(Para uma explicação/definição mais extensa de cultura do estupro, sugiro a leitura desse texto antes)
Neste texto visa-se demonstrar como o tratamento legal dos crimes sexuais, no Brasil, é reflexo do que se convencionou chamar, em teoria feminista, de cultura do estupro. Para isso, primeiro faremos uma reflexão acerca da natureza social do Direito — enquanto institucionalização de um poder masculino— e, depois, apontaremos como alguns dispositivos que apareceram historicamente na legislação penal brasileira refletem esse poder.
É certo que o Direito é a manifestação institucionalizada e normatizada do pensamento e da moralidade da classe dominante de determinada sociedade. Andrea Dworkin e Catharine MacKinnon já descreveram, em diversas obras, como o Direito e outras instituições jurídicas se prestaram, ao longo da história, para afirmar, codificar e institucionalizar a mentalidade patriarcal na sociedade regulada:
MacKinnon explica que o Direito não foi construído conjuntamente entre homens e mulheres; pelo contrário, as mulheres foram (e são) historicamente excluídas desse processo. A consequência lógica de um Direito pensado por homens — e para homens — é a não inclusão de pautas e de referenciais especificamente femininos.
A cultura do estupro é característica do sistema patriarcal. Cultura do estupro é, resumidamente, a banalização — e erotização— da violência contra a mulher, principalmente a violência sexual. Isso tem origem na ideia de que mulheres não são seres humanos (como os homens); são uma classe secundária, inferior, que, portanto, não precisa receber o mesmo tratamento e é rebaixada ao status de coisa, algo que pode ser manejado, trocado, vendido e despejado. Mulheres são coisas, e homens são seus donos por direito.O livre acesso sexual de homens a mulheres é consequência da cultura do estupro.
O Direito, assim, torna-se um locus de reprodução e de imposição da ideologia de seus criadores — os homens. É natural, portanto, que apresente discursos patriarcais; e estranho seria se não o apresentasse. De uma forma ou de outra (explícita ou implicitamente), o Direito tem assegurado a hierarquia entre homens e mulheres e garantido a humanidade de homens em oposição à desumanização de mulheres.
A necessidade de regulação do sexo pelo Direito vem da necessidade masculina de se estabelecer barreiras de propriedade:
Por fim, MacKinnon também entende que o conteúdo de leis que regulam relações sexuais serve a um propósito político claro:
Agora passemos à análise de como todas essas questões têm aparecido, historicamente, na legislação brasileira acerca de crimes sexuais.
A primeira questão que salta aos olhos na tabela é a mudança do objeto jurídico tutelado. De 1830, das primeiras ordenações Filipinas, até 2009, com a reforma do Código Penal, as violências sexuais apareciam em títulos ou capítulos que caracterizavam crimes contra a honra ou contra os costumes. O objeto jurídico tutelado, então, não era a integridade física ou a liberdade sexual da mulher, mas a honra, a moralidade familiar. Também não havia necessariamente preocupação com a repressão a atos que atentassem contra a moralidade social como um todo — se assim fosse, as penas para “ato obsceno” e para “escrito ou objeto obsceno” seriam maiores, mas não ultrapassavam dois anos. A proteção da dignidade social das famílias era travestida de preocupação com a integridade de mulheres.
Somente, então, em 2009, o título VI do Código Penal passou a se chamar “Dos crimes contra a dignidade sexual”, evidenciando, enfim, a mudança do objeto jurídico tutelado. Isso é reflexo da noção de que a mulher era mera moeda de troca entre famílias (por uniões matrimoniais vantajosas, por exemplo), basicamente a propriedade de sua família (mais especificamente, de seu patriarca), e a violação sexual importava porque diminuiria seu valor, já que se exigia que as mulheres se casassem virgens (dentre outros motivos, para assegurar que o noivo seria de fato o patriarca da futura prole, garantindo a permanência dos bens dentro da mesma família) — como Susan Brownmiller escreveu, “um crime cometido contra o corpo [da mulher] se tornava um crime contra a propriedade masculina” (tradução livre) [7]. Se a mulher é reduzida à sua função sexual e/ou reprodutiva, isso é reflexo da cultura do estupro, como explicamos.
Até 2005, o homem estaria livre da punição por diversos crimes sexuais (até então, entendidos como crimes contra os costumes) se ele se casasse com a vítima. O artigo 107 do Código Penal, que prevê causas de extinção da punibilidade, trazia explicitamente em seu inciso VIII que extingue-se a punibilidade “ pelo casamento do agente com a ofendida, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial”. Isso reflete, mais uma vez, que o estupro não era entendido como uma violação do corpo da mulher, mas uma violação de propriedade. Se o homem corrigisse seu erro casando-se com a mulher que ele havia maculado, então estaria livre de punição. Evidencia-se a preocupação não com as integridades física e psicológica da mulher, mas com sua honra ou, ainda, fama — principalmente se a vítima tivesse sido deflorada no estupro (situação diferenciada e especificada nos primeiros Códigos). Não importa, assim, a violação nem a violência em si, mas as consequências sociais para a imagem da vítima e de sua família. Ainda se trata, no limite, de uma questão patrimonial, já que a preocupação era que a imagem da mulher não fosse maculada, porque isso prejudicaria possíveis casamentos.
A reforma de 2005 (lei 11.106/05) revogou esse dispositivo penal; no entanto, ainda permanece no Código Civil (de 2002) o artigo 1.520:
Esse dispositivo foi inserido no Código Civil para que houvesse congruência entre a lei penal e a lei civil, e possibilitava que menores de 16 anos (idade núbil) se casassem nos casos previstos. Depois da reforma de 2005, o casamento não mais extingue a punibilidade, então se pode entender que houve a revogação tácita do trecho “para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal”; mas ele ainda torna possível o casamento caso resulte gravidez. Ou seja: esse dispositivo possibilita que pessoas (na maioria absoluta dos casos, meninas) com menos de 16 anos se casem com homens que as engravidaram — mesmo que essas meninas tenham menos de 14 anos, o que caracterizaria, automaticamente, estupro de vulnerável pela lei penal. A lei civil, então, permite expressamente que uma menor de 14 anos se case com seu estuprador caso resulte gravidez do estupro.
Em termos subjetivos, a honestidade da mulher (sua virgindade, seu status de relacionamento e/ou sua condição de prostituta) interferia na tipificação do crime e, consequentemente, na dosimetria da pena. Na redação original do Código Penal de 1940, por exemplo, a honestidade da mulher era requisito dos tipos penais “posse sexual mediante fraude” e “atentado ao pudor mediante fraude”, e esses dispositivos estiveram presentes em todos os Códigos até, surpreendentemente, a lei 11.106/2005. Na prática, isso implicava uma inversão do ônus da prova, tendo a vítima sua vida investigada para o tribunal descobrir se se tratava de mulher honesta. Novamente temos presente a ideia de que o caráter da vítima influenciava no grau da violência cometida, o que só reforça a ideia de disponibilidade do corpo da mulher dependendo de sua ligação — ou não — com algum patriarca, sendo que a mulher “independente” não seria tão valorosa quanto uma mulher casada ou ainda virgem.
A mulher em hipótese alguma poderia ter agência sexual própria, sequer havendo a possibilidade de ser sujeito ativo no crime de estupro, e o contrário para os homens: não havia a possibilidade legal de o homem figurar como vítima de estupro, uma vez que a conjunção carnal se dava por penetração vaginal, e isso reflete, novamente, fundo de preocupação patrimonial — homens não engravidam, então pouco importa se são ou não sexualmente violentados, uma vez que dessa violência não resultará uma gravidez que poderia trazer consequências para efeitos de sucessão. Este dispositivo esteve em todos os códigos até a reforma de 2009. A consequência lógica de somente o homem poder estuprar é que a mulher só pode ser vítima; somente o homem possuía o poder de estuprar, ou seja, o poder de impor sua vontade, notadamente sexual, sobre outra pessoa.
O estupro, ainda, só se configurava mediante penetração: dispositivo presente em todos os Códigos até a reforma de 2009. Quando não havia penetração vaginal (ou, nos termos legais, “conjunção carnal”), tratava-se de atentado violento ao pudor. Ou seja: novamente, a violência não era praticada contra a mulher, mas contra a sociedade, contra os bons costumes. Somente a conjunção carnal representava ofensa contra a mulher, notoriamente, por conta da possibilidade de gravidez e da geração de um filho bastardo, fora do casamento.
Por fim, uma questão ainda não resolvida formalmente por nosso sistema jurídico é a questão do estupro marital.
Por incrível que pareça, há juristas que defendem que não é possível que o cônjuge figure no pólo ativo do crime de estupro — em outras palavras, não entendem que seja juridicamente possível o marido estuprar sua esposa, pelo fato de, em termos de direito civil, ser considerado dever dos cônjuges a relação sexual (inclusive admitindo-se o divórcio com fundamento na quebra de dever conjugal quando houvesse falta de sexo). Isso reforça explicitamente a ideia de que a mulher é propriedade do homem e deve servir e responder a suas necessidades. Os nossos grandes juristas e intérpretes de código não pouparam palavras sobre o assunto (grifos nossos):
De toda forma, mesmo que se entenda que, sim, o marido pode estuprar a própria esposa, muitas vezes nos esbarramos no problema da própria tipificação penal — ou seja, nas ações que caracterizam crime. Para tipificação do crime de estupro nossa legislação exige a violência ou a grave ameaça. Mas a teoria feminista já demonstrou há décadas que o estupro não ocorre somente quando há sexo forçado: deveria bastar que o sexo não seja consentido. A ausência de negação não implica consentimento; quantas vezes. principalmente dentro de relacionamentos amorosos, afetivos ou sexuais, as mulheres não fazem sexo pelo simples sentimento de obrigação?
Note-se, também, que a redação original do Código Penal de 1940 trazia como causa de aumento de pena a prática de crime por “ascendente, pai adotivo, padrasto, irmão, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima” ou por qualquer agente que tenha qualquer outro título de autoridade sobre ela — curiosamente, omite-se da lista o noivo ou marido da vítima. No entanto, no inciso seguinte, determina-se o aumento de pena “se o agente é casado” — o que significa que a pena seria aumentada se um homem casado estuprasse a esposa de outro homem, mas não a sua:
Essa questão foi resolvida somente em 2005, quando “cônjuge” foi incluído ao rol do inciso II e retirado do inciso III. Desde então, o fato de o estupro ter sido cometido por cônjuge também enseja o aumento da pena.
Por fim, é interessante falar da lei 12.015/18 (sim, desse ano!). Além de inserido o estupro coletivo e o estupro corretivo (!) como qualificadores do crime do estupro, a lei qualificou como crime não só a divulgação e distribuição de cenas de estupro como também a divulgação de “pornografia de vingança” (cenas de sexo gravadas à época com consentimento, mas divulgadas sem o consentimento da vítima) — porque, olhem só!, isso não era crime. A lei inclui também o crime de “importunação sexual”, caracterizado pela prática, contra alguém e sem sua anuência, de “ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro”. Esse dispositivo foi inserido pra abarcar, por exemplo, as situações de assédio sexual em transporte público. Sabem esses casos de homens que ejaculam em mulheres em público? Pois é, não daria pra caracterizá-los como estupro porque não houve “violência” ou “grave ameaça”, não foi praticada por meio de “fraude” e muitas vezes não é feita mediante o constrangimento de alguém (na verdade, na maioria das vezes, a mulher nem percebe o que está acontecendo).
Outra modificação interessante é que a ação penal no caso de crimes contra a dignidade sexual passa a ser pública incondicionada. Traduzindo do juridiquês para o português, isso significa que os crimes contra a dignidade sexual passam a ser considerados de interesse público, não só de interesse da vítima, e o processo pode continuar correndo mesmo que a vítima não queira mais (o que é interessante nos casos em que a vítima deixa de prestar queixa ou desiste do processo por conta de intimidação ou de ameaças).
Essa lei de 2018, pra mim, deixou uma coisa muito clara: não há preocupação com a integridade física, sexual ou psicológica de mulheres. Se houvesse real preocupação em punir estupradores, abusadores e assediadores, a parte do código penal que trata de crimes sexuais já teria sido alterada há muito tempo para prever mais tipos penais.
Deem uma lida na lei de drogas. Especificamente, leiam o artigo 33 da lei de drogas, que é o artigo que tipifica tráfico de drogas. Estão vendo a quantidade de verbos? São 18 verbos — ou seja, 18 ações diferentes que podem caracterizar tráfico de drogas. É feito um esforço HERCÚLEO pra que simplesmente não haja forma de contornar a lei, porque é assim que direito penal funciona: só é crime se está escrito expressamente na lei. Se não está escrito, não é crime e não pode ser punido.
Só que a sociedade nunca se importou muito com a violência sexual. Pra vocês terem uma ideia, com exceção dos crimes de tráfico de pessoas para fins sexuais, nosso código penal traz nove hipóteses de crimes sexuais. Sabe quantas hipóteses de crimes contra o patrimônio são previstas no código? Quase trinta.
Como visto, a legislação brasileira, até muito recentemente, em termos históricos, ainda considerava a mulher, na prática, como propriedade do homem ou de sua família — mesmo que a Constituição os tenha igualado juridicamente — e isso se manifestava de forma bem clara na legislação de crimes sexuais. É seguro dizer que o próprio Direito Penal reverberava, legalmente, a cultura do estupro.
Agora, a prática dos tribunais é outra história…
[1] MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. London : Harvard University Press,1989.
[2] ___________. Feminism in Legal Education. Legal Education Review, vol. 7, 1989.
[3] BUCHWALD, Emilie, ROTH, Martha, FLETCHER, Pamela. Transforming a Rape Culture. Milkweed Editions, 1993. Preâmbulo.
[4] MACKINNON, C., DWORKIN, A. Pornography & Civil Rights — a new day for women’s equality. Minneapolis : Organizing Against Pornography, 1988.
[5] DWORKIN, A. Intercourse. Basic Books, 1987.
[6] MACKINNON, Catharine. Toward a Feminist Theory of the State. London : Harvard University Press,1989.
[7] BROWNMILLER, Susan. Against our will: men, women and rape. New York : Fawcett Columbine, 1975.
[8] NORONHA, E. Magalhães. Direito penal. 26.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v.3, p. 70
[9] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1959. v.8, p. 126