Reivindicando a Feminilidade, Minando o Feminismo
Reivindicando a Feminilidade, Minando o Feminismo

Começa a ser solitário ser uma feminista na América hoje, se você não se curvar em reverência à noite diante de um altar para Beyoncé, se você não puder aceitar a pornografia ou a prostituição das mulheres como o divertimento inofensivo para toda família, e especialmente se você for tão esquisita em conceitualizar “feminilidade” em termos de desigualdade ao invés de identidade. Ninguém vai lhe guardar um assento na Festinha de Manicure Feminista; você terá que ir para casa e pensar em estratégias para derrubar o patriarcado sozinha, como todas as noites. Enquanto isso, as ‘Feministas Maneiras’ têm um trabalho importante a fazer: é chamado de “empoderamento”, e esta noite eles estarão afirmando sua força depilando com cera as virilhas umas das outras.

Outra forma em que a feminista não-feminina exilada poderia passar suas longas noites em casa com os gatos poderia ser resignando com um documentário ou dois sobre os velhos tempos da Segunda Onda (do feminismo), quando as feministas reconheceram e ressentiram a “feminilidade” como um artifício de características e comportamentos impostos às mulheres pela cultura da supremacia masculina. De alguma forma, nesses dias sombrios, as feministas consideravam a feminilidade uma ferramenta patriarcal que serviu para converter as mulheres em objetos sexuais e servas domésticas (imagine!). Saltos plataforma, cintas e ceder a convenções de ‘fodabilidade’ estavam fora de moda, então também a propensão para definhar delicadamente em um educado silêncio. As mulheres da segunda onda consideravam a rejeição da feminilidade um elemento chave no caminho da libertação das mulheres.

Avançando para o chamado feminismo de hoje, que não se preocupa tanto com a liberação das mulheres como fez o feminismo de mulheres agora muito velhas para serem levadas a sério. Nós demos uma emocionante renovada na feminilidade: Hoje, a análise crítica da feminilidade é ridicularizada como simplória ou trivial — “básica”. É mais complexo (e mais divertido, duh) fazer o que os homens queriam fizéssemos esse tempo todo.

O feminismo contemporâneo gira em torno da reivindicação da feminilidade, particularmente aquelas partes super extra divertidas e objetificantes, como os termos “vadia” e “cadela” e a habilidade de andar sobre saltos de quinze centímetros. E se os homens querem mostrar a sua solidariedade com as mulheres, eles também podem experimentar caminhar de salto alto, a fim de experimentar a plena realidade vivida por ser mulher no patriarcado. Até tirar uma selfie agora é um ato feministaPor re-estabilizar a “feminilidade” como o centro da “identidade feminina” — o que é ser uma mulher —  a solidariedade feminina se transformou em orgulhosas exibições públicas de fidelidade aos símbolos e os mecanismos da opressão feminina.

A teoria por trás da reivindicação da feminilidade propõe que o cerne da opressão das mulheres tem pouco a ver com ódio às mulheres pela supremacia masculina em si. Na verdade, feministas contemporâneas argumentam que o ódio a mulheres é meramente o produto de uma vasta conspiração cultural para suprimir a feminilidade. É a feminilidade que é oprimida, não as mulheres. As mulheres são alvo mais frequentes dessa opressão simplesmente porque sua essência tende a ser mais feminina.

Me chame de irremediavelmente pragmática, mas para aquelas de nós ainda interessadas ma libertação, isso é algo difícil de engolir. Ser “fêmea” (ou ser mulher) significa coisas diferentes em diferentes contextos culturais e situacionais, com uma das poucas consistências sendo que se você tem uma vagina, é mais provável que esteja sujeita à violência sexual masculina, a ser pobre e a ser comprada e vendida como uma mercadoria para pessoas cujo desejo é degradá-la.

O exército da “Feminilidade Livre!” argumenta, inversamente, que vivemos em uma sociedade que despreza o feminino, o que é, claro, nada além de uma coleção de traços neutros e apolíticos, que alguns humanos (geralmente mulheres) por acaso possuem. Assim, as pessoas com características femininas (na maior parte mulheres) foram conduzidas a internalizar a penetrante atitude anti-feminilidade e odiar sua própria feminilidade nativa. Estas pessoas femininas (vamos chama-las de “mulheres”), então, começam a odiar a si mesmas. Este é, aparentemente, um problema central para essas pessoas cheias de feminilidade no mundo atual.

Assim, a solução feminista contemporânea — e um foco necessário de nossos esforços solidários — é exaltar a feminilidade. Vá em frente. Desenvolva sua rotina de beleza! Estoure seus cartões de crédito em compras compulsivas de lingerie feminina! Apoie sua amiga dizendo como ela está parecendo sexy hoje à noite. Talvez até a surpreenda com uma cantada se passar de carro por ela de na rua!

A falha fatal desta abordagem solidária à centralização da feminilidade é que não é verdade que o objetivo do patriarcado em oprimir mulheres é esmagar nossa “feminilidade,” como se os homens no poder apenas não aguentassem a cor rosa ou reprises de Sex and the City. O patriarcado na realidade não inibe mulheres de florescer no glamour total de sua feminilidade; feminilidade não é proibida e também não é “essência” de ninguém — para mulheres a feminilidade é exigida, e depois punida.

A razão que a feminilidade ser tida com desprezo é porque foi projetada para fazer mulheres parecerem desprezíveis, justificando a dominação. Como Sheila Jeffreys disse, a “feminilidade é o comportamento da subordinação feminina,” e é impossível ser subordinada e estar no poder simultaneamente. Quando nós aceitamos a feminilidade, nós lidamos com estereótipos sexistas — só que desta vez é para nós mesmas! Quando aceitamos a feminilidade nós afirmamos o conceito da polaridade de gênero, que Andrea Dworkin nomeou a causa raiz da opressão sexual. E assim nós nos sabotamos.

Quando as mulheres comemoram a feminilidade, as feministas sofrem duas perdas fatais: Primeiramente, nós abrimos mão de conhecermos umas às outras por manter a fantasia da feminilidade firmemente costurada em nossa pele. E em segundo lugar, nós glorificamos (e reforçamos) as arquiteturas sociais que confinam mulheres aos ciclos de detestarem a si mesmas, de vergonha, de violência, e de dependência. “Empoderar a feminilidade” não subverte o poder dos homens de colonizar mulheres, psicológica- e fisicamente. É uma celebração do sucesso do patriarcado em definir o que as mulheres são, o que mulheres podem ser, e como as mulheres podem existir neste mundo.

Enquanto ser uma feminista não necessariamente impossibilita o uso de rímel nem renda ou mesmo mergulhar sua cabeça inteira em glitter cor-de-rosa, abraçar a feminilidade como se fosse um tesouro especial a ser premiado e preservado é contrário aos objetivos do feminismo.

Reivindicando a Feminilidade, Minando o Feminismo

Marilyn Frye escreveu: “Uma pessoa necessita de espaço para praticar uma postura ereta; uma pessoa não pode apenas ter vontade para que aconteça. Para treinar o corpo uma pessoa necessita liberdade física das forças físicas que lhe deformam aos contornos do subordinado”. Se nós continuarmos a comemorar a feminilidade, nós permaneceremos presas — nos inclinando decorativamente, na gaiola, nos emplastrando de brilho labial, tirando uma selfie. Em solidariedade com a feminilidade, nós estamos com o opressor. Ou, mais precisamente, nós estamos nos sentando a seus pés.


Aurora Linnea é uma escritora, artista, e reclusa amante de cães, à deriva no sul estadunidense. É responsável pelo livreto This Mutilated Woman’s Head(A Cabeça Desta Mulher Mutilada) entre outros trabalhos de dissidência feminista.


Tradução do textos de Aurora Linnea — traduzido do Feminist Current

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