O feminismo nos convida não só a repensar como nos relacionamos coletivamente em sociedade, com as expectativas sociais e com nós mesmas, mas também com outras pessoas em contextos micro, principalmente outras mulheres. Cada pequena interação entre duas pessoas é um reflexo em menor escala das relações sociais gerais. É preciso que nós, enquanto feministas, portanto, analisemos nossas relações, principalmente as afetivas.
1. Destrua por completo seus sentimentos de rivalidade com outras mulheres.
Feminismo é, acima de tudo, sobre nós enquanto classe. Diversas teóricas, desde as anarquistas e comunistas, passando (até!) pelas liberais, há mais de cem anos, já teorizavam sobre por que as mulheres são tão desunidas, sobre os motivos de não nos reconhecermos enquanto grupo (ou classe) social. Por que temos tanta dificuldade de nos reconhecermos na vivência, nas angústias, nas atitudes e nas reações das outras mulheres?
A resposta dada por Beauvoir e, depois, por Gerda Lerner é que isso se deu por uma questão de sobrevivência. A mulher precisou abaixar a cabeça e se deixar oprimir, em algum momento, porque percebeu que isso era necessário à sua sobrevivência. Isso é bem perceptível até hoje, resguardadas as devidas proporções; a mulher que se mantém dentro dos padrões patriarcais tem uma ilusão de segurança, de proteção, porque não está indo contra o que querem os homens. (Infelizmente, nós sabemos que é, realmente, só uma ilusão.)
É preciso lembrar, portanto, que nós somos socializadas para nos odiarmos e para nos encararmos umas às outras como inimigas — ou, no mínimo, como seres em que não se pode confiar. Crescemos ouvindo que não existe amizade verdadeira entre mulheres, só entre homens; crescemos ouvindo que é melhor ter amigos homens, porque eles são mais simples, menos instáveis e mais leais; crescemos ouvindo que não podemos confiar em outras mulheres, que elas são seres traidores e egoístas; somos ensinadas a odiar outras mulheres ao mesmo tempo em que somos preparadas para ser uma. Nosso processo de socialização nos aliena de nossa própria condição — e é essa alienação que impede que as mulheres se unam. Porque, historicamente, mulheres unidas são a maior potência revolucionária que existe. A irmandade entre mulheres é o laço mais sincero e poderoso que você vai estabelecer na sua vida.
Então, pratique: diga para si mesma que, a partir de hoje, a partir de agora, você não vai mais automaticamente desconfiar de mulheres, duvidar da qualidade do trabalho de mulheres, comparar mulheres com homens. A partir de agora, você não vai mais partir do pressuposto de que aquela mulher é sua inimiga ou sua competidora; você vai ficar feliz pelos sucessos de outras mulheres, você vai ficar feliz de conhecer mulheres maravilhosas, você vai celebrar as amigas que tem, você vai encorajá-las, você vai alimentar sua autoestima. Pare de ajudar a espalhar boatos maliciosos, por mais que você tenha motivos para não gostar dela. Não alimente o ódio gratuito por outras mulheres. Controle sua inveja, analise de onde ela vem. Não crie nem alimente fofocas — se for pra fofocar, que seja sobre uma coisa boa.
Acima de tudo, comece a enxergar mulheres como seres humanos — que também foram socializados para odiar as outras e elas mesmas. Entenda quanta solidão existe dentro de cada uma de nós. Entenda que não existe “as outras”; nós somos também “as outras”.
2. Enxergue a mulher que existe por trás da função de “mãe”.
Isso inclui a sua.
Não vou me alongar muito nessa seção porque você pode ler mais sobre isso aqui, mas, em resumo, é crucial que toda mulher que se considere feminista (ou que queira colocar seu feminismo em prática) analise e repense sua própria relação com sua mãe.
Mães acumulam muitos graus de desumanização. A mulher, depois de parir, deixa de ser um indivíduo e passa a ser sua função; ela não é mais um ser independente, com vida, quereres e gostos próprios; ela passa a ser a extensão originária de sua prole.
Pense: você sabe quem é sua mãe para além de ela ser… sua mãe? Você sabe do que ela gosta, do que fazia antes de você nascer, dos planos dela, do que ela conseguiu fazer e do que ela não conseguiu? Você sabe falar sobre ela, sobre características dela, que não estejam associadas ao papel dela de “mãe” na sua vida? Você a enxerga como um ser à parte de você, que não está ali somente para … ser sua mãe?
As relações entre mães e filhas são muito complexas e muito carregadas de diversos sentimentos fortes e conflitantes. Ao mesmo tempo em que mães amam, elas também participam ativamente do nosso processo de socialização, principalmente na nossa infância. Muitas vezes com o intuito de protegê-las, as mães reproduzem com suas filhas o que foi feito com elas em primeiro lugar.
É realmente muito comum botar a culpa na mãe pra qualquer coisa, qualquer trauma, qualquer dificuldade, principalmente na adolescência. Mas perceba o quanto de misoginia há nisso; perceba o quanto isso, por mais que às vezes seja verdade, é culpa, anteriormente, de uma sociedade que coloca sobre as mulheres a responsabilidade completa sobre a criação, a educação e a socialização de cada ser humano. É claro que a culpa vai ser da mãe se só ela sempre esteve lá. É claro que a culpa vai ser da mãe se só ela tomava as decisões, se o pai nunca queria assumir a responsabilidade pela consequência das decisões, se ela sempre esteve sozinha. Mães não podem sequer pedir ajuda, porque pedir ajuda é sinal de que ela falhou como mãe, afinal, mães devem dar conta de tudo, isso é que é ser mãe. É claro que a mãe vai ser “a chata” e o pai vai ser “o legal” se é só a mãe que se responsabiliza pelas decisões impopulares.
Eu não estou com isso querendo “desculpar” essas mulheres por seus erros. Porque elas também erram. Só que nós não consideramos mães como seres humanos, falhos e falíveis, em permanente construção; não.
Faça exercício, então. Esforce-se pra enxergar a mulher — o ser humano, a pessoa — dentro da sua mãe.
3. Pare de fazer sua vida girar em torno de homens.
Esse item é mais voltado para mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com homens, mas também pode ser útil para lésbicas e bissexuais ginocentradas, já que todas sofremos os efeitos da heterossexualidade compulsória (que se manifesta em todas as áreas da nossa vida, não só nos relacionamentos sexuais).
Sim, nós somos criadas para moldar nossa vida em torno de homens — de uma maneira ou de outra.
Para mulheres brancas, o ideal último de felicidade ainda é um relacionamento heterossexual estável e com prole; tanto que a sociedade tem “pena” da mulher com seus trinta e poucos anos que “ainda” está solteira e não é mãe. Afinal, como poderia uma mulher ser feliz sem um homem?!
Mulheres negras, por outro lado, comumente convivem desde muito pequenas com a ideia da solidão afetiva: as mulheres ao seu redor muitas vezes não têm companheiros (seja porque foram abandonadas, seja por conta do genocídio generalizado da população negra), mas isso está longe de ser visto como algo “natural” — ainda é como se algo estivesse faltando. Por conta do auto-ódio que muitas pessoas negras têm de si mesmas, é muito raro ainda vermos relacionamentos afrocentrados, e é comum que mulheres negras sejam rejeitadas inclusive por homens negros; então a experiência de solidão e de hipersexualização que mulheres negras vivenciam é muito mais intensa do que a vivenciada por mulheres brancas (somos todas pedaços de carne, mas a carne negra, obviamente, é mais barata). Você pode ler mais sobre isso nesse texto maravilhoso.
Mas, de forma geral, mulheres solteiras são incompletas, e quanto mais avança a idade, mais deprimente é a mulher solteira — porque é óbvio que ela está solteira porque não conseguiu encontrar um homem ou porque nenhum homem a quis; simplesmente não existe a possibilidade de ela estar solteira porque quer.
E como estar com homens é um dos objetivos principais das vidas de mulheres, nós fazemos de tudo para conseguir um: nós mudamos nossa aparência, nossos corpos e nosso rosto; nós gastamos (MUITO) dinheiro com procedimentos estéticos, com produtos, com academia; nós nos privamos de coisas que nos dão prazer; nós modificamos nosso comportamento, nossa voz, nosso andar, nosso falar; nós nos diminuímos para que eles possam brilhar; nós desistimos de insistir no que queremos para agradar; nós fingimos orgasmo e abrimos mão do nosso prazer para não machucar seus frágeis egos; nós engolimos mancadas; nós choramos escondido; nós fingimos que está tudo bem, porque não queremos reclamar, porque não queremos ser a peguete / ficante / contatinho / namorada chata e dramática; nós aceitamos migalhas; nós nos contentamos com migalhas; nós estabelecemos padrões realmente muito baixos do que é ser um companheiro decente e do que é um relacionamento decente; nós convencemos a nós mesmas de que deveríamos estar muito felizes porque, pelo menos, não somos aquela amiga que está solteira.
Os homens sempre dizem isso como o elogio que define, não dizem? Ela é uma Garota Legal. Ser a Garota Legal significa que eu sou uma mulher engraçada, brilhante, gostosa, que adora futebol, poker, piadas sujas e arrotar, que joga videogame, bebe cerveja barata, adora suruba e sexo anal, e engole cachorro-quente e hambúrgueres como se estivesse apresentando a maior suruba culinária do mundo ao mesmo tempo em que, de algum jeito, mantém o manequim 36, porque Garotas Legais são, acima de tudo, gostosas. Gostosas e compreensivas. Garotas Legais nunca ficam bravas; elas só sorriem de uma forma desgostosa e amorosa e deixam que seus homens façam o que quiserem. Vá em frente, cague em mim, eu não ligo, eu sou a Garota Legal. (…) Existem variações de como elas se apresentam, mas, acredite, ele quer a Garota Legal, que é basicamente a garota que gosta de toda porra de coisa que ele gosta e nunca, nunca mesmo, reclama. (Como você sabe que você não é a Garota Legal? Porque ele diz coisas como: “Eu gosto de mulheres fortes”. Se ele disser isso pra você, ele vai, em algum momento, foder outra pessoa. Porque “Eu gosto de mulheres fortes” é o código para “Eu odeio mulheres fortes”.) Gillian Flynn, em Gone Girl. Tradução livre.
Por favor, sabe. Tome tento. Te orienta. Quantas vezes uma amiga já não veio te falar da mais nova mancada do boy lixo dela e você ficou indignadíssima, pensando que ela merece mais é um tapa na testa pra deixar de ser trouxa? Quantas vezes você já não falou pra alguma amiga que ela merece mais e que ela consegue coisa melhor — e que, enquanto não conseguir, tem é que ficar sozinha mesmo? Quantas vezes você já não ajudou uma amiga a enxergar os abusos sofridos num relacionamento?
Qual a dificuldade de aplicar isso na sua própria vida? Por que você não consegue ver em si o valor que vê nas outras?
Tem uma frase do filme As vantagens de ser invisível que me toca muito e que pra mim faz todo o sentido do mundo: nós aceitamos o amor que acreditamos que merecemos. Se você aceita um relacionamento bosta, é porque acha que é isso que você merece.
Quando você começar a se dar valor, vai ser muito difícil, sim. Homens não são ensinados a lidar com rejeição, simplesmente porque aprendem que têm direito a tudo. Porque aprendem que as mulheres existem para lhes servir de todas as formas possíveis.
Então, pratique: viva para você mesma. Viva para seguir seus próprios sonhos e atender às suas próprias expectativas. Você não precisa se podar nem esconder quem você é; se você sente que precisa esconder algo sobre você ou se precisa suavizar qualquer coisa sobre você, então tem alguma coisa errada. Experimente não se importar com o que os homens vão pensar — experimente não se importar se eles vão te achar gostosa ou não. Experimente, ainda, levar sua vida pensando no impacto que suas ações vão ter em outras mulheres.
Obrigada por este texto, querida. Avante! <3
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