Teoria feminista posta em prática
A teoria radical é muito rica e possui extensas contribuições e propostas de intervenção social, econômica e política, mas, justamente por possui conteúdo bastante abrangente e mais voltado para soluções coletivizadas, frequentemente nossas leitoras nos perguntam: como eu posso aplicar a teoria radical no meu dia-a-dia?
Uma das críticas feitas ao feminismo radical é de que, justamente, ele ignoraria as subjetividades e as particularidades das vidas de cada pessoa. Outra crítica é de que ele é pouco palpável e que suas propostas são muito políticas, genéricas, e não ajudam na libertação individual de cada mulher.
Pois bem.
Eu entendo de onde essas críticas vêm. Mas elas só existem justamente porque as pessoas enxergam o “coletivo” e o “individual” como duas entidades/esferas separadas, quando, na verdade, elas não são. É essa a base de o pessoal ser político: a recíproca também é verdadeira — o político também é pessoal, no sentido de repercutir em nossas vidas individuais e poder (no caso de quem se considera feminista ativista, dever) ser levado pra lá. Assim, literalmente tudo que apontamos como soluções para a coletividade de mulheres também pode ser aplicado por você, mulher, na sua vida individual.
Eu poderia encerrar o texto aqui, mas eu gosto de listar e de explicar coisas, então:
Abandonando a feminilidade
Feminilidade não é só sobre como nós nos vestimos. Na verdade, a parte estética é só a ponta do iceberg. Feminilidade é muito mais sobre comportamento e sobre autoimagem do que sobre as cores que você usa.
A feminilidade é um conjunto atributos e de características que são ensinados a nós no processo de nossa socialização. Está intrinsecamente ligada, portanto, como vocês já sabem, aos papéis sociais de sexo. Uma mulher “feminina” (ou “feminilizada”) é aquela que se adequa aos papéis sociais desempenhados pelo sexo feminino.
A feminilidade é, portanto, um lugar de submissão, sujeição e exploração. A mulher feminina é aquela que existe para ser vista e desejada pelos homens (por isso temos de estar sempre bonitas, e temos que, acima de tudo, desejar que os homens nos achem bonitas); é aquela que é submissa, fala baixo, é doce e delicada; ser direta e decidida não é algo “feminino”. Ser feminina é estar o tempo todo no lugar de “coisa”, de “outro”, e não de sujeito. É ver-se a si mesma não através de seus próprios olhos e da sua própria narrativa, mas através das lentes do patriarcado.
Feminilidade é uma construção masculina que sustenta sua própria supremacia.
Como, então, me livro dela?
1. Encontre — e defenda — sua voz.
Não é feminino dizer o que pensa. Mulheres que dizem o que pensam são mandonas, duronas, grosseiras e “masculinas”. Mulheres que defendem suas ideias são inconvenientes — e, historicamente, loucas e histéricas, precisando ser internadas, quando não mortas (a solução permanente). Mulheres seguras de si e do que dizem sempre foram uma ameaça ao sistema. Para nos conter, vão nos chamar de arrogantes, porque mulheres “femininas” são modestas, humildes e não querem chamar a atenção. Só que modéstia é meus ovários. Este é um mundo de homens e o mais medíocre deles sempre estará à frente da mais capacitada das mulheres. Se você não reivindicar suas ideias, se você não reivindicar sua voz, elas lhe serão roubadas.
Então, pratique: não se deixe interromper. Fale mais alto. Defenda o que você pensa. Não permita que te ridicularizem. Bata o pé. Diga “é isso mesmo”. Não deixe que tomem crédito pelas suas ações e ideias. Não tenha medo de fazer autopropaganda. Confie em si mesma e nas suas capacidades.
2. Liberte-se da aprovação masculina.
Pare pra pensar em todas as coisas que você já fez ou faz só por medo ou receio do que os homens pensariam. Pense nas coisas que você só fez justamente pra que os homens pensassem isso ou aquilo de você. Pense nas suas roupas, na maquiagem, no cabelo, no corpo, nas fotos do instagram, nas poses, nos “joguinhos” de interesse e desinteresse de início de relacionamento, na bio do tinder. Pense em todas as vezes que você deixou de fazer o que você queria só pra se enquadrar nas expectativas de homens, para agradar homens. Pense em tudo que você só fez para se sentir desejada por homens, porque é isso que impulsiona sua autoestima.
Pense em tudo que você já escondeu que gostava, ou em tudo que você já escondeu sobre você mesma, só pra ser a “garota descolada”, a garota que não é chata e implicante. Pense em todas as angústias e sofrimentos que você já engoliu em relacionamentos, por exemplo, só pra não pagar de possessiva ou controladora. Ou, ainda, pense no quanto você deixou de perseguir interesses seus por medo do que os homens diriam sobre você: fútil. esquisita. radical. sapatão. sapatão. sapatão. (porque não tem xingamento maior do que ser acusada de não desejar homens!)
Eu sei. Você vai dizer que não é assim e que você sempre — ou quase sempre — fez o que queria. E que, se você queria se sentir desejada por homens, é realmente só porque você queria, porque você gosta de se sentir desejada, você gosta de se sentir sexy, você gosta de saber que os caras querem te foder. Você gosta de saber que os caras olham pra você e só enxergam seu corpo, seu sexo. Você adora pensar que os caras veem suas fotos empoderadas no instagram e querem muito te pegar. Sua sexualidade, seu senso de sensualidade, é isso: é desejo masculino.
Pois é.
E ok, sabe. Nós somos socializadas para isso, como eu disse. Nós desejamos o desejo masculino. Não à toa, o ápice da vida feminina era o casamento; depois da captura liberal das pautas feministas, o ápice da libertação sexual é você querer ser sexualizada, por escolha própria! Mas onde está a libertação se você ainda usa a régua patriarcal pra medir seu nível de autoamor? Sua autoestima?
Aprender a desvincular sua autoimagem e seu senso de valor de si mesma dos padrões masculinos e do patriarcado — basicamente, do que os homens vão pensar de você — é muito difícil. O patriarcado não nos quer independentes. E é por isso que precisamos constantemente lembrar os homens (e lembrar a nós mesmas) que nós somos, sim, independentes. E quem não admira isso não vale sua companhia. (se você sente que você precisa esconder qualquer coisa, ou que precisa suavizar qualquer coisa sobre você, então repense se vale a pena gastar seu tempo e sua energia com quem está do seu lado, seja sexual, seja afetiva, seja intelectualmente)
Então, pratique: não esconda quem você é. Não faça nem entre em jogos. Seja verdadeira. Persiga seus interesses. Defenestre aquela ideia de que você tem que estar o tempo todo sexy e desejável e fodível. Pare de medir seu valor de acordo com a quantidade de caras que você já pegou, com a quantidade de matches no tinder, com a quantidade de assovios e de olhares no carnaval. Pare de associar seu sucesso ou seu valor com o quanto de atenção você recebe do mundo — porque, inevitavelmente, sua vida vai mudar quando você começar a fazer as coisas por você mesma.
3. Questione suas escolhas estéticas.
Entramos, aqui, na parte de maquiagem, depilação e roupas. E estou aqui partindo do pressuposto de que não existe — e não existe — nenhuma defesa material razoável para rituais de feminilidade, principalmente aqueles que envolvem dor.
Não, você provavelmente não se depilaria se você não tivesse crescido em uma sociedade que odeia pêlos em mulheres (porque, na verdade, meio que odeia mulheres por si só). Não, querer tirar os pêlos do corpo não é um instinto natural. Falando aqui de nossa sociedade ocidental, a depilação só virou uma realidade massificada há pouco mais de 100 anos, e a associação de depilação a higiene foi mera jogada de marketing, já que não tem fundamento científico nenhum. É claro que deveria ser suficiente apontar o fato de que a depilação só é mandatória para mulheres, e não para homens, mas nossa socialização nos torna especialistas em duplipensar (aceitar contradições sem questioná-las). Mas a verdade, de novo, é que você provavelmente não depilaria sua virilha com cera quente se não fosse por medo de como os homens vão te olhar na praia. Se não fosse o medo de te acharem suja ou esquisita. Se não fosse o medo de as pessoas — homens e mulheres — te olharem torto e te rejeitarem.
Não, você provavelmente não usaria maquiagem diária se não fosse pelo fato de que mulheres são obrigadas a estarem “apresentáveis” — plásticas, industriais praticamente — o tempo todo, o que, em última instância, nos desumaniza, porque todas os sinais de expressão, de passagem do tempo (desde espinhas a rugas e olheiras e cabelo branco) são considerados “imperfeições” que devem ser “corrigidas”. Não, a maquiagem como é usada hoje não é artística nem nunca teve a finalidade de ser “artística”. Nós somos impelidas a usá-la para estarmos “bonitas”, e, de novo, bonitas aos olhos de homens. E bonita é a menina jovem, sem poros, sem rugas, sem olheiras; com sinais de excitação sexual (ou vocês acham que o aumento dos lábios, a cor nas maçãs do rosto e o destaque aos olhos — tudo isso vem de onde? são simulações dos sinais de excitação sexual); com cabelos perfeitos. E nós internalizamos tanto isso que nos odiamos sem maquiagem. Não suportamos olhar pra nós mesmas sem, no mínimo, uma base, um primer, pó, blush, rímel. Nos sentimos feias. Nos sentimos… indesejáveis.
Não, você provavelmente não usaria roupas apertadas, desconfortáveis, sem nenhuma praticidade (sem bolsos!), que limitam seus movimentos, se não fosse pela necessidade constante de estar “fodível”. Note como o que diferencia adereços e roupas “masculinas” de “femininas” é justamente os fatores de praticidade e conforto: tudo que é “feminino” tem enfeites e características que não servem pra nada, a não ser para a estética e para demarcar que aquilo deve ser usado pela casta feminina. Pense nos uniformes esportivos. Pense nos sapatos. Pense nas FANTASIAS. O masculino é sempre a opção mais óbvia e básica; o feminino é sempre sexy, desejável, apertado (para marcar seu corpo), limitante. Tanto que mulheres que usam roupas apenas pelo conforto muitas vezes não encontram opções nas seções “femininas”, ou então só as encontram nas seções de esporte.
Nós não somos naturalmente masoquistas, do tipo que almeja a dor que os processos de beleza nos fazem sentir. Se algo deveria ser natural, esse algo é justamente FUGIR da dor. Evitá-la. Mas não. Beleza é dor.
Então eu vou propor o seguinte. Não se depile, não use maquiagem e não use roupas “femininas” por uma semana. Só pela experiência. Veja como você se sente com seu próprio corpo. Veja como você se relaciona com ele. Olhe pra ele. Observe-se, nua, peluda, sem maquiagem, no espelho. Repare no que você sente. É repulsa? É nojo? Você fica triste de se ver daquele jeito? Você fica com a mão tremendo, desejando tirar aqueles pêlos, desejando esticar aqui ou ali, desejando não ter aquelas estrias, desejando ter peitos empinados e do mesmo tamanho? Questione-se: por que você se odeia tanto? Por que você trata com tanta brutalidade seu corpo — que é você?
Eu sei que abandonar os processos estéticos da feminilidade simplesmente não é uma opção para diversas mulheres — principalmente para mulheres negras — porque, afinal, trabalhamos, lidamos com pessoas, e isso efetivamente poderia nos prejudicar. E isso é real, não é uma vergonha e não te torna “menos feminista”. É justamente por isso que eu proponho que você realize essa autocrítica. Vai doer, mas vai compensar.
Em resumo
Abandonar a feminilidade é sinônimo de abandonar as expectativas masculinas sobre como e o que você deve ser. Sabe tudo aquilo que vem à sua cabeça quando você pensa em “o que é ser uma mulher num patriarcado? O que é uma mulher ‘feminina’ e o que é uma mulher ‘masculina’?” ? Então: abandone.
É extremamente difícil e você vai vacilar no começo. Talvez vacile pra sempre, porque, afinal, a socialização é quase uma lavagem cerebral. Digo quase porque, se fosse total, nós não estaríamos aqui discutindo nossa emancipação; portanto, existem alternativas à forma patriarcal masculinista de existir e de se colocar no mundo. E, uma vez que você sente que consegue, você nunca mais vai voltar atrás e vai ser a melhor sensação do mundo.
Ilustração da capa de @julianalossioart que por acaso me define.
Olá. Como uma jovem mulher que não se depila, nem usa roupas provocantes justamente por saber a falta de necessidade disto percebo e sinto a liberdade que eu tenho, é maravilhoso. Agradeço por cada texto, o conhecimento e as orientações por aqui transmitidos são extraordinários.
Gostei muito da reflexão que o texto me trouxe, obrigada.
Nunca vou me cansar de ler esse texto.
Obrigada. ❤️
Uma besteira sem tamanho. Não percebem que Vcs são o agente revolucionário da vez? Uma sociedade nova está sendo construída e adivinhem qual família será destruída? Não a dos patriarcas que detém o poder efetivo. Porque eles sabem que o poder familiar se só se mantém se a família for preservada de geração em geração. Mas se a família perde a estrutura, a mulher faz a vez do homem, o homem faz a da mulher, o garoto não é mais garoto, então a família será descontinuada e por consequência o poder familiar.
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