Passado e presente do Movimento de Libertação de Mulheres
Quando vi a chamada para envio de trabalhos desta conferência, eu nem consegui acreditar no que estava lendo.
Tinha as palavras: “libertação das mulheres”, “final da década de 1960 e início da década de 1970”, “revolucionário”… tudo no mesmo título — e ativistas não-acadêmicas foram até convidadas a enviar propostas.
“Que corajoso!”, pensei. Nos últimos anos, a maioria da academia, com algumas exceções, parece ter esquecido tudo sobre o Movimento de Libertação das Mulheres. Suas raízes radicais na década de 1960 foram muitas vezes ignoradas e são chamadas de “um movimento dos anos 70”.
Por um lado, dói ouvir o trabalho da sua vida ser chamado apenas de “um MOMENTO revolucionário” — mas é verdade. Embora essa enorme onda que criamos ainda esteja a se movimentar hoje em certa medida, ela foi amplamente desbotada. No entanto, toda mulher nesta conferência que trabalha nos Estudos de Mulheres ou em áreas afins — ou que se pretende afim — deve seu trabalho a esse “momento revolucionário”.
A parte importante da década de 1960 — que fez desses anos revolucionários — não era “sexo, drogas e rock’n’roll”, como muitos afirmam. O que os tornou revolucionários foi ESTUDO, LUTA e ORGANIZAÇÃO. Em todos os movimentos, incluindo a libertação das mulheres, havia um núcleo considerável para mudar as relações de poder, não apenas mudar a nós mesmas ou uma parte da cultura ou para nos divertir.
O fato de ter sido apenas um “momento” deveu-se em parte a nossos próprios erros — um grande tópico para outra conferência — e em parte porque aqueles que não queriam que tivéssemos sucesso eram mais fortes e mais bem organizados, e, é claro, muito mais bem financiados do que nós.
Quando nos tornamos bem-sucedidas o bastante para que os poderes existentes começassem a nos ver como uma ameaça, eles vieram atrás de nós. Não com armas e sentenças de prisão, como em outros movimentos, mas com palavras e ideias bem financiadas para inundar o sucesso do princípio do movimento de libertação das mulheres. Nós, da parte “estudar, lutar e organizar”, nos anos 60, lutamos pela verdade, encarando a realidade de frente e “dizendo as coisas como elas são” em linguagem clara. O alavancar de consciências, a conscientização, foi desenvolvido como uma ferramenta organizadora para entender e compreender a realidade de nossas vidas de maneira coletiva. E era para todas as mulheres: você não precisava de uma faculdade, educação formal ou mesmo um diploma do ensino médio para participar.
As palavras — os termos que usávamos — faziam parte da luta revolucionária. Muitas vezes, elas tinham vínculos com outras lutas. Olhar para a nossa linguagem revela de onde viemos e nossos objetivos. Sem dúvida, às vezes, são necessários novos termos, mas devemos estar alertas e perguntar: “Esse novo termo é realmente melhor?”, “Isso nos afasta da nossa história?”, “O que está sendo evitado ao não usar o termo antigo?”. Se compararmos as demandas apaixonadas e estimulantes do final dos anos 60 e início dos anos 70 com o que passa como feminismo hoje, vemos grandes mudanças na estratégia e nos objetivos. O grito robusto para que as mulheres se unissem pelo poder organizado para derrotar a supremacia masculina praticamente desapareceu.
Matar palavras revolucionárias é uma coisa séria.
O processo de frear o espectro assustador de mulheres revoltadas se insurgindo e fazendo grandes demandas por grandes mudanças se reflete no desaparecimento gradual de nosso próprio nome: Movimento de Libertação das mulheres.
A LIBERTAÇÃO foi a primeira a sair. Foi uma “castração” parcial no começo, quando nos vimos encurtadas para “lib das mulheres” e “libt das mulheres”. Em seguida, veio o “Movimento de Mulheres”, que parecia muito menos ameaçador que a libertação — e era. Essa palavra, “libertação”, era radical demais para o financiamento acadêmico e das fundações, de modo que algumas mulheres se tornaram ferramentas na erradicação do mesmo.
MOVIMENTO foi a próximo palavra. Um movimento, neste contexto, é uma classe de pessoas em movimento. O Movimento de Libertação das Mulheres era a massa de mulheres em movimento que buscavam poder coletivo para acabar com nosso status de segundo sexo. Havia muitos artigos escritos por ativistas do Movimento de Libertação da Mulher falando sobre poder para mulheres, até mesmo um livro chamado “Woman Power” (Poder Feminino) de Celestine Ware — ah, isso mesmo… ela era uma mulher negra e todas sabemos que nenhuma mulher negra se considerava parte do chamado “Movimento de Libertação das Mulheres Brancas” — porque as historiadoras de mulheres nos disseram isso!
Então, o que mais os poderes fazem — aqueles que querem nos conter? Primeiro, eles nos dizem que o poder é algo impróprio para as mulheres buscarem. O poder é uma coisa desagradável que só deve ser procurada pelos homens. Em seguida, somos instruídas a buscar o empoderamento pessoal — não o poder das mulheres que se unem como um sindicato para forçar mudanças sociais — mas a buscar “agência”, mais opções, para mulheres individuais.
Se toda mulher apenas tivesse opções o bastante e “entrasse”** da maneira certa, seus sonhos se tornariam realidade, mesmo que essas escolhas não fossem boas o suficiente. Livros e artigos de revistas instando as mulheres ao “auto-empoderamento” substituíram os primeiros folhetos feministas “estridentes” contra a supremacia masculina. Depois veio o feminismo da “Terceira Onda” cheio de mais do mesmo — “empoderamento”, “auto-expressão” e buscando “espaços seguros” — não a mudança do mundo. O feminismo se tornou o que qualquer mulher disser que é. Todas, de Sarah Palin a Lady Gaga, poderiam se chamar feministas e quem poderia negar isso?
Agora estamos a meio do apagamento até da palavra MULHERES, logo não restará nada do Movimento de Libertação das Mulheres. A existência de mulheres como uma classe sexual oprimida está sendo desafiada e dominada pelo “gênero”. Se foi assim que Simone de Beauvoir falou sobre isso quando escreveu sobre como as mulheres são feitas, não nascem, poderíamos receber de braços abertos. Mas, na teoria de gênero, as mulheres não são mais consideradas um sexo oprimido pelo outro sexo. Existimos como um gênero “fluido”, não como um sexo. Como gênero, todos podem ignorar a classe sexual e brincar com sua “apresentação” para se encaixarem. Enquanto isso, as categorias de homens e mulheres podem ser tiradas do caminho sem lidar com as raízes inconvenientes da opressão feminina.
Podemos eliminar “o binário” de duas maneiras: acabar com a supremacia masculina e, portanto, a opressão das mulheres, ou eliminar as mulheres substituindo o gênero.
Em nossos campi, o que começou como Estudos das Mulheres ou Estudos Feministas — inspirado nos Estudos dos Negros e pelo qual os revolucionários do “Momento Revolucionário” lutaram com afinco — agora correm o risco de desaparecer nos Estudos amorfos de Gênero ou Sexualidade. Os Estudos da Mulher continham grande parte do conteúdo da Libertação das Mulheres no início. Talvez se tivessem intitulado de “Estudos da Libertação das Mulheres” — como deveriam ter nomeado, considerando de onde veio esse programa acadêmico –, isso teria ajudado a mantê-las no caminho certo. Todas as mulheres precisam de “uma bolsa própria”, como dizia Susan B. Anthony, mas precisamos de muito mais.
De alguma forma, muitas pessoas, incluindo aquelas que se dizem feministas, parecem esquecer que as mulheres são a classe reprodutiva — a classe que carrega e dá à luz a próxima geração da raça humana — algo de que toda a sociedade se beneficia. Como as raízes de nossa opressão estão nessa capacidade reprodutiva feminina, isso é algo perigoso de se ignorar. É necessário nos unir e lutar para nos proteger da exploração como procriadoras de bebês do mundo.
Precisamos que os homens intensifiquem e compartilhem os cuidados com as crianças e as tarefas domésticas, e precisamos que nosso governo forneça assistência infantil gratuita 24 horas, bem como jardins de infância. Precisamos de licença parental paga razoável e licença de assistência ao idoso. Precisamos compartilhar — com homens e a sociedade — o fardo que recai sobre as mulheres, porque ainda somos relegadas como cuidadoras das crianças, idosos e doentes. Algumas mulheres conseguiram escapar desse fardo, mas geralmente é porque elas podem se dar ao luxo de contratar outra mulher, geralmente uma mulher racializada ou imigrante, para que façam isso por elas. Até mesmo muitas mulheres negras ricas têm criadas. Precisamos de igualdade, se tivermos — ou aspiramos a ter — filhos ou não. Há muitas necessidades que devem ser atendidas para que a libertação das mulheres seja realizada, especialmente para aquelas que desejam tanto a libertação E os filhos. Não devemos ter que escolher entre trabalhar e ter um filho ou tentar fazer tudo ou impingir a outra mulher. Infelizmente, essas demandas não estão mais à frente e no centro, como estavam no momento revolucionário, exceto em algumas organizações individuais. Talvez temos tido que gastar tanto tempo tentando não engravidar que esquecemos que às vezes queremos ser mães.
Existem muitos outros termos que foram substituídos que mostram a mudança de objetivos e estratégia. Eu só tenho tempo para entrar em alguns deles, mas tenho um folheto aqui com uma lista mais longa. Tenho certeza que vocês podem adicionar ainda outros mais. Vamos falar sobre o aborto, agora conhecido como “escolha”.
O caso Roe V. Wade foi proferido pela Suprema Corte para aplacar um movimento alto e violento exigindo “aborto gratuito sob demanda” e “revogar todas as leis de aborto”. A aplacação praticamente funcionou. Com Roe, grande parte do Movimento de Libertação das Mulheres declarou que os direitos ao aborto venceram e seguiram em frente, deixando para trás mulheres pobres, mulheres rurais, aquelas na chamada “zona de passagem” e outras sem acesso fácil ao aborto. Não terminamos a batalha nessas áreas, e agora esses são os lugares onde as forças antiaborto têm uma forte presença. Para nosso azar, Roe não era o direito de todas as mulheres ao aborto, nem revogava todas as leis de aborto, mas sim o direito à privacidade. Uma vez que o poderoso movimento dos direitos ao aborto se abandonou à estratégia mal direcionada de “pró-escolha”, a palavra “aborto”, usada pelo nosso lado, estava praticamente fora do baralho, dificultando a exigência do aborto mais uma vez.
Alguns outros termos:
“Mulheres agredidas” ou “violência contra mulheres” tornaram-se “violência doméstica” ou “abuso doméstico”, tirando a ênfase do fato de que quase todos os agressores são homens. Isso atrapalha soluções eficazes. O estupro tornou-se “sexo não consensual”. Para ver o que há de errado nisso, imagine-se gritando “Socorro! Estou fazendo sexo não consensual” em vez de “Socorro! Estou sendo estuprada”. A palavra “estupro” tem uma história.
Em muitos casos, o aborto, as mulheres agredidas e as trabalhadoras dos abrigos de estupro abrandaram suas palavras e se divorciaram do movimento de libertação das mulheres por causa de sua necessidade de financiamento. Esses centros devem ser financiados pelos contribuintes através do governo, mas na maioria das vezes não o são. A maioria é financiada por Fundações. As fundações são uma ferramenta financeira para que as pessoas ricas evitem pagar impostos sobre seus lucros excedentes e melhorem sua imagem enquanto promovem seus interesses. Eles devolvem alguns centavos do que já roubaram de trabalhadores e consumidores.
No capitalismo moderno, tudo está para venda e exploração — incluindo mulheres e feminismo. O dinheiro da fundação desempenhou um papel enorme na difamação do feminismo radical. Grandes fundações financiam fundações menores. Por exemplo, a Ford, Rockefeller e outras grandes fundações financiam a Fundação Ms. ou a Feminist Majority Foundation, que por sua vez distribuem os fundos para grupos que seguem sua linha liberal que realmente não ameaçam o 1%. O financiamento corporativo de gigantes financeiros como Goldman Sachs e o Bank of America também colocaram seus dedos no bolo feminista. Você pode descobrir isso com uma pesquisada no Google.
Nem as fundações nem o governo financiarão projetos ou organizações revolucionárias; portanto, esses projetos são diluídos, tanto no nome quanto na prática. É um dilema terrível. Os grupos precisam de dinheiro para continuar seu trabalho, mas o trabalho se torna apenas o que as fundações e os ricos aprovam. Pior, esse enfraquecimento acaba afetando até grupos que não recebem os fundos, mas precisam lidar com as consequências anti-radicais. A única alternativa é depender de doações e/ou quotas ou fazer arrecadação de fundos de base. Por mais difícil que seja competir com os grupos financiados por empresas, eu não os consideraria “momentos revolucionários” no futuro, muito menos a verdadeira revolução de que tanto precisamos.
Também devemos encarar o fato de que as universidades não são os viveiros de atividades radicais que eram na década de 1960. Elas também dependem cada vez mais de subsídios corporativos. Sem dúvida, isso tem muito a ver com a austeridade imposta ao financiamento da educação e à enorme dívida estudantil, mas não vai melhorar até que nós a melhoremos. A própria academia contribuiu muito para substituir a linguagem da luta pela linguagem elitista e muitas vezes inacessível da academia, como “pós-modernismo”, “binário”, “agência”, “desconstruir”, “problematizar” e assim por diante. Nem as palavras nem os conceitos têm muito significado para a vida real da maioria das mulheres. Servem apenas para fazer com que os alunos se sintam estúpidos.
O próprio Movimento de Libertação das Mulheres não é inocente em todo esse retrocesso. Os fios do auto-empoderamento e do individualismo, da divisão e da desunião estavam no Movimento desde o início. Havia mulheres em grupos de conscientização, por exemplo, que resistiam a tentativas de tirar conclusões, fazer julgamentos e tomar posições. O precursor do “auto-empoderamento” era o esforço para ser a mítica “mulher liberada”.
É crucial estudar a reação de contra-ataque e como ela funciona para que possamos nos defender e não repetir os erros anteriores.
Tornar o “momento revolucionário” mais do que apenas um “MOMENTO” exigirá menos “sexo, drogas e rock & roll” e muito mais “estudo, luta e organização”.
Apresentação de Carol Hanisch
Tradução: Aline Rossi | Feminismo Com Classe