De onde vêm os bebês “de aluguel”?
De onde vêm os bebês “de aluguel”?

Celebridades como os Kardashians e Elton John estão normalizando cada vez mais a sub-rogação de útero, também conhecida como “barriga de aluguel”. Não pode fazer o seu próprio bebê? Encontre uma “carregadora gestacional” para fazer isso por você. Simples assim. Quando vemos a sub-rogação de útero discutida na mídia global, é na forma de histórias para você se sentir bem sobre bebês para casais que estão desesperados por sua própria criança mas incapazes de tê-la naturalmente. O que não é discutido é onde, e mais importante, de quem, o bebê vem.

Nos poucos países onde a gravidez sub-rogada comercial é legal (Ucrânia, Geórgia, Rússia e 11 estados nos Estados Unidos), a mulher que carrega o bebê é chamada de “carregadora gestacional”, sub-rogada ou mãe sub-rogada (‘gestational carrier’, surrogate or surrogate mother). Mas esses termos são totalmente inapropriados, já que não há nada “sub-rogado” no processo.

Uma mãe sub-rogada é paga entre US$ 20.000 e US$ 35.000 (vinte mil e trinta e cinco mil dólares, ou seja, entre R$81.000 e R$141.000 — oitenta e um mil e cento e quarenta e um mil reais), o que equivale a menos de US$ 4 por hora (R$16 — dezesseis reais). Para os pais que as comissionam — eu os chamo de ‘compradores de bebês’ — a “barriga de aluguel” pode facilmente custar US$ 100.000 (cem mil dólares, aproximadamente R$405.000-quatrocentos e cinco mil reais) ou mais, porque muitas vezes a mãe biológica não engravida ou sofre um aborto espontâneo, então o processo precisa ser repetido mais de uma vez. Enquanto isso, a maior parte desse dinheiro alimenta a indústria de mães da sub-rogação de útero — clínicas de fertilização in vitro, advogados, consultores, agências de “doadoras” de óvulos, grupos de lobby e outros intermediários — que estão explorando essa nova oportunidade de negócio para encher seus bolsos.

No meu livro, Surrogacy: A Human Rights Violation (Sub-rogação: Uma Violação dos Direitos Humanos), eu descrevo tudo o que está errado com a indústria de sub-rogação de úteros. Eu sugiro que, por maior que seja a dor causada pela infertilidade, ou por maior que seja o desejo de ter o ‘próprio’ filho genético, nada no mundo pode justificar colocar os corpos de outros dois seres humanos — a mãe sub-rogada e a “doadora” de óvulos — em risco de problemas de saúde a curto e longo prazo que podem ser causados por procedimentos da fertilização in vitro, bem como complicações na gravidez e no parto.

Sub-rogação de útero é uma clara violação de direitos humanos É uma prática de exploração que viola várias convenções da ONU e outros tratados internacionais. Por exemplo, a sub-rogação pode ser comparada à escravidão, que o Artigo 1 da Convenção das Nações Unidas sobre Escravidão define como “o status ou condição de uma pessoa sobre a qual qualquer ou todos os poderes ligados ao direito de propriedade são exercidos”.

Quando uma mulher concorda em ser sub-rogada, ela cede controle sobre sua vida pelos próximos nove meses. Os compradores de bebês (e seus médicos) decidem o que ela come e bebe, com quem ela faz sexo e com que frequência, com quantos exames ela precisa concordar para garantir que o bebê que carrega não tenha ‘defeitos’, e quantas vacinas ela tem que ter tomado. Se este ‘controle de qualidade’ revelar imperfeições, ela pode ser forçada a fazer um aborto; Se mais de um embrião foi implantado e se desenvolver, a redução fetal pode ser necessária.

Como diz o presidente do Conselho Escocês de Bioética Humana, Dr. Calum MacKellar, “vender a sub-rogação é um passo em direção à escravidão, à medida que as mulheres são desumanizadas”. E o novo diretor do Comitê de Bioética da Espanha, Federico de Montalvo, deixou claro que a Espanha não legalizará a sub-rogação de útero, uma prática antiética que “transforma as crianças em objetos de consumo”.

A sub-rogação também viola profundamente os direitos da criança, sob a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança. O Artigo 2 proíbe a venda de crianças, e o Artigo 35 estipula que “os Estados Partes adotarão todas as medidas nacionais, bilaterais e multilaterais para impedir o sequestro, a venda ou o tráfico de crianças para qualquer finalidade ou sob qualquer forma” [ênfase adicionada]. Na sub-rogação, as crianças são claramente vendidas.

Também viola o Artigo 1 do Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança sobre a venda de crianças, que obriga os governos a criminalizar a venda de crianças.

Os proponentes da sub-rogação dizem que a mãe biológica é paga por seus “serviços”, mas isso é descaradamente falso. Se ela abortar ou fizer um aborto, ela provavelmente não será paga. É o ‘produto filho’ para o qual o pagamento é feito.

Enquanto isso, em março de 2017, o grupo feminista italiano Se Non Ora Quando–Libere (“Se Não Agora Quando-Livre”) apresentou um pedido às Nações Unidas para tratar da sub-rogação de útero na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Convention of the Elimination of All Forms of Discrimination against Women — CEDAW). Pediu às Nações Unidas que adotassem — no contexto da CEDAW — uma recomendação contra a maternidade sub-rogada segundo o modelo adotado para combater as práticas de mutilação genital feminina, já que a “maternidade sub-rogada leva a uma verdadeira desumanização da mãe e do filho já que cria conscientemente um estado de sacrifício e abandono”. A ONU ainda tem que responder.

Não se pode alugar ou comprar mulheres, de maneira total nem parcial — http://nosomosvasijas.eu

Defensores da “barriga de aluguel” argumentam que as mulheres “escolhem” ou “consentem” em serem sub-rogadas, exercendo sua autonomia reprodutiva. Mas ninguém pode saber o que pode dar errado em uma gravidez. As mulheres são orientadas a dissociar-se da criança com base no fato de que ela não compartilha seus genes. Tais pronunciamentos contradizem o conhecimento científico de que, durante a gravidez, as células são trocadas entre mãe e feto e podem permanecer na mãe bem depois do nascimento. Os defensores da sub-rogação de útero, portanto, ignoram fundamentalmente o relacionamento biológico que se forma entre mãe e feto — mesmo quando o embrião/feto não foi feito com seu próprio óvulo — e como isso pode complicar o apego da mãe à criança e, conseqüentemente, seu bem-estar, depois do nascimento.

Na Austrália, onde é permitida apenas a sub-rogação “altruísta”, as chamadas mães sub-rogadas não são poupadas de dores e traumas incríveis. Broken Bonds: Surrogate Mothers Speak Out (“Ligações quebradas: As Mães Revelam” — editado por Jennifer Lahl, Melinda Tankard Reist e Renate Klein, 2019, Spinifex Press), conta as histórias de mulheres que foram deixadas traumatizadas por suas experiências como mães sub-rogadas. Uma dessas mulheres, Odette (um pseudônimo) conta uma história de profunda traição, angústia e arrependimento. Odette carregou um bebê para sua prima medicamente infértil e foi subsequentemente tratada cruelmente durante a gravidez. Depois de dar à luz o bebê, foi negado à Odette o direito de ver ou receber informações sobre a criança. Três anos depois, Odette ainda não viu a criança — nem mesmo em foto — e batalha pela sua saúde mental, profundo arrependimento e raiva.

Broken Bonds: Surrogate Mothers Speak Out

O que fazer? Juntamente com milhares de indivíduos e grupos internacionais, como Stop Surrogacy Now (“Pare a Sub-Rogação Agora”), a ICAMS — International Coalition for the Abolition of Surrogate Motherhood (Coalizão Internacional para a Abolição da Maternidade Sub-rogada, originada na França), Stop Womb Rental (“Pare o Aluguel de Útero”, originado na Espanha), Stoppt Leihmutterschaft(“Pare a Maternidade Sub-rogada”, originado na Áustria) e FINRRAGE — Feminist International Network of Resistance to Reproductive and Genetic Engineering (“Rede Internacional Feminista de Resistência a Engenharia Reprodutiva e Genética”, da Austrália, onde eu sou a Coordenadora), eu acredito fortemente que a sub-rogação e doação de óvulos nunca poderão ser éticas ou bem reguladas: as leis sempre oferecerão brechas e o lobby bem estabelecido de advogados pró-“barriga de aluguel” iria garantir que a indústria prosperasse independentemente. O que nós queremos é abolir a sub-rogação globalmente. Países como a Índia, Tailândia, Nepal e Camboja já proibiram a prática, enquanto nunca tenha sido permitida na França, Suíça, Espanha e Alemanha (Austrália, Suécia, Áustria, Bélgica e Reino Unido só permitem a chamada sub-rogação altruísta) .

Para atingir este objetivo, precisamos reduzir a demanda. Precisamos deixar absolutamente claro que ninguém tem o direito de criar uma criança às custas da sub-rogada e da “doadora” de óvulos que são prejudicadas e exploradas no processo. Existem muitas outras maneiras de ter crianças na vida de alguém. Por exemplo, no estádio de Victoria, na Austrália, o programa Cuidado Permanente é uma dessas vias (no Brasil temos o Programa Família Acolhedora). Tornar-se um elemento regular na vida dos filhos dos amigos e familiares é outro caminho gratificante. Tal amor é tão profundo e tão real quanto ter metade de seus genes em uma criança cuja gestação e nascimento foi uma violação dos direitos humanos, resultando em um imenso trauma para as mães sub-rogadas.

Por Drª Renate Klein — traduzido do Right Now – Matéria de Fevereiro de 2019

Drª Renate Klein é bióloga, cientista social e ativista de saúde feminina há anos, co-fundadora da editora feminista independente Spinifex Press, autora do livro Surrogacy: A Human Rights Violation (Sub-rogação: Uma violação dos direitos humanos) e uma das editoras do livro Broken Bonds: Surrogate Mothers Speak Out (“Ligações quebradas: As Mães Revelam”)