“Nós nos tornamos relutantes de sermos taxadas de ‘ativistas da moral’ em uma era em que o potencial humano foi transformado em “faça seu próprio caminho”. Nós somos condicionadas a fazer observações brandas e piadas cínicas em resposta a obscenidades de escala nacional e a perversão de uma magnitude universal. Nós somos dopadas a tal ponto que ficamos confortáveis com a crueldade e o desespero” — Hilde Hein, 1982
Em seu livro de 1986, A Passion for Friends: Towards a Philosophy of Female Affection, Janice Raymond faz referência ao trabalho de Hilde Hein para descrever um fenômeno curioso que se manifestava dentro do movimento das mulheres daquele período. “A tirania da tolerância,” ela argumenta, “desencoraja as mulheres de assumirem pensamentos complexos, das responsabilidade pela discordância com outros, e da vontade de agir. Pior de tudo, ela permite que valores opressivos apareçam sem serem questionados.”
A observação de Raymond é cheia de insights que podem (além disso, devem) ser aplicados ao feminismo de hoje. A regra totalitária do patriarcado reforçou uma estipulação prejudicial a jovens mulheres: nenhum juízo de valor deve ser feito sobre nada nem ninguém. Moral virou coisa de conservador, e engajamento crítico se tornou “exclusionário” para vários grupos de indivíduos. O termo “patriarcado” é usado por muitos como se não fosse nada além de um estranho objeto que cai do céu ocasionalmente, constantemente sendo usado de forma passageira, mas nunca focando na dimensão de análise que ele requer.
A palavra ‘tolerância’ é derivada do latim tolerare, que significa “aguentar, sustentar, sofrer” e bem literalmente, “suportar”. No patriarcado, mulheres foram ensinadas a viver em um estado perpétuo de tolerância. A tolerância com as atitudes dos homens, cultura, comportamento e sexualidade foi historicamente reforçada nas mulheres pelas leis de deuses masculinos, estados masculinos e membros homens das famílias. Das “caça às bruxas,” em que milhares de mulheres foram publicamente torturadas e assassinadas por se recusarem a se dobrar à autoridade da Igreja, até as formas geralmente brutais de anti-lesbianismo contra mulheres que se relacionam com outras mulheres ao invés de homens, a perseguição é aparentemente inevitável para as mulheres que se recusam a ser tolerantes com a regra masculina. Hoje em dia, o treinamento da tolerância começa cedo — jovens meninas são ensinadas a suportar os garotos que as humilham, a virar o rosto para a pornografia online, e fechar os ouvidos para a misoginia que todas escutam por todos os lados.
Raymond descreve a tolerância como uma posição passiva. Ela cria uma não-ação, apatia e uma sensitividade reprimida em relação às injustiças praticadas pelos homens contra as mulheres. Em outras palavras, o condicionamento de mulheres e garotas para serem “tolerantes” é intencional.
Não é surpresa, então, que mulheres — particularmente jovens mulheres — estão relutantes em formar seu próprio senso de certo e errado; de discernir quais valores podem ser considerados feministas e quais não; e para articular o que precisa de mudanças, para que mulheres sejam algum dia livres da dominação masculina.
Essa tirania da tolerância é mais evidente no que hoje é chamado de “feminismo interseccional” e que domina muitas universidades ocidentais. O mal uso da teoria original de Crenshaw mostra que esse tipo de “feminismo” reflete mais os tipos de individualismo liberal, que adere aos dogmas masculinos sob o disfarce de justiça social progressista. Não é coincidência que as escolhas que essa ideologia considera “feministas” representam, até a última gota de rímel, as ferramentas usadas pelos homens para colonizar mulheres.
A prostituição, agora nomeada “trabalho sexual” por muitos estudantes ativistas e acadêmicos, é apresentada nesse contexto como resultado das escolhas pessoais e empoderadas das mulheres, apesar da realidade de que a maioria das mulheres na prostituição estão nessa situação por falta de escolhas. A indústria multibilionária da pornografia grava e distribui atos sádicos de misoginia, assim como de pedofilia, homofobia e racismo para milhões de homens e meninos ao redor do mundo — e ainda assim, usando do manto da “sexo positividade”, essas indústrias de abuso são propagandeadas como “feministas” para alguns, enquanto mulheres que criticam esse mercado são tratadas como “anti-sexo” ou “putofóbicas”.
Fica evidente que, para ser aceita nesse novo clubinho feminista, você deve ser tolerante com todos os sistemas em que mulheres podem (hipoteticamente) apresentar poder de escolha, desconsiderando os propósitos pretendidos por esses sistemas. A promoção em certos círculos feministas contemporâneos do que Raymond descreve como “o valor da liberdade” — ou como Hein chama, “faça seu próprio caminho” — torna próximo do impossível definir um conjunto de valores coletivos ou reivindicar objetivos compartilhados por conta de um desejo de parecer sensível e “respeitosa” com as opiniões de todas as mulheres do grupo. Manter o respeito com outras mulheres é, claro, importante, mas isso não deveria vir às custas de ser completamente incapaz de expressar discordância sobre um ponto de vista particular ou uma afirmação política. E no fim das contas, apesar de ser relativamente fácil se opor a valores que são obviamente patriarcais, a dificuldade mora em se posicionar contra o valores que estão mais encobertos.
No intendimento popular do “feminismo interseccional”, mulheres ouvem que são pecadoras por possuírem um privilégio “cisgênero”, o que torna ter nascido e permanecer se chamando de mulher um privilégio que mulheres tem. Crucialmente, mulheres que possuem o “privilégio cis” são ditas capazes de oprimir homens, se esses homens decidirem que eles gostariam de não ser identificados como tal.
A imagem idealizada da feminista “trans inclusiva” nas políticas de identidade do ocidente se tornou a régua para medir se uma mulher é verdadeiramente culpada de seu corpo feminino — culpada o suficiente para torná-lo invisível e, apesar de exploração histórica, objetificação e dominação pelos homens, começar a enxergá-lo como um privilégio. Para ser uma feminista tolerante atualmente é preciso se arrepender publicamente e eternamente por seus supostos pecados— sendo o maior deles, de acordo com alguns, a posse de um corpo feminino.
Ano passado, 136 mulheres foram mortas por homens no Reino Unido. Em média, uma mulher foi morta a cada 2.6 dias. Na Índia, onde a prática de infanticídio de meninas é particularmente comum, a população de meninas no grupo etário de 0 a 6 anos caiu de aproximadamente 79 milhões para 75 milhões em 2011. Mês passado, a Dinamarca abriu seu primeiro bordel de bonecas sexuais. O bordel se promoveu como “um lugar onde todos os homens são bem-vindos e onde as garotas não dizem não.” Na Inglaterra e no País de Gales juntos, 85,000 mulheres são estupradas a cada ano. Isso significa que hoje, em média, 10 mulheres serão estupradas por hora.
Mulheres devem reconsiderar o que elas toleram e o que elas não toleram. Apesar do fato de as mulheres intolerantes serem taxadas de “exclusionárias”, “fóbicas” ou “odiosas”, foram os homens que sistematicamente oprimiram mulheres por séculos, e ainda permanecem sendo tolerados pela maioria de nós. Enquanto mulheres, nós temos que começar a formar o que Andrea Dworkin chamou de “inteligência moral” — uma habilidade de construir nosso próprio sistema de valor e ética centrado nas mulheres. Olhando para o rastro de violência, colonização e mortes causadas por homens ao redor do globo, não existe nenhuma razão para mulheres serem tolerantes com os dogmas patriarcais; não importa a forma que eles tomem.
May Mundt-Leach é uma estudante universitária do Reino Unido e membra da organização feminista radical Kvinnorum, que busca oferecer espaços separatistas e exclusivos para reuniões de mulheres.
Obrigada por esse texto. Vamos juntas! ♀️❤️
Texto otimo
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