Estão cada vez mais comuns as expectativas de que mulheres aceitem punições corporais em suas vidas sexuais, graças à normalização da pornografia sadomasoquista.
Antigamente reservado para sites “fetichistas”, a popularidade e a tradicionalização do hardcore, punições corporais e pornografia sadomasoquista está crescendo. Uma das atrizes pornográficas mais conhecidas do mundo é Sasha Grey, cujos filmes, somente no Pornhub, possuem mais de 360 milhões de visualizações. Grey, que já se aposentou da indústria, é protagonista em inúmeros vídeos, nos quais ela é objeto de práticas sádicas, dolorosas e degradantes, como lamber privadas, e ser penetrada por vários homens de uma vez — sofrendo humilhações verbais, imobilizada por amarrações de bondage. Outras atriz pornô, Charlotte Sartre, conhecida por filmes pornográficos envolvendo dupla e tripla penetração vaginal ou anal, gagging (prática em que a mulher é amordaçada com uma bola obstruindo sua boca), bondage (práticas de amarração), e cenas com o ato de urinar, tem 260 mil seguidores em suas redes sociais, e seus vídeos têm mais de 40 milhões de visualizações no Pornhub.
Esses exemplos não são isolados — é cada vez mais comum as expectativas de que mulheres participem de punições corporais em suas vidas sexuais, perpetuando a normalização de práticas sadomasoquistas mostradas na pornografia. Se o que é popular na pornografia é, de alguma forma, um indicador, o sadomasoquismo vai moldar em massa a vida sexual de mulheres e homens, assim como as expectativas sociais do que deveria ser a sexualidade da mulher. Já estamos percebendo isso, com a crescente onda do “breath play”– um ato sexual em que o parceiro sexual — normalmente uma mulher — é esganado. Em uma reportagem investigativa para a Flare, Briony Smith concluiu que “sufocar, ao que parece, se tornou a nova terceira base”.
Beleza e dor femininas começaram a emergir, e a idealização da mulher perfeita como aquela que tolera dor e humilhação infinitas está se fortalecendo.
Em livro publicado em 1974 por Andrea Dworking, Woman Hating (Odiando a Mulher, em tradução livre), a autora argumenta que suportar dores é um elemento integral na formação das mulheres, e que muitas práticas normalizadas na eterna busca das mulheres para se manterem desejadas e femininas servem uma função — a condição das meninas aceitarem que a dor é um aspecto inescapável de suas experiências na vida:
“Pinçar as sobrancelhas, depilar as axilas, usar cintas, aprender a andar em sapatos de salto-alto, fazer cirurgias plásticas para ‘consertar’ o nariz, alisar ou encaracolar os cabelos — essas coisas doem. A dor, claro, ensina uma importante lição: nenhum preço é alto demais, nenhum processo é tão repulsivo, nenhuma cirurgia é tão dolorosa para que a mulher seja linda.”
Dworking ainda diz que condicionar mulheres a aceitar dor em suas vidas sexuais é necessário para prepara-las para seus futuros, em que são presumidos os cuidados com crianças e a servidão ao marido. Com o intuito de manter o status quo na nossa sociedade patriarcal, meninas aprendem que suas existências serão dolorosas. Ao convencer mulheres e meninas de que suas pernas, regiões genitais e axilas não devem ter pelos, que elas devem tolerar práticas desconfortáveis e até vestimentas dolorosas com o intuito de se manterem desejáveis, e que elas devem se manter constantemente atentas a como seus corpos são percebidos, nós estamos ensinando a elas que devem abrir mão de seu bem-estar para agradar homens.
Esse treinamento em tolerar e se conformar com a dor socializa as meninas — que serão mulheres — a enxergar o masoquismo como parte essencial de suas existências.
Mulheres jovens são submetidas a práticas de beleza dolorosas há décadas, o que as fazem aceitar a dor como efeito colateral em suas buscas para serem desejáveis. Quando a dor passa a ser um obstáculo a ser rompido para mulheres serem sexualmente desejáveis, e ser desejada é apresentado como o maior do objetivo da mulher jovem, mulheres aprendem que devem tolerar dor para aumentar seu valor como commodities sexuais.
A popularização da pornografia tornou a objetificação sexual das mulheres algo mais prevalente, auxiliado até certo ponto por uma crescente consciência do desejo sexual feminino. Sexo deixou de ser algo meramente tolerado por mulheres, e se tornou algo de que elas devem desfrutar. Essa mudança na qual a sexualidade da mulher é vista também significa que qualquer vergonha ou culpa sentida pela objetificação sexual de mulheres deve ser deixada de lado, já que essas mulheres aventureiras sexualmente estão atualmente potencialmente internalizando a própria objetificação.
Já que a pornografia mudou do padrão softcore para o hardcore, houveram mudanças nas expectativas do comportamento sexual das mulheres. A dinâmica sexual ideal não gira mais em torno de um corpo feminino disposto, e sim de um corpo feminino ansioso — até o ponto de ser sexualmente agressivo. De repente, o ideal se tornou a mulher ninfomaníaca — constantemente numa espiral de excitação sexual e implorando para ser preenchida por homens que estão ao seu redor. Mulheres não mais somente objetos sexuais, mas sujeitos sexuais também. Os supostos desejos sexuais insaciáveis das mulheres modernas, no entanto, só são aceitos até o momento em que os homens envolvidos se sintam satisfeitos — suas ansiedades de se engajarem em práticas sexuais são louvadas, mas estabelecer limites e revogar consentimento quando assim sentirem vontade é desencorajado.
Nessa última década vem acontecendo uma virada, de aventureiras sexuais para masoquistas sem limites — hoje, a mulher ideal, influenciada pela popularização da pornografia, implora para ser abatida, levar uma surra e ser cuspida.
Se na sociedade atual a mulher ideal é a masoquista, como isso pode impactar mulheres numa escala maior? Socializar meninas e mulheres a performarem o papel de submissas masoquistas pode ser considerado como uma forma de opressão psicológica, espelhado na opressão estrutural do patriarcado sobre o sexo feminino na sociedade.
Em seu livro publicado em 1990, Femininity and Domination (Feminilidade e Dominação, em tradução livre), Sandra Lee Bartky descreve a opressão psicológica como “um duro domínio exercido em sua auto-estima” — que opera quebrando o espírito das oprimidas, desempoderando-as e tornando-as mais obedientes ao grupo dominante. Esse tipo de opressão é algo que mulheres sofrem de maneira muito consistente nas regras do patriarcado — mulheres são constantemente lembradas de sua aparente inferioridade, porque enquanto mulheres acreditarem que são inferiores, revoltas são improváveis. Se aqueles que estão no poder conseguem convencer a população oprimida de que sua posição inferior é natural, essa população se torna vulnerável para duvidar de si mesma, e como resultado, se torna mais inclinável para aceitar ser passível. Se nós entendermos os abusos físicos e emocionais que vemos no sadomasoquismo são opressivos, fica claro que mulheres estão sendo preparadas não apenas para aceitar a própria opressão, mas também para gostar dela.
Quando os espíritos das mulheres estiverem quebrados ao ponto de elas pedirem para serem agredidas pelos homens que as amam, elas estão vulneráveis a serem coagidas de forma que talvez não estivessem antes.
A opressão psicológica das mulheres na nossa sociedade pornificada é fortemente ligada aos papéis sexuais, beneficiando aqueles que estão no poder. Por um lado, a opressão psicológica promove mulheres submissas e masoquistas, que estão suscetíveis a incorporarem comportamentos sexuais potencialmente dolorosos, incluindo participar da pornografia e se curvar a demandas sexuais sádicas de seus parceiros sexuais masculinos, uma vez que homens são os principais consumidores de pornografia e também os que mais fantasiam em ser dominadores. Ao mesmo tempo, essa opressão promove a privação de direitos — e, consequentemente o silenciamento — de mulheres, minimizando o risco delas se unirem e lutarem: mulheres submissas oferecem menos riscos ao status quo.
Mulheres estão sendo condicionadas a internalizar o masoquismo como algo inerente à libertação da sexualidade feminina e como condição para serem desejadas. Quando consideramos que vivemos na cultura do estupro do patriarcado — uma que consistentemente silencia e marginaliza mulheres, uma que derruba verdades inconvenientes proferidas por mulheres, em que mulheres ao redor do mundo são espancadas e estupradas em todos os momentos do dia, precisamos nos perguntar: quem se beneficia quando mulheres se submetem ao próprio abuso?
Somente no Reino Unido, We Can’t Consent To This (Não Podemos Consentir Isso, em tradução livre) vêm, ao longo do tempo, documentando a morte de 58 mulheres cujas causas de morte foram um “jogo sexual que deu errado”. Nossa obsessão cultural de mulheres sentindo dor — com mulheres que sorriem com os dentes cerrados enquanto mãos envolta de suas gargantas restringem suas respirações — está matando-as.
Convencer mulheres de que sua liberdade sexual pode ser encontrada nos padrões da dor infligida a elas pode ser um dos truques mais devastadores do patriarcado.
Jéssica Masterson é escritora, mãe solteira, e estudante PhD na Universidade de Birmingham. Os focos de suas pesquisas são ética sexual e sadomasoquismo. Sua conta no Twitter é @moongirlmusing
Texto original:
Obrigada pela tradução. ❤️
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