Teoria queer: a destruição das sujeitas revolucionárias
Teoria queer: a destruição das sujeitas revolucionárias

Os artigos pró-queer mais recentes são metafísicos, não fazem análise histórica de classe, não oferecem contextos socioeconômico e político e, diante da crítica política materialista à teoria queer, recorrem a “argumentos” irracionais, como o medo ou as fobias, motivo pelo qual é importante lembrar em que contexto histórico surge essa teoria, a quais interesses de classe ela serve e quais efeitos políticos e práticos sua disseminação na esquerda e no feminismo teve ao longo dos últimos trinta anos.

“Lógica Queer — Lição 1: O que é uma mulher. Isso é uma mulher. Isso é transfóbico.”

A teoria queer foi desmobilizadora desde o começo, dando longos anos de tranquilidade à burguesia ao dissolver e despedaçar o sujeito revolucionário ou, melhor dizendo, as sujeitas revolucionárias (sejam as mulheres, seja a classe trabalhadora). Sujeitas revolucionárias essas muito presentes, antes da aparição da teoria queer, em 1990, em movimentos como o Movimento de Liberação das Mulheres ou as Panteras Negras.

O sujeito revolucionário foi anulado e negado com força desde o início dos anos 1990 (embora já viesse sendo questionado desde 1968), enquanto era substituído por um confuso magma de variadas dissidências inoperantes na luta revolucionária contra o capitalismo, o patriarcado e o racismo; ou, como propuseram autores “pós-marxistas” como Negri e Hardt, por uma difusa multidão, definida por esses autores como uma nova classe global emergente. Eles rapidamente entram na moda, e não poderia ser diferente, num mundo que apresentam como pós-moderno, pós-marxista, pós-feminista, pós-tudo.

Se costuma citar como início da teoria queer a publicação, em 1990, de “O gênero em disputa”, de Judith Butler, uma de suas maiores impulsoras. Também se cita, como veremos, Teresa de Lauretis. De uma forma ou de outra, a teoria queer surge no início dos anos 1990, nas universidades norte-americanas de elite.

Feminista “transgressora” recuperando o lema da igualdade do feminismo burguês. Na citação: “Seja qual for a liberdade pela qual lutamos, deve ser uma liberdade baseada na igualdade”.

O que acontecia no mundo quando a teoria queer apareceu?

Em 1989, desaparecem o muro de Berlim e Alemanha Oriental; é imposto o retorno ao capitalismo nos países chamados socialistas; em 1991, a URSS desaparece. Na China, Deng Xiaoping havia sepultado, de fato, a obra de Mao e continuava implacável com suas reformas capitalistas na maior nação do mundo. Em 1992, Francis Fukuyama e outros teóricos neoliberais, isso sem falar dos meios de comunicação, proclamavam o triunfo total do capitalismo, o final da história, o que supunha o fim de qualquer projeto revolucionário, não apenas em ação, mas também em pensamento.

Nesse contexto nasce a teoria queer, não por coincidência, em universidades dos Estados Unidos, da França, da Itália e de outros países ocidentais, muito próxima do pós-modernismo de que faz parte. As universidades elitistas do autoproclamado “país vencedor da guerra fria”, Estados Unidos, são o berço da teoria queer, essa que querem nos fazer acreditar que é tão progressista e tão transgressora. O nome teoria queer se deve à teórica feminista Teresa de Lauretis, que o usa pela primeira vez em uma conferência em Santa Cruz, na Universidade da Califórnia, em 1990. Aparece publicada em um número especial do Differences: A Journal of Feminist Cultural Studies. O caráter academicista, burguês e elitista da teoria queer será constante desde o seu nascimento, assim como acontece com o pós-modernismo.

Os primeiros autores pós-modernos e queer realizaram uma crítica dissolvente àquilo que chamavam os grandes relatos, as cosmovisões que tentavam explicar o mundo: o feminismo, o marxismo, o anarquismo, a ciência, o ecologismo. Algumas de suas críticas eram justas e acertadas, embora muitas tivessem sido feitas antes do pós-modernismo por autoras negras, como Angela Davis, Audre Lorde ou a Coletiva do Rio Combahee, ou por autoras lésbicas, como Adrienne Rich, nos anos 70/80.

“Espera-se que as pessoas negras do terceiro mundo eduquem os brancos para que eles reconheçam nossa humanidade. Espera-se que as mulheres eduquem os homens. Espera-se que as lésbicas e os gays eduquem o mundo heterossexual. Os opressores mantêm sua posição e negligenciam a responsabilidade por suas próprias ações. Há uma constante drenagem de energia que poderia ser mais bem utilizada para redefinirmos e planejarmos cenários realistas para alterar o presente e construir futuro.”

Um texto de Selma James, publicado pela primeira vez em 1973, “Sexo, raça e classe” (“Sexo, raza y clase” disponível aqui), é mais uma prova de que as denúncias e lutas contra a opressão por sexo, raça e classe são muito anteriores à teoria queer e à chamada “interseccionalidade” dos anos 1990.

“Não se construirá nada unificado e revolucionário até que cada um dos setores explorados tenha feito com que percebam seu próprio poder autônomo” — Selma James

Em 1977, a Coletiva Combahee publicou “Uma declaração negra” (“Una declaración negra” disponível aqui), onde também denunciava como inseparáveis as opressões de sexo, raça e classe. Em 1981, Angela Davis publicou seu essencial “Mulheres, raça e classe”. Adrienne Rich também foi muito clara em “Notes towards a politics of location” (“Apuntes para una política de la posición” disponível aqui).

Conhecer bem e restaurar a história completa do feminismo tem sua importância, porque hoje há autoras queer e pós-modernas que fingem ter a primazia e a exclusividade das reivindicações das mulheres trabalhadoras e racializadas, como se o feminismo marxista, negro ou decolonial nunca tivessem existido ou não existissem na atualidade.

Tem sua importância porque não é porque você experimenta as opressões de sexo, classe e raça que sofremos milhões de mulheres que é preciso comprar o pacote queer, que inclui como num “combo” questões muito discutíveis e discutidas hoje em dia, como a regulamentação da prostituição e a defesa da pornografia ou do BDSM como “empoderadores”, a falta de justiça para as mulheres estupradas ou assassinadas, acusando quem a exija de punitivista, o questionamento do sujeito mulheres etc. etc.

Tanto no feminismo marxista quanto no feminismo negro há linhagens anteriores à teoria queer que lutam contra as três opções estruturais, resistindo à hegemonia do feminismo pós-moderno, sem necessidade de assumir o pacote liberal queer, e seguem fazendo contribuições, desde a aparição e difusão do feminismo pós-moderno e da teoria queer, nos anos 1990, até a atualidade.

O problema é que tudo caiu sob a análise corrosiva do pós-modernismo, entrando em um relativismo que só beneficiou o capitalismo e o patriarcado. Os autores queer e pós-modernos jogaram fora a bebê com a água do banho.

Os referentes principais, também não por coincidência, deixam de ser mulheres, como acontecia no feminismo anterior, chamado de “segunda onda”, de Alexandra Kollontai a Rosa Luxemburgo, Simone de Beauvoir ou Kate Millet, e passam a ser homens. Um dado não desdenhável, embora não o veja ser destacado nunca, é o de que a teoria queer pressupõe a volta do homem ao feminismo; autores como Freud, Foucault, Deleuze, Barthes, Lacan, Levi-Strauss entram pela porta principal. Sobre o maior referente teórico da teoria queer, Michel Foucault, Suárez Briones destaca a ausência das mulheres e das lésbicas em suas obras. As consequências dessa operação, nos lembra, são uma série de aproximações pós-foucaultianas à instituição da heterossexualidade, desvinculadas de qualquer vestígio feminista.

Os referentes teóricos homens são muito relevantes desde o início da teoria queer. Basta ler a contracapa de “El género en disputa” (“O gênero em disputa”), de Judith Butler: “[…] apoiada na leitura de autores como Jacques Lacan, Sigmund Freud, Simone de Beauvoir, Claude Lévi-Strauss, Luce Irigaray, Julia Kristeva, Monique Wittig e Michel Foucault, Butler oferece aqui uma teoria […]”.

Evidentemente, também começam a aparecer numerosos autores homens queer e feministos. Basta revisar qualquer bibliografia ou biblioteca queer para comprovar isso. Paralelamente, o movimento LGBT, dominado rapidamente pelos homens gays, se despolitiza, aniquila o lesbofeminismo e luta por algumas reformas, que, ainda que importantes, não deixam de ser uma maquiagem da norma heterossexual.

As advertências e críticas à teoria queer e ao pós-modernismo feitas por alguns autores marxistas e autoras feministas foram majoritariamente ignoradas. A luta de massas, as lutas coletivas, vão entrando em crise enquanto são substituídas por uma teoria centrada principalmente na identidade individual, a “identidade de gênero”, ou por teorias econômicas que não são outra coisa que não apologias descaradas ao neoliberalismo selvagem. São teorias que se baseiam em uma suposta liberdade individual. É o mundo do empreendimento, das startups… A mensagem é: todo mundo pode ser rico, só depende de você. Se você não é, o problema é contigo, você é um fracassado.

Durante o domínio pós-moderno, apenas movimentos locais, como o zapatista (a chamada primeira guerrilha pós-moderna) ou os movimentos antiglobalização ou antiguerra mantiveram a duras penas um desafio no final da história. O 11 de setembro pressupõe o fim de qualquer luta armada, porque é conceitualizada como terrorismo. A única violência legitimada socialmente é a do Estado, seja inteiramente ou mediante a guerra imperialista. Qualquer utopia, inclusive pacífica, é ridicularizada ou demonizada. Até sonhar é proibido. A história terminou, o capitalismo é o melhor dos sistemas possíveis e acabou. Pense no EU, no dinheiro, no SEU bem-estar, em sua identidade pessoal. Se você sente algum mal-estar, sua origem é individual. O NÓS, sobretudo entre mulheres, foi esquecido e enterrado.

Por que questionar o sujeito revolucionário mulher?

Os novos grupos surgidos no calor da teoria queer, grupos já mistos que se centram nessas identidades, apesar de sua retórica transgressora ou até mesmo revolucionária, nunca foram capazes de se mobilizar de um modo significativo contra o capitalismo, nem contra o patriarcado, nem contra o racismo. Essa amálgama de dissidências não constituiu em absoluto uma ameaça para o sistema estabelecido, mas seu álibi. Não foram, como os teóricos pós-modernos prognosticaram, os novos sujeitos revolucionários, a substituição para os anteriores sujeitos revolucionários, dados antecipadamente como mortos. A esquerda, confusa, derrotada e órfã de referentes teóricos, precipitadamente jogou no lixo os seus, voltou a fracassar ao renunciar a defesa da classe trabalhadora, que consideravam comprada pelo estado de bem-estar, buscando as novas dissidências, sem lembrar que a crise capitalista é cíclica e não demoraria para se manifestar em toda a sua crueza, como aconteceu a partir de 2008.

O potencial da luta revolucionária das mulheres não pode mais assustar os poderosos. É preciso acabar com as mulheres e, como não podem aniquilar metade da humanidade, o que seria melhor do que diluir ou acabar com o sujeito mulher? A teoria queer é a encarregada disso, enquanto variados pós-marxismos convencem a classe trabalhadora de que, como as mulheres, ela também não existe, porque já progrediu e se tornou classe média, uma classe que só vai prosperar dentro do capitalismo.

Somente as mudanças progressistas na América Latina e a crise econômica nos Estados Unidos, na Europa… pressupõem o fim da completa hegemonia ideológica burguesa, expressa em muitos ambientes autodenominados ou de esquerda pelo pós-modernismo queer, que foi assimilado de uma forma completamente acrítica. Ainda assim, a derrota da teoria queer e do pós-modernismo não está, de todo, completa, e há setores feministas e de esquerda que não fizeram a reflexão histórica correspondente.

A teoria queer é o ópio do povo

Hoje, o que está em jogo para as mulheres, para a classe trabalhadora, para as maiorias/minorias oprimidas por sua sexualidade, classe ou etnia é encontrar uma saída do mundo pós-moderno que não seja nem voltar à pré-modernidade nem à modernidade iluminista, mas relacionar dialeticamente as partes válidas desses grandes relatos iluministas, incorporando as críticas pós-modernas acertadas, sem que tudo isso implique jogar fora nenhuma bebê com a água suja do banho. Suja de etnocentrismo, de racismo, colonialismo, misoginia, homofobia etc. da razão iluminista.

A teoria queer, ao questionar o sujeito mulher, pressupõe o fim das importantes organizações de massa da segunda onda do feminismo (junto às divisões internas). Não é uma coincidência que as grandes mobilizações do movimento de mulheres tenham sido ANTERIORES ao nascimento da teoria queer, nos anos 1960/70/80, e POSTERIORES, uma vez que tenham ressurgido as lutas das mulheres, quando uma geração de mulheres que despreza a teoria queer, mas não a violência sobre seus corpos, se organiza partindo da base e, ignorando a academia e a elite feminista, volta a tomar as ruas.

Não é fácil, mas nossa luta é e será imprescindível. Sigamos com essa função…

Nota: o presente artigo supõe uma ampliação de meu artigo anterior ¿Por qué la teoría queer es una teoría misógina engañosa que no conduce a la revolución feminista?”

Tradução do texto “Teoría queer: la destrucción de las sujetas revolucionarias”, de Kalinda Marín, feminista classista e antirracista de base andaluza, cocriadora da Biblioteca de la Liberación de las Mujeres. Para ler o texto em espanhol, clique aqui.

Nota da tradutora: nem todas as imagens desta tradução conferem com as imagens do texto em espanhol.