de existência e reconhecimento social fora de um papel eminentemente marcado pela masculinidade ou marcado pela feminilidade, e portanto regido por uma hierarquia.

Da mesma forma, lutamos contra a heterossexualização compulsória dos indivíduos, que é a socialização para que necessariamente as pessoas se organizem afetivamente em relacionamentos heterossexuais e constituam famílias nucleares, com filhos, onde vai imperar um modelo onde o homem é o “líder” daquele núcleo, exercendo poder sobre a mulher e os filhos. Isso significa que o feminismo defende o fim do casamento e da família desta maneira em que ela é organizada, tendo a mulher a serviço do lar e dos filhos.

Defendemos que as pessoas tenham liberdade para organizar-se afetivamente, independente do seu sexo, em arranjos que não constituam prejuízo para nenhuma das partes. Entendemos que essa organização só é possível — principalmente se tratando de homens e mulheres — com o fim dos estereótipos de gênero, de forma que todos possam se ver como em condições iguais, em direitos e deveres, na constituição de seus acordos de vida, o que reverbera na divisão dos trabalhos domésticos, nos ajustes financeiros, nas decisões sobre reprodução. É preciso também combater a romantização e exaltação dos relacionamentos heterossexuais, assim como a lesbofobia e a homofobia, que são mecanismos sociais de controle da sexualidade.

Lutamos contra a maternidade compulsória, ponto-chave para que mulheres saiam da posição de serem incubadoras humanas para o sistema. Isso implica de transformar desde as nuances da socialização das crianças, até lutar para garantir pleno acesso a educação sexual, políticas de planejamento familiar, contraceptivos seguros e baratos, esterilização e aborto. Também significa oferecer pleno apoio para mulheres que não desejam ser mães e combater a romantização da maternidade. Por outro lado é preciso amparar as mulheres-mães na sua tarefa de cuidado dos seus filhos e pensar uma sociedade em que crianças estão em primeiro plano.

O controle reprodutivo é o cerne da luta feminista. Retomar o controle dos nossos corpos. Retomar nosso status de pessoas humanas. Por isso criticamos e combatemos práticas como a barriga de aluguel, por entender que ter filhos não são um “direito”, que crianças não são um “produto”, que podem ser fabricado no útero alugado de uma mulher. Por entendermos que o processo de uma gravidez é arriscado e delicado, que envolvem questões da subjetividade de uma mulher que não podem ser precificadas. Por entender que mulheres e crianças são pessoas.

E da mesma forma propomos a abolição de toda a indústria do sexo, que envolve a prostituição, pornografia, indústria da beleza, cultura de massa, e todo o conglomerado que explora comercialmente o corpo e a sexualidade de uma mulher a transformando em um produto a ser consumido muito mal entrando na sua idade reprodutiva. Assim como toda a forma de erotização da violência contra a mulheres, como BDSM, por entendermos que é através da violência sexual que a dominação masculina se consolida.

Combatemos todas manifestações de violência contra a mulher, agressão, assédio, estupro, feminicídio, mutilação genital feminina e defendemos o direito de meninas e mulheres crescerem livres da violência masculina. De meninas e mulheres não serem tão precocemente serem obrigadas a servir homens sexualmente, por isso combatemos ativamente o casamento infantil, a cultura do estupro, a cultura da pedofilia. Isso significa não só exigir proteção para meninas mas ser crítico em relação aos produtos culturais que erotizam e objetificam meninas e glamourizam a abusividade dos relacionamentos.

O pessoal é político. Isso quer dizer que nossa vida privada não é autônoma e pautada por nossas escolhas individuais, mas antes um resultado da estrutura política patriarcal que nos cerca. Por isso o autoconhecimento, a consciência das amarras patriarcais nos nossos tornozelos é fundamental para começarmos mudanças efetivas.

Buscamos estratégias de sobrevivência para seguirmos no nosso trabalho revolucionário. Por isso lutamos ativamente por medidas que reduzam a pobreza feminina, pobreza menstrual, por cotas, por proteção social, por soberania alimentar, por uma economia feminista que leve em conta as demandas de sustentação da vida. Combatemos ativamente o racismo porque todas as mazelas das desigualdades, violência, pobreza recaem justamente no colo das mulheres negras. Defendemos ativamente políticas que reduzam a desigualdade social, amplo acesso a saúde, segurança, educação, apoio para mulheres com deficiência. Porque mulheres precisam estar em condições para a luta. Uma das estratégias do patriarcado para nos manter fora do jogo é justamente nos manter eternamente em situação de precariedade.

Defendemos que meninas e mulheres aprendam autodefesa. Lutamos pela criação de centros de apoio e acolhimento para vítimas de estupro. Defendemos que mulheres mantenham-se unidas, coesas e apoiamos iniciativas separatistas (grupos de mulheres organizando-se comunitariamente, vivendo totalmente apartadas de homens) como estratégia de luta. Apoiamos o lesbianismo político, mulheres ativa e conscientemente optando por relacionar-se e fazer seus arranjos de vida exclusivamente com mulheres.

Temos inúmeros desafios. Reagimos hoje a uma agenda liberal que quer nos convencer que estamos muito mais “livres” e “empoderadas” do que realmente estamos. Que apenas nos colocou em uma jaula mais espaçosa. Em inúmeros aspectos continuamos no mesmo lugar que nossas avós. Subservientes, dependentes da aprovação masculina, sem acesso ao dinheiro, aos postos de decisão, sem acesso às esferas do poder, cada vez mais domesticadas pela feminilidade. Os papéis sexuais nunca estiveram tão acirrados e determinados; mulheres viraram uma mercadoria sexual definitiva, os limites do consentimento estão cada vez mais borrados; continuamos condenadas ao papel de esposa e mãe, mas agora em dupla, tripla jornada. E o que é mais assustador é que nós mulheres estamos chamando isso de LIBERDADE.

Muitos são os fronts de luta. Inúmeros. Há muito trabalho a fazer e cada uma de nós pode engajar-se em um grupo, com uma pequena tarefa. Precisamos que cada mulher finalmente compreenda sua condição enquanto fêmea, que tire o véu dos olhos e seja capaz de ver o que é ser mulher. Que ser mulher é ser uma fêmea humana domesticada para subalternidade. Que temos agência mas ela é limitada pela estrutura e por isso precisamos agir juntas, em conjunto, organizada e orquestradamente. Que precisamos estar atentas para as armadilhas.

Somos metade da humanidade. A revolução é possível. Mas para isso, precisamos ir juntas.

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