A menstruação é parte normal da vida da maioria das meninas e mulheres no mundo e, por isso, deveria ser tratada com normalidade. Mas não é.
Num único dia, centenas de milhões de mulheres e meninas estão menstruando¹, contudo, a menstruação continua sendo motivo de vergonha e objeto de desinformação. Em algumas culturas, a discriminação é institucionalizada, sendo que as mulheres não devem falar sobre o assunto e devem ser mantidas longe da vida social. Em outras, a discriminação é mais velada, mas ainda existe, em forma de uma série de constrangimentos impostos às meninas e mulheres.
Meninas por todo o mundo faltam às aulas durante o período menstrual ou, até mesmo, deixam a escola. Meninas e mulheres por todo o mundo sofrem estigmas sociais causados pela menstruação. Meninas e mulheres por todo o mundo não têm acesso a produtos básicos de higiene menstrual e saneamento básico.
Seja obrigando uma menina a se casar porque começou a menstruar, seja falando que menstruação é uma coisa suja, diversas sociedades usam esse período para oprimir mulheres e meninas e afastá-las da vida social, mantendo-as assim num papel subalterno e com dificuldades de ascensão social.
A FALTA DE SANEAMENTO BÁSICO E AS MULHERES
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 29% da população mundial não tem acesso à água potável (2,1 bilhões de pessoas) e 61% não tem acesso ao saneamento básico seguro (4,5 bilhões de pessoas)².
A falta de saneamento básico e acesso à água potável afeta mais as mulheres do que os homens. As mulheres têm necessidades biológicas diferentes dos homens. A falta de acesso à higiene em caso de gravidez, por exemplo, pode ser uma questão de vida ou morte. As mulheres também demandam mais cuidados sanitários durante os períodos menstruais.
Além disso, a sociedade espera que as mulheres sejam as responsáveis por tomar conta da casa, dos doentes, das crianças e dos idosos, colocando sobre a mulher o fardo de conseguir água para todas as pessoas sob seus cuidados. Ou seja, também por questões de papéis sociais de gênero, a falta de água atinge mais as mulheres e meninas.
Por razões sociais e biológicas, as mulheres são mais dependentes das instalações sanitárias que os homens. Socialmente, é muito mais aceito que homens urinem nas ruas, por exemplo, do que mulheres. Além disso, quando há apenas um banheiro a ser compartilhado pelos sexos, são comuns os relatos sobre assédio sexual, seja em campos de refugiados ou em cidades de países desenvolvidos³. Assim, não ter banheiro ou ter apenas um banheiro afeta mais as mulheres.
No Brasil, a carência de saneamento básico está diretamente ligada com o desempenho nos estudos, gerando atraso escolar. Essa carência influencia a forma como mulheres e meninas organizam seu tempo, tendo menos horas de descanso que os homens e os meninos e engajando-se em menos atividades de lazer, o que afeta o desenvolvimento social delas. Prejudica também a renda das mulheres brasileiras, limitando seu potencial econômico⁴.
Sem saneamento básico, muitas mulheres e meninas no mundo não conseguem cuidar de sua higiene corretamente. A falta de água segura ou de produtos menstruais adequados pode levar a infecções e, em seu extremo, causar morte.
FALTA DE ACESSO À HIGIENE MENSTRUAL
Em 2014, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu que o direito das mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública mundial e de direitos humanos⁵. Contudo, a higiene menstrual ainda é tratada como privilégio e não como direito.
Na Índia, por exemplo, apenas 12% das mulheres que menstruam podem comprar produtos menstruais e, no Quênia, cerca de metade das meninas em idade escolar não tem acesso a esses produtos⁶.
O livro “Presos que Menstruam”⁷, de Nana Queiroz, relata que o Estado não provê absorvente suficiente para as mulheres encarceradas brasileiras, fazendo dos produtos de higiene menstrual um bem de luxo e uma moeda de troca nas prisões.
Nos Estados Unidos, a maioria dos estados tributam absorventes como produtos de luxo, o que faz o preço dos produtos menstruais aumentar, trazendo consequências terríveis sobre a população mais vulnerável. Mulheres mais pobres estão usando papel higiênico, meias, papelão, cartolina e papel para absorver seu sangue menstrual⁸.
Um termo em inglês tem sido usado para descrever essa situação: period poverty (algo como pobreza menstrual). Para se ter ideia, no Canadá, um dos países com maior renda per capita no mundo, 1/3 das mulheres com menos de 25 anos não têm condições de comprar produtos menstruais⁹.
Um estudo de caso numa fábrica em Bangladesh mostrou que 60% das mulheres pegavam trapos de tecido que sobravam no chão para usar como absorvente e que 73% das mulheres da fábrica faltavam ao trabalho por causa de infecções causadas por essa prática ou por outras razões relacionadas às dificuldades menstruais¹⁰. Numa situação em que as mulheres ganham por horas trabalhadas, ver a menstruação como natural e oferecer condições básicas para cuidarem de sua saúde menstrual pode trazer ganhos significativos para as mulheres e ajudá-las a saírem de condições econômicas precárias.
Para muitas meninas, largar a escola quando começam a menstruar é uma realidade principalmente por causa da falta de banheiros femininos¹¹. A falta de banheiros privados exclusivos para meninas e mulheres e de água limpa para lavar as mãos ou outras partes do corpo, seja nas escolas ou nos locais de trabalho, dificulta a atividade social durante o período menstrual. No Nepal, 41% das meninas faltam à aula quando estão menstruadas e, na Índia, 23% das meninas largam a escola quando começam a menstruar¹².
Mas podemos mudar isso, uma experiência feita em Gana mostrou que as escolas conseguiram melhorar muito a frequência das meninas com educação sobre a puberdade aliada ao fornecimento de produtos de higiene menstrual, a um custo muito baixo¹³.
ESTIGMATIZAÇÃO DA MENSTRUAÇÃO
A menstruação é parte normal da vida de bilhões de meninas e mulheres, porém, tabus culturais e informações erradas levam à estigmatização da menstruação, que é uma forma de misoginia e pode afetar a saúde mental e física das meninas e mulheres. É hora de falarmos abertamente sobre menstruação, algo tão presente durante uma boa parte da vida de metade das pessoas do planeta.
No Reino Unido, mais de 90% das meninas têm receio de ir à escola menstruadas e 27% já perderam aulas por causa da menstruação. As razões variam desde vergonha a assédio. Elas têm medo de que os meninos desconfiem, de vazamentos e de não poderem ir ao banheiro durante as aulas¹⁴. No Canadá, 83% das mulheres jovens relataram que a menstruação impediu que elas participassem de alguma atividade. 70% disseram ter faltado à escola, ao trabalho ou a alguma atividade social por causa da menstruação¹⁵. 74% disseram ter sido acusadas de estar na TPM (tensão pré-menstrual).
Acusar as mulheres que emitem alguma opinião mais contundente de estar na TPM é uma forma clara de discriminação. Muitas das vezes em que elas são mais rígidas ou intolerantes em relação a algum ponto de vista são acusadas de estarem na TPM, como se suas críticas não fossem legítimas, mas emitidas apenas por uma mera questão de descontrole hormonal.
![Pobreza Menstrual](https://miro.medium.com/max/1600/1*U2tXRXZNS6f_Z2-tODbjBw.jpeg)
Em fevereiro de 2019, um juiz do Oscar (importante prêmio da indústria cinematográfica dos Estados Unidos) escreveu que jamais votaria num filme que falasse sobre menstruação porque ela é “nojenta” e que vários dos seus colegas homens tampouco votariam no filme¹⁶. Por ironia, o filme, que mostra uma iniciativa para popularizar os produtos menstruais na Índia, acabou vencendo a categoria “Melhor Documentário de Curta-Metragem” e revelando que a menstruação é um tabu em diversas partes do mundo e não apenas em países não desenvolvidos, como muitos podem pensar.
Assim, é importante engajar os meninos e os homens, para que esse preconceito não persista e porque eles são os principais agentes da estigmatização da menstruação. 43% das meninas do Reino Unido afirmaram que foram provocadas por meninos ou ouviram piadas por estarem menstruadas e 20% dos meninos não sabiam fatos básicos, como que não se pode segurar a menstruação da mesma forma que urina ou que é seguro praticar exercícios durante o período menstrual³.
Além disso, tradicionalmente os homens são os principais agentes de decisões das comunidades, como líderes políticos ou religiosos, e raramente pensam nos problemas das mulheres ao tomarem suas decisões sociais e financeiras. No caso das pessoas encarceradas, por exemplo, toda a política pública é pensada como se todos os presos fossem homens, ignorando as especificidades biológicas das mulheres.
Quando as meninas começam a menstruar, a privacidade em espaços públicos é essencial para que elas continuem tendo uma vida social ativa, o que é importante para seu desenvolvimento completo. Largar a escola ou faltar às aulas são problemas grandes das meninas no mundo ainda hoje, e ter um banheiro exclusivo e acesso a produtos de higiene pode fazer toda a diferença.
Estigmatizar a menstruação é uma forma de impedir que meninas e mulheres ocupem diversos espaços na sociedade. Quando há numerosos tabus em torno disso, que mantêm as mulheres afastadas das atividades sociais, ou mesmo piadinhas que envergonham meninas e mulheres e fazem-nas desejar ficar fora das escolas e de ambientes de trabalho, as mulheres e meninas são mantidas à parte de diversas atividades sociais, abrindo espaço para que os homens continuem ocupando mais os espaços públicos.
O QUE PODEMOS FAZER?
Vivemos num mundo onde as mulheres sofrem diversos tipos de discriminação, onde bilhões de pessoas carecem de saneamento adequado e onde a menstruação é frequentemente estigmatizada. Tomar uma atitude é necessário para tentarmos diminuir as consequências desastrosas disso para as mulheres.
A primeira coisa a ser feita é parar de pensar as políticas públicas somente do ponto de vista das necessidades masculinas. Homens e mulheres não têm sempre as mesmas necessidades, e mulheres e meninas precisam de políticas públicas que contemplem suas realidades biológicas.
![pobreza menstrual](https://miro.medium.com/max/1600/1*7wWyUmrC0E6gNMaJEcNraw.jpeg)
Nós, enquanto sociedade civil, também podemos tomar medidas práticas para ajudar a melhorar a situação, como:
1. Falar abertamente com meninos e meninas sobre menstruação: as meninas precisam saber o que acontece com seus corpos e por quê; e meninos e meninas precisam conhecer a menstruação para entender que não tem nada de vergonhoso em menstruar e que é um processo completamente natural.
2. Promover iniciativas de arrecadação e distribuição de produtos de higiene menstrual: há muitos projetos que visam arrecadar absorventes e similares em diversas cidades, você pode procurar e contribuir com eles. Se sua cidade ainda não tem, por que você não começa? Pode colocar uma caixa em faculdades e em empresas, por exemplo. Quando explicamos as razões, muitas pessoas mostram-se favoráveis à iniciativa e querem ajudar. Se não souber para onde doar, pode começar com escolas públicas, banheiros públicos e prisões femininas. Também pode procurar alguma organização não governamental ou algum órgão público e perguntar se eles precisam das doações. Infelizmente, mesmo entre as pessoas que praticam ações de distribuição de cesta básica e produtos de higiene, os absorventes e similares são esquecidos, porque as necessidades das mulheres muitas vezes não são lembradas.
3. Demandar dos nossos políticos políticas públicas que contemplem a realidade de meninas e mulheres: veja quem são os vereadores de sua cidade e os deputados de seu estado. É mais fácil se comunicar com esses políticos. Mande e-mails para eles, conte como as políticas públicas raramente levam especificidades das mulheres em consideração. Vá nas sessões da câmara de vereadores e leve cartazes com suas demandas. No caso da menstruação, você pode pedir para que haja distribuição de absorventes em escolas públicas, por exemplo. Pode também pedir para que o tema seja incluído no currículo das escolas. Tente falar especialmente com políticas mulheres, peça para elas se atentarem a nós.
Juntas, nós podemos fazer a diferença!
REFERÊNCIAS:
1. WaterAid, Unilever Domestos e WSSCC. We can’t wait: A report on sanitation and hygiene for women and girls. 2013. Disponível em: <https://washmatters.wateraid.org/sites/g/files/jkxoof256/files/we%20cant%20wait.pdf> Acesso em: 13/03/2019.
2. Organização Mundial da Saúde. Progress on Drinking Water, Sanitation and Hygiene: 2017 Update and SDG Baselines. Geneva: OMS e UNICEF, 2017. Disponível em: <https://www.who.int/mediacentre/news/releases/2017/launch-version-report-jmp-water-sanitation-hygiene.pdf?ua=1> Acesso em: 13/03/2019.
3. WENDLAND, C., YADAV, M., STOCK, A. e SEAGER, J.. Gender, Women and Sanitation. East Lansing: Universidade Estadual do Michigan, 2018. Disponível em: <http://www.waterpathogens.org/book/gender-and-sanitation> Acesso em: 13/03/2019.
4. Insitituto Trata Brasil. O saneamento e a vida da mulher brasileira. 2018. Disponível em: <http://www.tratabrasil.org.br/images/estudos/itb/pesquisa-mulher/relatorio.pdf> Acesso em: 13/03/2019.
5. Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos. Every woman’s right to water, sanitation and hygiene. 2014. Disponível em: <https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/Everywomansrighttowatersanitationandhygiene.aspx> Acesso em: 13/03/2019.
6. SCULLION, Rhona. ‘Period Poverty’: Why No One Is Talking About Eco-Friendly Solutions. 2017. Disponível em: <https://www.passblue.com/2017/11/30/period-poverty-why-no-one-is-talking-about-eco-friendly-solutions/> Acesso em: 13/03/2019.
7. QUEIROZ, Nana. Presos Que Menstruam. Rio de Janeiro: Record, 2015.
8. OKAMOTO, Nadya. Period Power: A Manifesto for the Menstrual Movement. Nova Iorque: Simon & Schuster Books for Young Readers, 2018.
9. DUBÉ, Dani-Elle. One-third of young Canadian women can’t afford menstrual products, report finds. 2018. Disponível em: <https://globalnews.ca/news/4239800/canada-cost-of-menstrual-products> Acesso em: 13/03/2019.
10. WaterAid, Unilever Domestos e WSSCC. We can’t wait: A report on sanitation and hygiene for women and girls. 2013. Disponível em: <https://washmatters.wateraid.org/sites/g/files/jkxoof256/files/we%20cant%20wait.pdf> Acesso em: 13/03/2019.
11. ONU Água. Gender, Water and Sanitation: A Policy Brief. 2006. Disponível em: <http://www.un.org/waterforlifedecade/pdf/un_water_policy_brief_2_gender.pdf> Acesso em: 13/03/2019.
12. CUNNINGHAMM, Marnie. 4 Reasons Water and Sanitation are a Gender Issue. Global Citizen, 2017. Disponível em: <https://www.globalcitizen.org/en/content/4-reasons-water-and-sanitation-are-a-gender-issue/> Acesso em: 13/03/2019.
13. MONTGOMERY, P. et al. Sanitary Pad Interventions for Girls’ Education in Ghana: A Pilot Study. Teerã: Universidade de Ciências Médicas, 2012. Disponível em: <https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0048274> Acesso em: 13/03/2019.
14. Bodyform. Fear Going to School Less Report. 2018. Disponível em: <https://www.bodyform.co.uk/our-world/fear-going-to-school-less/> Acesso em: 13/03/2019.
15. DUBÉ, Dani-Elle. One-third of young Canadian women can’t afford menstrual products, report finds. 2018. Disponível em: <https://globalnews.ca/news/4239800/canada-cost-of-menstrual-products> Acesso em: 13/03/2019.
16. GORDON, Naomi. Oscars judge says he won’t vote for film about periods because periods are “icky”. Cosmopolitan, 2019. Disponível em: <https://www.cosmopolitan.com/uk/reports/a26466589/oscars-judge-men-not-voting-film-periods-are-icky/?fbclid=IwAR1orYw8zFnS5xotBoYQFqfQPDXRPDvgSyUPXh2Oi_UU7o8vbD5SKlhrliU> Acesso em: 13/03/2019.
Amei esse texto, achei muito interessante, estou fazendo um trabalho na Universidade Federal de Alagoas sobre asse assunto, e estou querendo fazer um projeto social para doar absorventes ecológicos e coletores menstruais para mulheres das comunidades carentes e nas escola aqui de Maceió, obrigada pelo seu texto, me ajudou no meu trabalho escrito.
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