"As duas Fridas", de Frida Kahlo

É impossível lutar contra a opressão se não há opressores nomeáveis, disse Mary Daly, no tempo em que as feministas acreditavam na necessidade de se chegar à raíz histórica da opressão das mulheres para explicar a misoginia da sociedade atual. Esse apelo à definição e atenção aos termos convidava as mulheres do mundo a se entenderem como uma classe (ou “casta”, uma vez que não há possibilidade de mobilidade), e a atenção à biologia feminina como centro da discussão não partia de um determinismo que condenasse o destino das mulheres à inferioridade, mas ao contrário: nossa capacidade reprodutiva era observada como o trunfo disputado pelos interesses patriarcais, a verdadeira ameaça aos interesses dos homens, que comprovava nossa ancestralidade e desafiava os valores falocêntricos de Deus.

Feministas da segunda onda, em sua busca pelas raízes — além das comunistas russas e outros movimentos de mulheres ao longo da história — admitiam um golpe político, biológico e social na história da humanidade: a invenção do patriarcado e seus objetivos. Mas antes de analisar esse golpe per se, vamos traçar um paralelo com o reino animal. Você nunca se perguntou por que a humanidade se comporta de forma tão diferente de todos os outros animais quando a questão é a diferença entre os sexos?

“O ‘Plano de Deus’ é geralmente uma fachada para os planos dos homens, e uma forma de se encobrir a ignorância, a desigualdade e o mal.” 
― Mary Daly

Natureza e antítese humana

Na natureza, a fêmea é a origem da espécie. A vantagem evolutiva causada pela capacidade reprodutiva das fêmeas é reconhecida na vasta maioria das espécies de animais. Fêmeas são mais necessárias para a manutenção da espécie, portanto sua segurança e alimentação é necessariamente mais importante que a dos machos. Em muitas espécies de animais, a quantidade de fêmeas é bastante superior a de machos, e uma espécie de peixe encontrado recentemente se reproduz assexuadamente. O binômio fêmea/fraqueza — macho/força não se aplica a um sem número de espécies, mas a quantidade em proporção, e o valor do membro da espécie capaz de gerar descendentes pode ser reparada em todo reino animal. Um grupo de 5 leoas é capaz de caçar, se proteger e alimentar seus filhotes precisando de apenas 1 leão — basicamente decorativo em termos funcionais. E a proporção favorável às fêmeas segue esmagadora quando pensamos em insetos, plantas e microrganismos.

A biologia e o reino animal, mesmo em toda sua complexidade, segue a premissa de que a capacidade reprodutiva das fêmeas é um vantagem evolutiva dentro da espécie. Em um senso coletivo bastante característico da natureza, os indivíduos dotados de capacidade reprodutiva representam a possibilidade de sobrevivência. Um exemplo curioso é a organização hierárquica social dos gatos de rua: a fêmea prenha é a chefe, e a palavra final do bando, seguida pela segunda fêmea não prenha e por último, o macho. Tal dinâmica pode ser comprovada empiricamente e as fêmeas da natureza jamais podem ser consideradas dóceis e frágeis. Pelo contrário, fêmeas são perigosas, agéis, e mortais em seu objetivo de ficar em paz. Em muitas espécies, a capacidade reprodutiva é revestida de várias formas de poder. E quando falo de capacidade reprodutiva, não digo com isso que toda fêmea irá necessariamente reproduzir, mas que apenas as fêmeas são capazes de gerar vida. Essa é uma realidade comum a todos os mamíferos.

O que faz então a realidade dos seres humanos ser tão diferente? 51% é uma proporção razoavelmente baixa para o mundo animal, e nós, definitivamente, não nos organizamos socialmente de forma centrada nas mulheres. O poder e a dominação da espécie foi retirado das fêmeas humanas há tanto tempo que não conseguimos sequer nos recordar de sociedades em que divisão sexual do trabalho não funcionasse de maneira hierárquica, com o macho no topo da cadeia.

Fêmeas sem história e o golpe

“The word ‘sin’ is derived from the Indo-European root ‘es-,’ meaning ‘to be.’ When I discovered this etymology, I intuitively understood that for a [person] trapped in patriarchy, which is the religion of the entire planet, ‘to be’ in the fullest sense is ‘to sin’.” 
― Mary Daly

A história não é contada pelas mulheres. As mulheres se quer participam da história nos livros que estudamos e quando participam, seu papel como esposa ou filha de alguém é basicamente o que justifica sua presença. Mulheres possuem 10% das posses de terra no mundo, no Brasil elas somam 12% em áreas urbanas e menos de 5% de posses rurais. Mulheres são maioria na verdade, abaixo da linha da pobreza e em números de miséria e analfabetismo. Além disso, mulheres sofrem um risco particular: a violência sexista, que cria números de feminicídio que se assemelham a dados de zonas de guerra. Homens, pais, irmãos, maridos, namorados, amantes, paqueras e desconhecidos são geralmente os algozes que matam dentro dos ambientes que em que ninguém mete a colher.

Em sua obra Gyn/Ecology: The methaethics of radical feminism, Mary Daly define o patriarcado como sistema religioso necrófilo de inversão da ordem natural, ou seja, é um sistema que atua por meio de dogmas e crenças que se regozija sexualmente com a eliminação da fêmea e de seu papel como a reprodutora da espécie. Parece aterrorizante e exagerado, não? Um pouco da história das mulheres e dados da realidade da mulher no mundo podem ajudar a tornar essa ideia mais palatável e assustadoramente real. E boa parte da história das mulheres, nos últimos cinco mil anos, é que não temos história. Toda sociedade, pensamento, comunidade, saber e costume iniciado, produzido ou criado por mulheres foi esmagado, esquecido e queimado sob aplausos dos espectadores.

“Por que os homens tratam as mulheres como seu pior inimigo se não for o fato de que nosso poder é a a sua maior ameaça?”

Nesse jogo político mundial, por meio da violência, do terrorismo e da ideologia, os homens subjugaram as mulheres de formas diferentes ao redor do mundo. Por conta da capacidade reprodutiva das fêmeas humanas — e de novo, quando falamos em “capacidade”, não queremos dizer que TODAS as fêmeas a possuam, mas que APENAS fêmeas a possuem — o que seria nosso grande trunfo, virou nossa grande corrente. O patriarcado, em seu jogo de inversão perverso, tornou nossa força uma fraqueza, que foi justificada por todas as instituições criadas pelos homens: a igreja, o estado, a cultura, a ciência e a sociedade. Por meio de forças ativas, conscientes e patriarcais, o remodelamento da natureza foi posto em prática. O fato de sermos capazes de gerar vida se tornou um motivo que justificava nossa “pouca força física”, nossa “extrema emotividade”, e motivo básico para retirar as mulheres da força produtiva e da produção de conhecimento. O fato de mulheres continuarem sendo capazes de realizar tarefas complexas e dispendiosas mesmo sangrando, gestando ou amamentando, foi sumariamente ignorado, e por conta de nossos corpos, fomos trancafiadas entre o quarto e a cozinha. A maternidade passou a ser compulsória, e a geração de novos seres virou nossa obrigação primordial.

Feminismo e Libertação

O que Frederick Engels descreveu como “a grande derrota mundial do sexo feminino” em seu livro A Origem da Família, Propriedade Privada e Estado, foi de fato uma derrota sangrenta, violenta e genocida. Ela partiu da necessidade de se controlar a capacidade reprodutiva das mulheres, porque essa capacidade era o que ameaçava o “o direito masculino” sobre a família e os descendentes, afinal, a maternidade é mais fácil de ser comprovada do que a paternidade. O “pátrio poder” nasce desse golpe ancestral: ao tornar a mulher uma posse, destituindo-a de sua natureza subjetiva, os objetivos da propriedade privada e concentração de riquezas poderia seguir com menos abalos e favorecendo os homens.

Diversos dogmas e crenças foram criados por sociedades variadas para justificar as tentativas de subjugar a classe feminina. Em comunidades da Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Somália e outros 25 países do continente africano, a mutilação genital foi, e é ainda praticada como uma forma de terrorismo socialmente aceito: criou-se a ideia de que mulheres são impuras, que clitóris e a vulva são fontes de insubmissão, e o prazer feminino se tornou um vilão a ser combatido na base da faca. As origens dessa prática têm muito em comum com a política de caça às bruxas da Europa, assim como a prática do sutee na Índia, em que viúvas são atiradas nas piras de chamas de seus maridos mortos, assim como com o desenvolvimento da ginecologia americana, como justifica Mary Daly. São práticas de carnificina criadas e justificadas com base na inferioridade das mulheres, que para servir melhor ao marido e à comunidade, têm partes do seu corpo mutiladas com aval social e apoio familiar. Basta lembrar que a remoção do clitóris, assim como a lobotomia, foram práticas usadas pela medicina moderna para tratar do mal da “histeria feminina”. A prática de cortar, diminuir, restringir e controlar o corpo feminino, é comum e amplamente praticada.

Nossa sociedade foi moldada sob essas premissas. Tão profundamente e incisivamente, que temos dificuldade de nãoconsiderar esses mecanismos como a ‘ordem natural’. O patriarcado, como religião mundial, usa de todos seus esforços para que essas estruturas permaneçam vivas e inabaladas, e foi por conta disso que o feminismo nasceu: do grande “NÃO” que mulheres do mundo todo entoaram em alto e bom som, da tentativa de destruir a crença de que o sexo feminino não possui humanidade. Possuímos. Mas ela nos foi tirada no momento em que perceberam nossa força criadora e resistente, e no momento em que forjaram a feminilidade como algo natural. Quando Simone de Beauvoir fala de “tornar-se mulher”, ela se refere especificamente ao processo de destruição da nossa humanidade. Não fomos nós que construímos esses dogmas, mas somos nós, na materialidade de nossos corpos, que temos o potencial de destruí-lo.

A importância de se mapear a origem da opressão patriarcal se faz mais presente que nunca, e não é uma força subjetiva que pode ser descartada apenas pela força do pensamento. São estruturas: o controle da nossa sexualidade e biologia passa desde a criminalização do aborto em vários países do mundo, da negligência com o casamento infantil que faz do Brasil o quarto país em números de crianças casadas (adivinhem o sexo dessas crianças), ao feminicídio e o estupro como arma de terror generalizado. O fato de meninas e mulheres serem excluídas da vida pública por falta de acesso a produtos básicos de higiene feminina como absorventes e banheiros ainda é fato constante em muitos lugares e que se agrava no caso de mulheres encarceradas. Mulheres são 89% das pessoas prostituídas no mundo e a pedofilia é um crime que atinge desproporcionalmente meninas, porque seus perpetradores são homens em sua maioria esmagadora. A indústria da beleza ainda é responsável por práticas mutilatórias, e aliada com a indústria da pornografia, têm gerado um boom em cirurgias vaginais estéticas entre jovens. Essas práticas seguem da mesma origem que não pode ser ignorada quando nosso objetivo é a libertação e a emancipação de todas as mulheres.

Uma luta feminista coesa e consciente precisa estar atenta à todas as ramificações dessa raíz, pois ao longo do desenvolvimento do capitalismo, novas modalidades opressivas foram inventadas e a capacidade das mulheres de reconhecer a raiz de sua opressão foi esfumaçada com conceitos liberais. Os novos tempos não reverteram o caminho da dominação, mas descobriram novas formas de justificá-lo. Ao tratar o patriarcado como uma “força subjetiva” que “oprime a todos”, estamos nos desviando do verdadeiro intuito patriarcal criado há milênios: é o corpo das fêmeas que foi transformado em campo de batalha, em benefício dos machos. Se não focarmos nesse princípio básico do sistema, jamais seremos capazes de apontar os algozes, de defender as vítimas e muito menos de analisar nossa sociedade pelo que ela realmente é: um lugar perigoso para meninas e mulheres.


Fontes:

[1] GYN/ECOLOGY. THE METAETHICS OF RADICAL FEMINISM. MARY DALY. Beacon Press : Boston : 1978.

[2] ENGELS, Friedrich. Origem da famlia da propriedade privada e do Estado. Ed Civilizao Brasileira. Rio de Janeiro – GB, 1974.

2 COMENTÁRIOS

  1. “A importância de se mapear a origem da opressão patriarcal se faz mais presente que nunca, e não é uma força subjetiva que pode ser descartada apenas pela força do pensamento. São estruturas: o controle da nossa sexualidade e biologia passa desde a criminalização do aborto em vários países do mundo…”
    Isso se aplica em algo que eu estava pensando sobre como a estrutura do casamento como uma das instituições de opressão e controle tem sido “ressignificado” através de mulheres que acreditam que basta sua vontade e desejo para que o casamento não represente uma opressão, ignorando toda a educação, socialização e estrutura que recebemos para servir. Vejo amigas casadas, que estudaram, que se dizem livres, reclamando de coisas no casamento que minha vó reclamava. Não há possibilidade de libertação dentro de estruturas que foram feitas pra nossa opressão, não basta querer, estamos imersas nela. Mas como já li em outros textos, é duro saber disso e perceber isso a nossa volta sentindo que não podemos fazer muita coisa sobre. É mais fácil acreditar que basta-se querer e pronto, estamos livres.

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