Você certamente já viu muito por aí que o movimento feminista luta contra o “patriarcado”, ou que é o “patriarcado” que oprime mulheres, não é? Mas você sabe mesmo o que é esse “inimigo” que temos que derrotar?
O que é afinal esse tal de “patriarcado”? Do que ele se alimenta? onde ele vive? O que ele faz com as mulheres que é assim tão grave? E finalmente, como podemos nos defender dele?
“Patriarcado” é uma palavra muito antiga, que mudou de sentido, e que em uma acepção feminista, designa um modo de organização social em que os homens detêm o poder. A feminista Gerda Lerner, no livro “A criação do patriarcado”, o define como: “A manifestação e institucionalização da dominação masculina sobre as mulheres e crianças na família e a extensão dessa dominação sobre as mulheres na sociedade como um todo” (p. 239).
Simples assim. O poder masculino é exercido através da violência, da coerção, do controle das riquezas, e principalmente pela criação de uma estrutura social, econômica e cultural que mantém essa superestrutura de dominação operando, crescendo e sempre se retroalimentando. Em uma sociedade patriarcal, o poder é dos homens, no geral, homens brancos, ricos, especificamente. E eles usam esse poder para controlar mulheres, no geral, e pessoas pobres e racializadas especificamente. Isto porque é importante destacar que o modo de organização patriarcal sustenta-se ancorado por outras duas estruturas sociais que são o capitalismo e o racismo. São diferentes modos de dominação social, baseado no sexo, na classe e na raça, que se cruzam, se complementam e se fortalecem mutuamente, deixando sempre no topo dessa cadeia alimentar da opressão, o homem branco rico.
E é muitíssimo fácil notar como isso funciona:
Poder econômico:
São os homens que sempre detiveram o poder e construíram o mundo como conhecemos, que conduziram a história e a determinaram. Folheie os livros e perceba qual é o perfil da figura que protagoniza os fatos históricos. Mulheres foram sistematicamente excluídas do processo tiveram suas contribuições apagadas, salvo uma ou outra exceção que foi mantida em caráter ilustrativo.
Homens sempre foram desobrigados das tarefas de cuidar pessoalmente do lar e da família e estiveram livres, guerreando, conquistando, desbravando — e saqueando territórios, escravizando povos. São criados na lógica da conquista, e na versão moderna incentivados a construir carreira e fazer fortuna. Foram os homens que sempre detiveram as possibilidade de construir e acumular patrimônio e por isso hoje são eles que detém o controle de todo o dinheiro que circula hoje no mundo.
Pouquíssimas são as mulheres que tiveram chance de produzir a própria fortuna. Praticamente todas as mulheres ricas devem sua fortuna à herança ou, muitíssimo recentemente, à divisão de bens matrimonais após divórcio. Essa lógica da desigualdade de acesso a riqueza se mantém inclusive independente do estrato social que se trate. Mulheres tradicionalmente acessam menos cargos de chefia, ganham menos que homens realizando as mesmas tarefas e são ejetadas do mercado de trabalho assim que se tornam mães.
Poder político
Detentores dos meios de produção e das possibilidades de acumulação de capital, homens estiveram livres para ordenar a sociedade e comandá-la como bem entendessem. Foram os imperadores, monarcas, conquistadores, colonizadores, e agora presidem as nações. Atualmente, dos 193 países reconhecidos pela ONU, apenas 20 possuem mulheres Chefes de Estado e/ou de Governo. No parlamento, a situação se repete: os homens ainda ocupam cerca de 75% dos assentos em boa parte do mundo.
Poder judiciário
E assentados no comando dos territórios, dos feudos e agora dos Estados-Nação, homens organizaram todo o ordenamento para proteger o sistema que criaram sendo eles quem fazem as leis, aplicam, julgam, condenam, prendem e/ou matam. Homens são a maioria dos parlamentos legislativos e também predominam em todo o sistema judicial e policial.
Produção de saberes:
São os homens também que constroem todos os saberes que acessamos, mulheres foram sistematicamente proibidas de estudar e frequentar universidades (No Brasil, até 1879, a educação era permitida somente para homens). Dessa forma, tudo, absolutamente tudo que conhecemos em termos de ciências humanas, sociais, exatas, biomédicas, foi criada com olhar masculino e orientação patriarcal, sempre partindo do pressuposto da inferioridade feminina.
No atual ranking dos cientistas mais influentes do mundo, uma lista com mais de 6 mil cientistas do mundo todo, de 21 áreas de conhecimento, a participação de mulheres gira em torno de uma média de 20%, variando muito por área de atuação, onde é possível ir de uma participação de 23% nas Ciências Sociais até 7,7% em Física e Astronomia.
Produção cultural e moda:
A cultura é um aspecto importantíssimo da nossa socialização e é através dela que propagamos e cristalizamos os valores da sociedade em que estamos inscritos. Nossa cultura é machista e portanto todos os nossos produtos culturais (artes, pinturas, esculturas, literatura, música, audiovisual) são feitos por homens, para homens, e existem para sempre apresentar e naturalizar a mulher em um papel submisso, subalterno e objetificado em oposição a homens em papel dominante, heróico, salvador.
Dos 15 livros mais vendidos de todos os tempos, apenas 3 são de mulheres. Dos 5 músicos que mais venderam mais de 300 milhões de álbuns, apenas 1 é mulher. Apenas 4% dos diretores de filmes de Hollywood são mulheres.
Assim como são homens que detém todos os meios de produção também são eles que comandam a indústria de marketing e publicidade e define quem deve consumir que produtos. São eles que ditam a moda como conhecemos, que definiram os padrões estéticos e o comportamento das mulheres. Que decidem como uma mulher deve se parecer, se vestir, se comportar, para atender os desejos masculinos e as demandas do capitalismo.
Este é o patriarcado. Uma estrutura completamente dominada e dirigida por homens. Nós, mulheres, nunca tivemos uma chance. Há diversas engrenagens que operam para que esse sistema mantenha-se garantindo os benefícios e os privilégios da classe dominante, uma classe que é dominante por conta do seu sexo: masculino.
A principal estratégia do patriarcado para garantir a supremacia masculina é a dominação e exploração continuada de mulheres. Para que isso ocorra ininterruptamente e sem grandes sobressaltos absolutamente todas as pessoas nascidas são socializadas para desempenhar papeis sociais de acordo com seu sexo(que também costumamos chamar de gênero).
A socialização vai ensinar todas as meninas sobre subalternidade, submissão, fragilidade, sobre amar homens e desejar sua aprovação e proteção, sobre ver valor em si como um objeto de apreciação, sobre como sua função social é ser mãe e esposa de um homem, que isso é um instinto natural, e que ela deve ser guiada e protegida porque é naturalmente mais fraca e inferior. E meninos também aprendem a ver meninas dessa forma.
A socialização também vai ensinar todos os meninos sobre dominação, violência, sobre odiar mulheres (misoginia), sobre desumanizar e ver mulheres como coisas que lhe pertencem, que sua função social é dominar e ordenar o mundo porque ele é naturalmente melhor e mais apto. E meninas também aprendem a ver meninos dessa forma.
Essa noção de que homens são melhores, mais importantes, mais aptos que mulheres. E de que mulheres são frágeis, inseguras, que são seres sensuais e maternais, devendo existir em função e orbitando ao redor dos homens é reforçada por todas as nossas instituições e dá o tom da cultura da nossa sociedade. É o que chamamos de machismo.
O machismo é a cultura patriarcal expressando e reforçando seus valores.
O patriarcado é um sistema complexo que abarca vários subsistemas que operam para manter a lógica de submissão feminina e dominação masculina:
A exaltação da violência masculina (masculinidade) que legitima e naturaliza a violência quando vinda por parte dos homens, e mais, que exige um comportamento agressivo e dominante por parte dos meninos como forma de serem aceitos socialmente.
A exaltação da subalternização (feminilidade) que legitima e naturaliza a coisificação das mulheres, asexualização dos corpos femininos como elemento legitimador da existência, a aceitação de uma hierarquia ao organizar todos os comportamentos de mulheres em função da validação masculina e a serviço do bem-estar dos homens.
Um regime de heterossexualidade compulsória: onde o único modelo de relacionamento sexual aceito é o heterossexual, estando todas as outras formas passíveis de punições sociais e sanções severas. E onde todas as formas de existência são necessariamente empurradas para cumprir os papeis sociais definidos de acordo com o sexo (estereótipos de gênero), e que resulta sempre no mesmo: homens dominando e explorando o trabalho reprodutivo de mulheres.
Um regime de maternidade compulsória: onde a mulher é adestrada para a maternagem, cuidado e trabalho reprodutivo, onde não há dispositivos confiáveis, leis protetivas, nem nada que seja realmente seguro para que uma mulher mantenha algum propósito de não engravidar. E onde a socialização para o cuidado é uma coisa tão pungente, que mesmo não criando crianças, mulheres são empurradas a cuidar de todo o resto.
Uma cultura do estupro: que legitima e naturaliza a tomada dos corpos de mulheres, a despeito do seu consentimento, para o uso sexual e reprodutivo. Que funciona como um dispositivo de terrorismo e controle da sexualidade das mulheres que condicionam seu comportamento e submetem-se aos homens em função do medo constante de sofrer violência.
Uma cultura da pedofilia: que legitima e naturaliza a tomada dos corpos de meninas, fragilizadas, vulneráveis, quando ainda são muito incapazes de reagir ou mesmo perceber o abuso e a exploração masculina.
A divisão sexual do trabalho: que legitima e naturaliza os papeis sociais de sexo (gênero) separando atividades laborais de acordo com os comportamentos que precisam ser reforçados para manter a lógica patriarcal (e assim todas as mulheres estão sempre naturalmente envolvidas em profissões ligadas a corpo, cuidado, ensino, limpeza, beleza), e homens sempre em profissões ligadas a comando, força, ciência, dinheiro, pesquisa, etc. E onde as atividades consideradas “masculinas”, ou estejam ocupadas por homens, sempre serão melhor remuneradas e mais prestigiadas. É por isso que mulheres são tradicionalmente cozinheiras, mas os prestigiados chefs de cozinha são homens, que mulheres são tradicionalmente professoras, mas os pesquisadores acadêmicos são homens, que mulheres são as costureiras, mas os estilistas famosos são homens. E a lista de exemplos segue infinita.
A feminização da pobreza: um processo, que passa desde a exclusão sistemática da mulher tanto dos bancos escolares quanto do mercado de trabalho até leis específicas (que impediam acesso a herança ou posse de terras, por exemplo) com o objetivo de manter mulheres apartadas das oportunidades de autonomia para a própria sobrevivência e manterem-se dependentes financeiramente de homens – seja pela via familiar ou por casamento. Mulheres (principalmente pobres e racializadas), com suas crianças, são a parcela mais empobrecida da população mundial e manter esse quadro é hoje um dos mecanismos mais eficientes para garantir a dominação dos homens sobre os corpos femininos. Para que mulheres vendam acesso sexual ao seu corpo, aluguem seus úteros, sejam negociadas em casamento e outras atrocidades.
A exploração do trabalho doméstico: onde mulheres exercem gratuitamente, sob exploração, todo o trabalho invisível de manutenção da vida que é essencial ao funcionamento não só do patriarcado como ao sistema capitalista. São mulheres que garantem que homens estejam sempre limpos, alimentados e saudáveis, livres para vender sua mão de obra ao capital.
A mercantilização das mulheres: A exploração sexual das mulheres alcançou patamares de extrema sofisticação com ocapitalismo. Há um conglomerado composto por inúmeros (e muitas vezes insuspeitos) setores, voltados para alimentar essa demanda e garantir a oferta da mulher como um produto. Dessa forma, não falamos apenas de setores evidentes como pornografia e prostituição, mas também outros como a indústria da beleza (que concorre para objetificação e criação de valor apenas focado no corpo e aparência), falamos da mídia e produtos culturais (que naturalizam a sexualização, glamouriza a prostituição e a pornografia, vendem o sexo como um direito masculino), passando até sobre a cooptação de discursos que nasceram emancipatórios (como “meu corpo e minhas regras” ou “empoderamento”), mas que foram enlatados e resultam nos mesmos comportamentos: mulheres sendo objetificadas e comercializadas para o deleite e usufruto masculino.
É contra essa estrutura que o feminismo luta. Contra um sistema que é completamente organizado por homens para beneficiá-los e mantê-los no poder. Um sistema que é pensado nos mínimos detalhes e no qual nascemos imersas. Temos nossa socialização para desconstruir, temos estratégias patriarcais para denunciar, temos que nos defender. Há muito o que fazer. E somente a luta incansável e organizada das mulheres pode fazer frente. E é por isso também que dizemos que o feminismo não é, nem nunca poderá ser, sobre igualdade. Não há igualdade possível em um jogo onde o oponente tem todas as cartas na mão. Homens não farão concessões. Lutamos pelo fim desse sistema, pela sua destruição. E com isso, a libertação de todas as mulheres.