Trabalho “de homem” é, na verdade, trabalho valorizado

E trabalho valorizado é, por sua vez, trabalho de homem

Fique com essa: não existe nenhuma atividade humana que seja inerentemente masculina ou feminina. E para constatar isso basta que se tenha memória.

Memória é justamente o que o patriarcado, a supremacia branca, o imperialismo e o capitalismo nos expropria. Não conhecemos nossa história, nosso passado. Nosso processo de fortalecimento enquanto classe é tão tortuoso justamente porque precisamos ficar resgatando personagens históricos, precisamos reescrever nossa história, precisamos corrigir o que foi contado sobre nós.

Toda profissão que já foi considerada “do futuro” já foi tida, em algum momento, como algo “de homens”. Na verdade, toda profissionalização de qualquer atividade é algo de homens. Mas vamos por passos.

Vou ilustrar com um exemplo bem cotidiano.

Pegue as profissões, hoje, relacionadas à tecnologia. À computação, à programação. A discrepância entre sexos tanto nas universidades quanto no mercado de trabalho é muito alta. Existem poucas mulheres estudando, e existem poucas mulheres programando. O que é curioso, visto que a responsável por inventar o primeiro computador foi uma mulher, Ada Lovelace. E a linguagem de programação mais largamente usada pela primeira vez, a COBOL, também foi criada sob o comando de uma mulher, Grace Hopper.

As mulheres estiveram no coração do surgimento das ciências da computação. Nos anos 50, acredite ou não, a programação era vista como uma carreira “feminina”, porque envolve muita lógica, planejamento e organização. “É como organizar um jantar”, disse Grace Hopper à revista Cosmopolitan em 1967. As coisas começaram a mudar quando — obviamente — essa atividade começou a ser bem remunerada. Daí a programação começou a ser menos como “organizar um jantar” e mais como “jogar xadrez”. Homens começaram a se organizar para se contratar mais entre si. As propagandas de computadores e de cursos começaram a ser mais voltadas para audiências masculinas, e começaram a retratar mais homens. O estereótipo do nerd reclusivo incompreendido gamer geek começou a circular, e a ter em figuras como Bill Gates e Steve Jobs suas histórias de sucesso, nos anos 80 e 90.

Nos anos 40 e 50, entre 30 e 50% das mulheres (nos EUA) estavam em carreiras de ciências, tecnologia, engenharia ou matemática (abreviadas para STEM, em inglês). Em 1986, em torno de 37% das estudantes universitárias de engenharia de computação eram mulheres. Hoje em dia, no entanto, apenas 6,7% das mulheres se formam em alguma das áreas de STEM, comparadas com 17% de homens.

Mulheres têm menos aptidão para a computação?

A história do desenvolvimento da indústria cinematográfica também é recheada de mulheres. Hoje, se em Hollywood são pouquíssimas as roteiristas e editoras de sucesso — porque, obviamente, trata-se de uma carreira de prestígio — , no início (no início mesmo, lá nos anos 10/20 do século passado), era uma ocupação atrativa para mulheres precisamente porque havia espaço, já que ninguém levava a indústria muito a sério. Use o tico e o teco: o cinema literalmente acabara de ser inventado. As mulheres ocuparam essa indústria porque viram no cinema a possibilidade de produzir algo novo a partir de suas próprias perspectivas e narrativas; não havia manuais, não havia ninguém lhes dizendo o que fazer. Só que, conforme a indústria foi desenvolvendo — principalmente com a revolução do som — as mulheres foram empurradas cada vez mais para baixo na hierarquia de produção.

Mulheres têm menos aptidão para escrever roteiros? Para dirigir filmes? Para editar? Para criar?

A história da profissionalização da medicina e das ciências naturais também é historicamente compatível com — você adivinhou — a inquisição. Feministas antes de mim já disseram, e eu reforço: nós costumamos falar da inquisição como se tivesse acontecido na Idade Média e como se tivesse visado mulheres que praticavam algum tipo de maldade ou magia negra. Essa concepção é errada (e não por acaso). Inquisições aconteciam desde o final da baixa idade média, é verdade, mas sua grande maioria aconteceu na Idade Moderna. Na época do Renascimento, do Iluminismo, os séculos das Luzes. A ciência e a medicina nasceram da expropriação e da apropriação patriarcal do conhecimento secular, milenar, tradicional, de mulheres curandeiras, parteiras, agricultoras.

O fato de existirem mais ou menos mulheres do que homens em determinadas atividades, e o fato de existir diferença na remuneração, não é porque homens e mulheres executam, por serem homens ou mulheres, determinadas atividades melhor ou pior. É porque, historicamente, mulheres sistematicamente excluídas das atividades mais bem remuneradas. São pouquíssimas as que têm acesso e oportunidade a essas atividades.

É bastante óbvio, se você pensar. Olhe pra sua infância. Nas propagandas de quais brinquedos você se via representada? E na televisão, você via meninas e adolescentes fazendo e falando sobre o quê?

Se você nunca ouve que computação também é pra meninas — pelo contrário, se você cresce ouvindo que computadores, e jogos, e videogame, e jogos de tabuleiro, e RPG são coisas de menino — , quão disposta você vai estar a conhecer esse universo?

Conheça sua história. Conheça nossa história. O patriarcado já expropriou nossa memória. Não precisa expropriar nosso futuro.

Referências

Donna Casella. Shaping the Craft of Screenwriting: Women Screen Writers in Silent Era Hollywood. Women Film Pioneers Project.

New Visions. Women pioneered computer programming. Then men took their industry over. Revista Timeline.

Silvia Federici. Calibã e a Bruxa.