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O que todas as mulheres têm em comum?

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diferente mulheres abraçadas

A dominação exige a fragmentação política do grupo dominado tanto quanto possível. Mulheres são um grupo dominado e, portanto, fragmentado. A supremacia masculina diferencia, hierarquiza e separa as mulheres umas das outras. É de fundamental importância que elas vejam a si mesmas e as demais como indivíduos tão diferentes, com experiências tão específicas, tão incomunicáveis, que acreditem não haver interesses comuns entre elas e as demais mulheres, que os interesses de cada grupo de mulheres são não apenas opostos, mas mutuamente excludentes.

Raça, etnia, classe, estado civil, religião, idade, região de origem, orientação política, grau de escolaridade, biotipo, respeitabilidade etc, tudo pode ser utilizado para diferenciar, hierarquizar e separar mulheres.

Diante de tantos elementos fragmentadores, para a luta feminista, interessa saber o que as mulheres têm em comum, quais situações são comuns a todas as mulheres e, portanto, nos unifica enquanto uma classe oprimida.

Intelectuais brancas oriundas de países desenvolvidos, portanto em melhores condições materiais, educacionais, psicológicas, afetivas, políticas etc de analisar o funcionamento do sistema de poder masculino, identificaram que ele operava através de uma série de padrões. Quanto mais profundamente o sistema patriarcal era conhecido, mais as mulheres se uniam a outras mulheres, tornando-se dissidentes de sua raça e classe, e encontrando meios efetivos para deixar de ser fantoches dos homens. Como resultado, elas foram proscritas do mundo dos homens, caluniadas, difamadas, tiveram seus pensamentos proibidos, ainda que tacitamente, de entrar nas universidades e demais instituições de poder, sobretudo em patriarcados quase intocados como o brasileiro. Teorias propositalmente confusas foram aclamadas e disseminadas nos centros de conhecimento do mundo inteiro visando barrar os processos revolucionários das mulheres. No Brasil, grande parte das teorias dessas autoras entraram apenas recentemente, de modo semi clandestino, e através dos esforços ingentes de tradução de bravas feministas.

A seguir, elencamos algumas das situações a que todas as mulheres são submetidas em sociedades dominadas por homens. São elas:

  1. Todas as mulheres são tratadas como um recurso disponível para ser usado pelos homens. O grupo de homens que dominam a sociedade praticam esse uso contra todas as mulheres. Já os homens oprimidos por raça, etnia, religião, orientação política, região de origem ou qualquer outra categoria política executam essa crença contra as mulheres do seu próprio grupo e contra as que possuem status ainda mais inferior (FRYE, 1983; LERNER, 2019).
  2. Todas as mulheres que reivindicam alguma autonomia frente aos interesses dos homens sofrem chantagem emocional por parte deles, sendo demonizadas e igualadas aos piores inimigos deles (DELPHY, 1984).
  3. Todas as mulheres são socializadas para servir aos interesses, sexuais, reprodutivos, afetivos, psicológicos, econômicos e políticos dos homens. As mulheres pertencentes a grupos oprimidos por raça, etnia, religião, orientação política, região de origem ou qualquer outra categoria política, além de servir os homens que dominam a sociedade, servem os homens do seu próprio grupo. (FRYE, 1983; LERNER, 2019; PATEMAN, 1993)
  4. Para que a condição anterior seja possível, todas as mulheres são heterossexualizadas. A heterossexualidade é uma instituição política não natural (isto é, não determinada biologicamente) mas que é apresentada como natural a todas as mulheres e visa assegurar a exploração das mulheres pelos homens. A heterossexualidade pressupõe o modelo sexual masculino que, este sim, é antinatural para mulheres quando a prática sexual visa não à reprodução, mas ao prazer e à satisfação sexual (RICH, 2019; LONZI, 2018; PATEMAN, 1993).
  5. Todas as mulheres são pressionadas a simbolizar publicamente sua inferioridade política. Quanto maior a desigualdade de poder entre homens e mulheres, mais acentuado é o diformismo sexual (parecer um homem/parecer uma mulher). Esse diformismo também é chamado de gênero sexual e é demarcado pela indumentária, pelo comportamento e por alterações culturais no corpo, tais como maquiagem, tatuagem, penteados, pintura corporal etc. Esses recursos de diferenciação não apenas marcam a diferença sexual (gênero), mas, sobretudo, criam e hierarquizam a diferença sexual. A inferioridade das mulheres é explicitada por serem justamente elas que praticarão os procedimentos marcadores do diformismo sexual mais dolorosos, mais perigosos, mais dispendiosos, mais demorados e mais limitadores dos movimentos naturais do corpo, dificultando sua participação na vida social, cultural, política e econômica da sociedade em pé de igualdade com os homens. (JEFFREYS, 2005; DWORKIN, 1974).
  6. Embora os motivos alegados pelos homens variem, todas as mulheres são pressionadas a parir. Homens ricos pressionarão suas esposas a parir para ter herdeiros. Se elas decidirem não parir, poderão ser punidas com a perda do casamento e, consequentemente, com a morte social. Homens de povos ameaçados de extinção pressionarão suas mulheres a parir para evitar o desaparecimento definitivo. Caso elas se recusem, poderão ser responsabilizadas, até mais que o grupo de homens que promoveu o etnocídio, pela extinção do seu povo. Homens de grupos raciais oprimidos pressionarão suas mulheres a parir em resposta às perdas acarretadas pela violência da qual são vítimas. Caso elas se recusem, poderão ser consideradas traidoras da raça. Homens de tradição religiosa historicamente perseguida, pressionarão suas mulheres a parir para garantir a continuidade da tradição e o povoamento de territórios ocupados. Caso elas se recusem, podem ser igualadas aos perseguidores. Nenhum homem é reduzido à sua capacidade reprodutiva como são as mulheres. Enquanto as mulheres parem filhos para dar continuidade aos projetos dos homens, eles parem arte, política, cultura, linguagem, símbolos, ciência, modos econômicos, guerras, etc e se mantém ditando os rumos da humanidade, os quais as mulheres pouco influenciam. (LERNER, 2019).
  7. Todas as mulheres são representadas na cultura do modo como os homens as veem e do modo que lhes é mais conveniente. Como eles detém quase a totalidade dos meios de produção simbólica, impõem a todas e todos o que acreditam serem as mulheres e como elas devem se comportar. (MILLETT, 1995; LERNER, 2019; WITTIG, 1992) .

Apesar da enorme atomização forçada da classe política feminina, mulheres resistem à opressão. Sempre resistiram. As violências masculinas que chegam a feminicídios com um grau de violência inacreditável, promovidos principalmente por homens conhecidos de suas vítimas, são respostas brutais contra as formas de resistência das mulheres. No entanto, enquanto não conseguirem se organizar politicamente enquanto classe que são, as mulheres continuarão sendo obrigadas a lutar sozinhas, sem armas, no escuro e de modo instintivo contra seus opressores, sendo fácil e exemplarmente abatidas.


Bibliografia citada:

Delphy, Christine. Our friends and ourselves. In: Close to home — a materialist analysis of women’s oppression, Amherst: The University of Massachusetts Press,1984, p. 57–137

Dworking, Andrea, Woman Hating, New York: Peguin Group, 1974. Versão traduzida ao espanhol disponível em: https://dworkinista.wordpress.com/2018/12/19/woman-hating-andrea-dworkin-introduccion-traduccion/. Acesso em: 25 ago. 2021.

Frye. Marilyn. Opression. In: The Politics of reality: essays in feminist theory, Berkeley: Crossing Press, 1983, p. 1–16. Versão traduzida ao português disponível em: https://we.riseup.net/assets/191628/Opress%C3%A3o+Marilyn+Frye.pdf. Acesso em: 25 ago. 2021.

Jeffreys, Sheila. Beauty and misogyny: harmful cultural practices in the West. London and New York: Routledge, 2005. Versão traduzida ao português disponível em: http://garrafeminista.com.br/index.php/2020/06/14/traducao-do-livro-beleza-e-misogonia-da-sheila-jeffreys/ . Acesso em: 25 ago. 2021.

Lerner, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019.

Lonzi, Carla. La mujer clitoriana y la mujer vaginal. En: Escupamos sobre Hegel, Madrid: Traficantes de Sueños, 2018. Versão traduzida ao português disponível em: https://vulvamtilliandum.medium.com/mulher-clitoriana-e-mulher-vaginal-1-3267a94f64e2. Acesso em: 25 ago. 2021.

Millett, Kate. Política Sexual. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.

Morgan, Robin. Sobre mulheres como um povo colonizado. In: Going too far: the personal chronicle of a feminist. Versão traduzida disponível em: https://furiosabr.medium.com/sobre-mulheres-enquanto-povo-colonizado-54dc4530e7ed. Acesso em: 25 ago. 2021.

Pateman, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1993.

Rich, Adrienne. Heterossexualidade obrigatória e existência lésbica. Rio da Janeiro: A Bolha Editora, 2019.

Wittig, Monique. The Straight Mind and Other Essays. Boston: Beacon Press, 1992. Versão traduzida ao português disponível em: https://we.riseup.net/assets/162603/Wittig,%20Monique%20O%20pensamento%20Hetero_pdf.pdf. Acesso em 25 ago. 2021.