Análise de um fenômeno viral, também na África, com o magistrado Yves Charpenel, presidente da Fundação Scelles, cujo relatório mundial acaba de ser publicado.
Um mapa múndi no qual os continentes são cartografados como um gigantesco código de barras. A capa do quinto relatório mundial sobre a exploração sexual, “Sistema de prostituição: novos desafios, novas respostas”, publicado na terça-feira 4 de junho pela Fundação Scelles, vai direto ao ponto. Uma escolha gráfica que comenta o processo em curso: a aceleração viral da mercantilização dos corpos.
Como esperado, o surgimento das redes sociais nos anos 2010 acelerou a organização da prostituição online local e em grande escala, uma prática que se transforma com a aparição de cada novo aplicativo, site de encontros, ou agência de acompanhantes online. Segundo o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (ONUDC), passam pela Internet dois terços do tráfico humano, que corresponde à terceira fonte de lucro no mundo.
A disputa ideológica que opõe defensores da regulamentação e aqueles que afirmam que “a prostituição não é nem trabalho nem sexo”, nos últimos anos, está no centro das profundas transformações nas sociedades que se digitalizam rapidamente. Se por um lado esse debate fundamental permitiu que uma parte das associações de defesa dos “trabalhadores do sexo” e atores da indústria pornográfica mostrassem a realidade das suas condições de trabalho, a articulação internacional de proxenetas, por outro lado, viveu uma ascensão inédita.
Prova desse paradoxo são países como a Alemanha, a Espanha ou a Nova Zelândia, que decidiram regulamentar a prostituição e viram em consequência a explosão desse fenômeno, assim como da fragilização das pessoas prostituídas. Os números são claros: em plena era #metoo, 99% das pessoas prostituídas no mundo são mulheres, 48% na Europa são crianças, 90% desta população escravizada para o sexo deseja escapar e a taxa de mortalidade é de 10 a 40 vezes superior nos países ditos “liberais” que nos países abolicionistas. No mundo, a prostituição individual “escolhida” não chega nem a 10% do total.
Expostos às redes sociais no mundo todo, menores e jovens adultos são as primeira vítimas dos sistemas de exploração sexual 2.0. Porém seus clientes e proxenetas também estão cada vez mais jovens: indivíduos vulneráveis ou apenas em busca de sua identidade são rastreados em comunidades ou grupos virtuais. Ninguém está a salvo. Nem a jovem nigeriana sem documentos que é capturada por uma “Authentic Sister” com smartphone e jogada em rodovias francesas, nem a estudante de Paris ou Marselha conquistada por um “loverboy” com perfil de genro ideal que a transforma em escrava sexual em algumas semanas num quarto alugado em dois clics. Essa “invisibilização” e a plasticidade dos sistemas de “recrutamento” complicam as reações judiciais e penais dos Estados.
Parceira de grandes organizações que lutam contra o tráfico humano, a Fundação Scelles, abertamente abolicionista, se dedica a realizar a cada dois anos uma radiografia dos “sistemas de prostituição”. O relatório de 2019 se esforça para propor uma análise precisa da disputa ideológica e da comunicação que continua a dividir até as feministas. Seu presidente Yves Charpenel, ex-magistrado e membro do Comitê de consulta nacional de ética, é também um exímio conhecedor do continente africano. Antes de uma viagem para o Benim, ele respondeu às perguntas do Le Monde Afrique.
A prostituição organizada sempre existiu. O que mudou?
Yves Charpenel: As redes sociais agregam à prostituição uma amplitude inédita. Em dez anos, o desafio se tornou planetário. Nenhum continente é poupado e nenhum dos 54 países africanos, onde os jovens estão frequentemente conectados à Internet, escapa do fenômeno. A prostituição se prolifera com as crises: migrações trans e intracontinentais, terrorismo islamista, turismo sexual, conflitos, corrupção policial, catástrofes naturais fragilizam populações já empobrecidas e forçadas a se deslocar. A crise migratória no Mediterrâneo, a mais importante desde a Segunda Guerra Mundial, e o fechamento da Europa bloquearam incontáveis migrantes na Argélia, Nigéria, Marrocos e Líbia nas condições terríveis que já conhecemos. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) estimou este número em 70 milhões em 2017. É equivalente à população da França! As investigações da Europol e da Interpol estabeleceram a relação entre as trajetórias dos migrantes e as quadrilhas de tráfico na África, na Europa, no Oriente Médio e na Ásia. Africanas subsaarianas, incluindo as nigerianas, estão no centro de um tráfico que se tece a partir dos vilarejos, de onde as jovens partem cheias de esperança para uma viagem de barco paga pelas suas comunidades, às quais elas ficam devendo. Nos países do norte, os números relativos à prostituição “de rua” estão em queda livre. A imensa maioria da prostituição se realiza pela Internet e escapa aos olhos. Ademais, as crianças que naufragaram na costa Europeia depois dos conflitos da “primavera árabe”, da crise no Mali, que chega atualmente no Burkina Faso e no Benim, de Boko Haram na Nigéria, dos Al-Shabab na Somália, do regime autoritário na Eritreia, dos conflitos nos Sudões e, claro, da guerra na Síria, forçaram dezenas de milhares de menores a embarcar desacompanhados para o Mediterrâneo. Muitos foram discretamente absorvidos pelas redes de prostituição e, segundo a Europol, em torno de 10.000 deles simplesmente desapareceram de circulação entre 2016 e 2018. Pouco tempo atrás, meninas de 8 anos eram vendidas online via Twitter pelo Estado Islâmico para serem transformadas em escravas sexuais.
Como você explica que clientes e proxenetas sejam cada vez mais jovens?
Y.C.: Na Europa, o mercado da droga está saturado e custa muito caro para um jovem que deseja começar no tráfico lucrativo. É preciso investir muito dinheiro para ter acesso à matéria prima, ter contatos poderosos no mundo do crime e é muito arriscado. Os delinquentes que recém adquiriram a maioridade entendem rapidamente que, apesar de um arsenal judicial severo (como na França que chega a 15 anos de prisão e 1,5 milhão de euros de multa) eles serão condenados em primeira instância a 18 meses apenas e a pagar 8 mil euros pelos primeiros crimes de proxenetismo. Eles nem chegam a pedir recurso e pagam essa quantia com três semanas de lucro. Alguns menores, garotos ou garotas, passaram de vítimas do tráfico sexual na Líbia a proxenetas nas ruas das grandes capitais europeias para sobreviver. Tudo é administrado através de contas falsas no Facebook, Instagram, Snapchat ou Twitter, em sites de encontros “entre adultos”, verdadeiros tapa-sexos das redes de prostituição infantil, cujos filtros os proxenetas contornam eufemizando o vocabulário utilizado para prover serviços sexuais a uma clientela cada vez mais informada. A Internet se tornou a ferramenta gratuita e discreta de recrutamento e de gestão da prostituição.
Após o Senegal e o Níger em 2018, você vai até o Benim para ajudar a formar administradores para a luta contra o tráfico humano. Por quê?
Y.C.: A Europa, atingida pela crise migratória, tenta auxiliar os países onde se origina a migração a tratar o mal pela raiz. A minha missão foi iniciada pela Escola de magistratura e tem o apoio da Agência Francesa de desenvolvimento (AFD, parceira do Mundo África de 2015 à 2018). Os governos da África do Oeste e do centro estão diante do desenvolvimento do tráfico transnacional e national. Desde 2009, segundo a HCR, a seita islamista nigeriana Boko Haram forçou ao exílio de mais de 2,4 milhões de pessoas da bacia do lago Tchad, entre o Camarões, o Chade, a Nigéria e o Níger. Estes grupos jihadistas roubam, estupram e revendem mulheres e crianças transformadas em moeda de troca. O Benim está começando a ser afetado por estes sequestros. A Agência nacional nigeriana de luta contra a exploração sexual (Naptip) observou a porcentagem de tráfico aumentar em 204% em 2016. Ao mesmo tempo, muitos países africanos legalizaram a prostituição, e agora assistimos à um verdadeiro êxodo de adolescentes dos vilarejos em direção aos centros urbanos do continente.
Diante da gravidade da situação, que reações de peso podem ser implementadas?
Y.C.: Não importa o país ou o continente, a resposta não pode ser apenas nacional, ela deve ser transnacional. Em países como a França, que criminalisam o cliente da prostituição e não mais a vítima prostituída, as leis extraterritoriais permitem por exemplo que seus cidadãos possam ser procurados e processados mesmo por crimes de exploração sexual de menores cometidos no exterior. Em 2016, um diretor de um asilo católico foi condenado pela Corte de Versalhes a 16 anos de prisão por ter estuprado ou agredido 66 crianças no Sri Lanka, na Tunísia e no Egito. Este caso está longe de ser isolado. Trata-se de um avanço notável na luta contra o turismo sexual, do qual muitas crianças africanas são vítimas no Marrocos, no Senegal, na Gâmbia, para citar apenas alguns países. A aplicação dessas leis depende, entretanto, da qualidade da colaboração entre os países. O aumento vertiginoso das redes nigerianas nos países europeus por exemplo tornou-se possível pela ausência de cooperação de Abuja no plano internacional. Mas é necessário ir bem mais longe e tornar o crime de exploração sexual de menores imprescritível e que este seja entendido enquanto crime contra a humanidade. Isto permitiria acionar cortes ligadas ao direito internacional.
Quais devem ser as exigências dos Estados face às grandes empresas da Internet?
Y.C.: As análises e as leis avançam no sentido de atribuir a responsabilidade civil e penal aos poderosos Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft (GAFAM). Apesar de a atitude deles ser de desafiar os Estados e da rápida adaptação de sites especializados que se utilizam de falhas nos sistemas jurídicos nacionais, os GAFAM não podem aceitar os prejuízos que a associação ao tráfico humano traria à sua imagem. Algumas vitórias foram alcançadas como o fechamento, em maio de 2018, da rubrica “Encontros” do primeiro site francês de anúncios, Vivastreet, presente em treze países, ou a prisão efetuada pelo FBI do gigante americano Blackpage, especializado na venda de serviços sexuais, por contribuição ao tráfico sexual. Uma corrida aos algoritmos para filtrar conteúdo foi declarada. Sem o surgimento de uma gestão global da Internet e uma tomada de consciência profunda das sociedades, mesmo que todos os clientes condenados fiquem face a face com as “sobreviventes” do tráfico, nós não conseguiremos impedir que jovens de 15 anos da Guiné sejam levadas de Uber até um Airbnb da periferia para um estupro tarifado “consentido” e “alternativo”.
Entrevista realizada por Sandrine Berthaud-Clair — Le Monde AfriquePublicada no Le Monde em 11 de junho de 2019