rebecca sugar e o transativismo
rebecca sugar e o transativismo

Nesse texto vou juntar duas das pautas que eu mais amo na vida: Steven Universe e feminismo. Quero registrar um evento marcante ocorrido com a criadora do desenho animado Steven Universe, do Cartoon Network. Rebecca Sugar é uma mulher de fama razoavelmente robusta, criadora de um desenho extremamente catártico que possui temáticas de grande agrado das gerações pós-mídias sociais. O nome dela é diretamente associado ao desenho, quase como se ela fosse a responsável por toda a produção sozinha. Os fãs praticam uma certa adoração à sua pessoa, lhe atribuindo a responsabilidade pelas inúmeras cenas memoráveis que a animação os trouxe. Ela possui o crédito de ter feito um desenho com uns 90% de personagens femininos, repleto de quebra de estereótipos de gêneros, cenas românticas entre mulheres e pessoas confusas tentando se entender e se respeitar. Particularmente, eu acredito que Steven Universe tenha mais qualidades do que apenas ter em sua narrativa mulheres e lésbicas, mas esse não é o foco do texto.

rebecca sugar e o transativismo
Rebecca Sugar — Criadora da animação Steven Universe

Antes de falar do tal evento marcante envolvendo essa mulher, é importante ressaltar que não pretendo criticar o desenho. Steven Universe é uma animação maravilhosa, é uma narrativa com certo caráter experimental aberta a múltiplas interpretações, é verossímil, o estudo de personagens é extremamente bem feito, o enredo tem coisas honestas a querer dizer e levanta discussões saudáveis e genuinamente polêmicas e perturbadoras, elevando-o de um simples produto cultural de massa a uma rica obra de arte.

Mas ele ainda está inserido em um contexto industrial. Rebecca Sugar, na posição que possui de produtora executiva da série animada, fechou recentemente um contrato com a Dove para fazer propagandas da marca utilizando os personagens. Isso é compreensível dentro de tal contexto de mercado, e as propagandas são fofas e inofensivas.

No entanto, se não bastasse utilizar um conteúdo tão majestoso para meras propagandas, a Dove fez questão de querer efetivamente fazer parte da história desta animação. Na última Comic Con da qual a equipe de Steven Universe fez parte, SDCC 2018, aconteceu um painel exclusivamente voltado para as propagandas de Steven Universe realizadas pela Dove. Nunca fui num evento como esse e não sei como usualmente são esses painéis, mas me parece desnecessário num evento geek ocorrer uma conferência inteira voltada à discussão de propagandas de 1 min da Dove.

A Dove resolveu, então, que faria uma abordagem ““sincera”” e “de coração aberto” na conferência, falando sobre os ideais políticos da empresa e como eles realmente acreditam estar mudando a vida das mulheres através de suas campanhas. Vejam bem. Era um painel com mulheres na banca. Só mulheres. E a primeira começou falando sobre o ideal de interseccionalidade que guiava a equipe, e como este conceito era o mais importante para a empresa.

Eu tenho muitas críticas ao feminismo “interseccional” da última década, acho que a única coisa que eles querem interseccionar é mulheres com homens, e deixar o feminismo mais inclusivo do sexo masculino e das “opressões” dos homens. É um movimento que tem se mostrado desonesto e manipulativo, depreciando o feminismo. Logo, fiquei preocupada com a afirmação da moça da banca. Alguém havia me alertado para que a Rebecca Sugar falaria coisas comprometedoras nesse painel e meus olhos ficaram atentos a partir daí.

Então, ocorre o ocorrido. Na primeira vez que alguém da banca vai se dirigir à Sugar, a mulher resolve que seria educado perguntar a ela por quais pronomes gosta de ser chamada.

Pois pensem. A banca só possuía mulheres. Por que diabos você vai perguntar isso?

E desde quando virou educação perguntar se alguém é homem ou mulher (ou alguma outra coisa, porque tem isso também agora)? Entendam a situação de que nossa querida Rebecca Sugar é uma criatura andrógina e poderia facilmente causar esse tipo de dúvida por quem a visse. No entanto, eu acharia deseducado perguntar indiscriminadamente o pronome de uma pessoa cujo gênero associado a ela não é óbvio. Imagina, a pessoa está dando uma palestra e perguntam para ela: “Ei, mas você é homem ou mulher? Ou outra coisa? Como eu te chamo?”

De onde eu venho, isso é falta de educação (ainda mais num painel feito para ter somente mulheres na banca). Mas esses floquinhos de neve de alguma forma transformaram isso na mais alta etiqueta, como se isso fosse importante em algum sentido para uma pessoa numa conferência dessas.

Não é.

A resposta de Rebecca foi bem ruim, mas fico em dúvida se ela só estava tentando agradar a equipe da Dove e mudar de assunto antes que seus fãs justiceiros sociais a questionassem demais, ou se ela realmente compactua ideologicamente com essas pessoas. Na minha cabeça, a cabeça de uma fã que se importa com o desenho e com o que o desenho representa para as transformações literárias do nosso tempo, me pego querendo perguntar isso à Rebecca, perguntar se ela tem noção das consequências da sua péssima resposta traz para a imagem do seu trabalho e para os fãs que se sentem tocados pela série.

O que ela disse foi que é uma mulher sim, mas uma mulher não binária. Caso isso gere dúvida na cabeça de um leitor deste texto desinformado sobre tais questões, Rebecca Sugar assumiu para si, naquele momento de sua vida pública, uma identidade trans. Não sei se ela sabe disso, talvez tivesse apenas querido dizer que é uma pessoa andrógina, por isso essa tal expressão “não binária”. É sabido que as pessoas trabalhando na cena de desenhos animados televisivos nos Estados Unidos compactuam muito frequentemente com esse tipo de narrativa, e é bem possível que muitos deles estejam apenas repetindo expressões que ouvem com frequência no seu dia a dia.

Enfim, qual o problema em a criadora de Steven Universe assumir para si uma identidade trans? O problema é o transativismo. Hoje, não são trans apenas as mulheres que se sentem tão desconfortáveis com seus corpos naturalmente femininos que querem mutilá-los e serem chamadas a todo custo de homem, ou vice-versa. Se você é uma pessoa que não reproduz algum aspecto da feminilidade ou da masculinidade, por exemplo, se você é uma mulher que não se depila e tem cabelo curto, ou se você é um homem vaidoso e que usa maquiagem, você pode, se assim quiser, clamar para si uma das centenas de identidades trans não binárias. É uma delírio fascinante.

O fato é que nossa Rebecca Sugar não retirou os peitos, não toma hormônios para ganhar pelos no corpo, nada disso. Ela só “não se sente tão mulher assim”. A primeira criadora mulher de uma animação do Cartoon Network a assinar seu nome sozinho nos créditos de criação, a que colocou o maior número de personagens femininos em uma animação de TV (tecnicamente, as personagens não são mulheres de fato porque são aliens, e mulheres são fêmeas humanas adultas, mas é uma metáfora óbvia), a que questionou todos os estereótipos de gênero na narrativa, a que fez o (ou pelo menos um dos) primeiro beijo lésbico em desenho animado com um público infantil, disse que não é tão mulher assim.

Mas qual o real problema disso? Afinal, pode ser só uma moda inofensiva — não é de jeito nenhum. Após ela dizer isso publicamente, os fãs começaram a dizer que Steven Universe é um desenho não binário, com pessoas não binárias. Como se a “identidade” de Rebecca fosse transportada automaticamente para dentro da narrativa de sua série. Bem, nenhum personagem da animação se chamou de não binário. Mas o fato é que, agora, esse é o assunto principal do qual Steven Universe se trata.

Um canal de análise cinematográfica do Youtube chamado Meteoro Brasil, que tem uma má fama comigo de quase sempre fazer análises inapropriadas de Steven Universe, tentou recentemente fazer um vídeo sobre o episódio da série na qual duas personagens mulheres se casam e se beijam. Vejam só. Duas mulheres lésbicas se casaram e se beijaram num desenho animado infantil. Mas o vídeo dizia algo como o seguinte: “Vejam bem essa cena! Olhem que incrível! Pessoas não binárias estão se casando! Steven Universe é um ótimo desenho, cheio de gente não binária, inclusive pessoas não binárias que se casam!”. Isso, caro leitor, é o que o feminismo chama de apagamento feminino, e apagamento lésbico.

Eu gostaria de citar a feminista Penny White numa palestra sua na qual falou sobre o caso de sua filha, uma menina nada feminina. Desde criança ela rejeitou todos os aspectos da feminilidade. Não gostava de brinquedos de menina, não usava vestido. Chamava-se de menino, mas Penny entendia que o que ela queria dizer era que não era feminina. Quando ficou maiorzinha, sofreu muito assédio por homens em cima de seu corpo que entrava na puberdade, e Penny conta que às vezes ficava meses deprimida depois de ouvir defesas de estupro e ter seu corpo violado, o que ela só contava à mãe depois de muito tempo. A jovem, então, começou a se envolver com comunidades de redes sociais, mais precisamente no Tumblr, e fazer amigos com ideias transativistas. Ela concluiu que, de fato, era um menino, e disse isso a sua mãe. Disse que queria tirar os seios, tomar hormônios, viver socialmente como um homem. Penny se informou sobre o assunto e recebeu muitos conselhos de que, caso se opusesse à decisão da filha, esta iria se matar. Então não disse nada, apenas impôs a condição de que ela teria que esperar até os 18 anos para realizar as mudanças corporais.

Acontece que essa jovem mudou de ideia. Desistiu da transição, e, com isso, perdeu todos os seus amigos, que havia conhecido nas conversas do Tumblr. Só se fala com uma amiga de infância. Foi difícil ir contra todas as falas da comunidade com que convivia, mas ela preferiu assim. Preferiu lutar pelo direito de ser lésbica. Nas palavras dela, se ela tivesse tido algum exemplo de celebridade, personagem ou qualquer outro modelo de mulher que fosse como ela, uma mulher não feminina, ela nunca teria pensado que era um homem. Faltava-lhe essa comunidade.

Pois bem, Steven Universe tem personagens assim, Rebecca Sugar é uma celebridade assim. Os impactos positivos que a animação poderia trazer para uma pessoa dessas é considerável.

Mas então, Rebecca diz na mídia que não é tão mulher assim. Que é uma pessoa não binária. Mas Rebecca Sugar não odeia o próprio corpo a ponto de mutilá-lo, é apenas uma mulher não binária. Logo, mulheres como a filha de Penny White, que odeiam de fato o próprio corpo e sentem vontade de mutilá-lo, devem ser homens.

Rebecca Sugar tinha sido revolucionária com o seu trabalho e com a sua pessoa pública. Mas tudo o que fez invalidou-se em sua fala de não binária. Ela não é mais o modelo de mulher que pessoas como a filha de Penny precisam, ela é trans, não é tão mulher assim. Steven Universe não tem mais nada a ver com o questionamento do papel de mulheres. Tem a ver com pessoas não binárias. Pergunto-me se ela entende as consequências de sua figura pública despretensiosamente se assumir trans. O preço a se pagar é muito alto e deve ser considerado.

rebecca sugar e o transativismo
Dizer que mulheres não femininas são menos mulheres é misoginia