Dias atrás, vi um artigo no The Guardian que iniciava com a seguinte pergunta: “o que um jogador de golfe profissional, uma feminista queer e uma influenciadora do Instagram tem em comum?”. O artigo, escrito por um professor da Cass Business School de Londres, se propunha a expor como tinham arrancado toda a política do conceito feminista de autocuidado para vendê-lo no mercado de massas.
Já aviso: tirem o cavalinho da chuva, pois não tenho intenção de “replicar” ou contrapor o artigo.
Na verdade, infelizmente tenho de concordar com o que foi exposto pelo professor André Spicer. E escrevo esse texto porque senti que o professor não foi claro o suficiente numa denúncia tão importante e significativa para o movimento de mulheres. Que poderíamos ser mais ilustrativos e pedagógicos. Minha ideia é esmiuçar o que ele apontou, para que seja uma crítica construtiva. Para que possamos ver claramente o problema e dar a volta por cima.
Encontrei essa definição de autocuidado no dicionário PRIBERAM:
“Conjunto de ações ou procedimentos de cada indivíduo destinado à manutenção da vida, da saúde e do bem-estar.”
Procurei algum dicionário feminista para ver uma versão mais alinhada com o que procurava, para contrastar as definições. Não surpreendentemente, a única entrada onde encontrei esse verbete foi num artigo — no dicionário feminista — sobre “Feminismo Consumista”, o famoso feminismo neoliberal, que pega em cada conceito e cada conquista do movimento de mulheres e transforma em mercadoria, individualismo ou meritocracia.
E se vamos falar de autocuidado e feminismo, na busca de entender esse conceito e ver como foi deturpado, temos de ir à fonte e creditar aquela que plantou essa semente no movimento de mulheres: Audre Lorde.
Claro que vivendo a altura que viveu, sendo aberta e politicamente a pessoa que era — mulher, negra, lésbica, mãe, socialista — autocuidado era, como escreveu a própria Lorde, não uma forma de “autoindulgência”, mas sim “política de guerra”.
A autora fala muito em autocuidado no seu livro “A Burst of Light”, publicado apenas 4 anos antes de Lorde morrer em decorrência do câncer de mama. E, nos seus escritos como nos seus discursos, Audre Lorde sempre frisou — SEMPRE — como não é um ato individual, como não existem lutas individuais e como tudo estava conectado à política, ao mundo à volta. Portanto, era impossível falar em autocuidado de forma dissociada de uma luta política. Toda a escrita e o ativismo de Lorde me fazem sempre voltar ao lema do movimento de mulheres da altura, “o pessoal é político” — um lema que não queria dizer que qualquer ato individual é suficiente para transformar a sociedade, que bastava existir e “sua parte estava feita”. Mas sim para lembrar que a política e as estruturas de poder operantes na sociedade estão entranhadas e presentes em cada momento da sua vida como um indivíduo, em cada parte da sua vida dita “pessoal”.
É Lorde que nos lembra que não há hierarquia de opressão e, portanto, não é possível lutar isoladamente — ela é mulher, mas também negra e também lésbica e também da classe trabalhadora, e nenhum lado da sua identidade se beneficia da opressão de “outro” lado. A escrita de Lorde fala sempre em lutas conectadas, em comunidades e resistência como um ato político coletivo.
Essa cooptação individualista do conceito de autocuidado é, no mínimo, a negação de tudo que Audre Lorde defendeu, escreveu e legou ao movimento de mulheres, ao movimento negro e ao movimento lésbico.
E não digo isso como quem diz “vamos corrigir porque a patente é da Lorde”, mas sim para apontar que foi deturpado, como foi deturpado e como se tornou hipócrita e contraditório. Em última instância, é efetivamente o contrário de libertação e resistência.
Aliás, enquanto fazia tratamento contra o câncer e ouvia sobre ser “otimista” e tentar “ser feliz”, Audre Lorde respondeu de forma muito simples e concisa, que poderia bem ser o desmonte da farsa do autocuidado como prática de isolamento numa bolha de cristal:
“olhar para o lado positivo das coisas é um eufemismo usado para obscurecer certas realidades da vida, cuja consideração aberta pode ser ameaçadora para o status quo. (…) Busquemos ‘alegria’ em vez de comida e ar puro de verdade e um futuro mais saudável em uma terra habitável! Como se a felicidade sozinha fosse capaz de nos proteger, é o resultado da loucura do lucro” (1997: 76).
De volta às raízes do autocuidado
Sei que vai parecer inaceitavelmente simplista, mas para desmascarar essa noção de autocuidado, que se tornou uma erva-daninha no feminismo, e retomar o conceito como uma prática política coletiva, vou propor que pensemos nas pessoas que lutam contra a depressão cotidianamente e as intermináveis tretas do Setembro Amarelo.
Aqueles diagnosticados com depressão ou bipolaridade ou ansiedade estão constantemente (e justamente) a denunciar a hipocrisia dos que passam 11 meses dizendo “você tem que se cuidar”, “tem que sair mais”, “tenta olhar pelo lado bom”, “seja mais otimista” e depois, quando chega o mês de conscientização sobre a saúde mental, estão todos “de portas abertas para ouvir sobre a sua depressão”. De repente, são todos muito atenciosos e despertos para o que a depressão representa.
A ideia de autocuidado cooptada e descaracterizada de hoje seria como dizer a uma pessoa depressiva para ser mais otimista… lá no canto dela.
A ideia de autocuidado como resistência política que foi cunhada e reivindicada no movimento feminista seria apontar como o nosso sistema político e econômico nos torna depressivos e organizarmos para combate-lo, como uma estratégia de sobrevivência — para aqueles que “nunca foram destinados a sobreviver”, como diria Audre Lorde.
Trazendo para um contexto mais macro, mais real nas resistências populares e de mulheres, vou citar aqui aqueles exemplos que mais claramente me recordo.
Soberania alimentar como autocuidado
Recentemente, aconteceu o primeiro Encontro das Irmãs Soberanas. Um círculo assembleário organizado por mulheres indígenas da América do Norte, aquelas que são destacadas nas suas comunidades como Protetoras da Água (na luta contra usinas, barragens e a destruição das suas comunidades). As Protetoras da Água se reuniram para discutir a soberania econômica do seu povo. Quando questionadas de que forma a resistência era praticada no seu dia-a-dia, uma das protetoras disse: plantamos sementes. Semear é uma prática de autocuidado, para elas, porque é uma questão de sobrevivência e, efetivamente, autopreservação. Uma questão de soberania alimentar, uma vez era evidente a destruição ambiental que engolia mais e mais os recursos naturais — e que significaria miséria e fome. Significava que elas não teriam o que comer nem o que dar de comer aos seus filhos. Autocuidado e resistência ao lutar contra a fome é criar fontes de soberania alimentar autossuficientes.
Autodefesa e Soberania Reprodutiva como autocuidado
Outros três exemplos de autocuidado podem ser encontrados diretamente nas práticas características do movimento de libertação das mulheres, nos anos 70: círculos de autodefesa; círculos de saúde sexual; linhas clandestinas de apoio ao aborto seguro. Num momento em que o assédio e a violência era onipresente em casa como na rua, autodefesa era autocuidado. Mas isso implicava organização coletiva. Autodefesa era autocuidado porque era sobrevivência. Da mesma maneira, aprender sobre seu corpo e como ele funcionava numa época em que mulheres eram negadas esse direito, vivendo numa ignorância sobre si mesmas, era efetivamente uma questão de sobrevivência e autocuidado aprender sobre planejamento reprodutivo, sobre soberania reprodutiva e tomar alguma forma de controle sobre seus destinos e suas vidas. O mesmo vale para as linhas de apoio ao aborto seguro: se o Estado não provém, cuidamo-nos nós. Autocuidado. Uma mulher cuida da outra.
Autocuidado era autonomia, não individualismo.
Agora, nessa nossa época em que o pensamento individualista e meritocrático do neoliberalismo está bem disseminado, e tudo que é conceito basilar desenvolvido pelos movimentos sociais populares nas últimas décadas foi cooptado, descaracterizado e higienizado para virar produto de mercado, autocuidado é você tirar um tempo para si mesma. Afastar do ativismo, comprar um vinho pra “aproveitar sua companhia” numa noite qualquer, assistindo série na tevê e “fazendo sexo consigo mesma” — você sabe, tudo como se fosse uma ação política contra o Patriarcado, quando, na verdade, você está completamente isolada e desmobilizada. Mil e uma táticas para você se proteger daquilo que te faz mal para continuar com uma boa saúde mental e física para um dia, quem sabe, voltar firme e forte para a militância real. Assim, autocuidado pode ser bloquear aqueles parentes bolsonaristas do Facebook. Ou parar de ler notícias e ficar a par do que se passa à sua volta para não “ativar gatilhos”. Deixar de engajar nas reuniões políticas e grupos de estudos para “dar um tempo”.
É preciso rejeitar as cooptações da teoria política das mulheres. Rejeitar a desmobilização da nossa luta e combater ativamente que essas mensagens falaciosas sejam disseminadas para envenenar as novas gerações de meninas e mulheres, que mais e mais estão sendo formatadas nos moldes ideias para o sistema que nos oprime e explora.
“Quando os tempos estiverem difíceis, faça alguma coisa. Se funcionar, faz mais. Se não funcionar, faça outra coisa. Mas continue.”, disse Audre Lorde. Voltemos à prática revolucionária de Lorde e do movimento de libertação das mulheres.
Autocuidado é destruir o Patriarcado.