(tradução do texto de Andrea Franulic)

Quando, na América Latina, se iniciava o período pós-ditatorial das democracias representativas, ou seja, no início da década de 1990, as feministas logo se dividiram, em termos gerais, entre aquelas que desejavam ocupar os lugares que a institucionalidade masculina abria, e as que desejavam manterem-se livres da dita institucionalidade — estas se autodenominavam feministas autônomas. Este conflito político cruzou todo o território. As autônomas argumentavam que isto já havia acontecido na história do feminismo, e que as consequências foram nefastas para nós, uma vez que os saberes criados na prática política dos grupos de despertar crítico de consciência haviam sido vendidos e absorvidos para benefício dos homens e de seus espaços de poder. Ainda assim, e apesar das críticas, o feminismo entrou nas universidades chilenas em 1991. Na verdade, não foi o Feminismo que se incorporou aos centros de produção de cultura masculina, mas a Teoria de Gênero.

Esse foi o primeiro desastre: confundir Feminismo com Gênero, como acontece no mundo anglo-saxão. Mundo este que, ao mesmo tempo, inseria o modelo econômico neoliberal nos países da América Latina para acabar de depredá-los. Junto a isto, o segundo desastre foi, em conformidade com o “discurso de especialistas” e com a lógica das disciplinas patriarcais, não mais permitir as vozes das mulheres e seu pensamento livre, mas transformá-las em objetos de estudo. Além de tudo, em alguns Centros de Estudos de Gênero de importantes universidades do país, a bibliografia feminista começou a dar cada vez mais espaço à bibliografia dos machos pós-modernos.

Desta forma, a ordem simbólica patriarcal e sua ordem de discurso foram instaladas nas salas de aula dos Estudos de Gênero. O custo para nós era evidente, porque a ordem androcêntrica, em quaisquer de suas manifestações, cada vez que se impõe em um espaço feminino, o faz às custas de negar nossa diferença sexual, silenciando quatro áreas vitais de nossa existência: nosso corpo sexuado como fonte de significados; nossa história e genealogias; nossas relações entre mulheres; e o vínculo com nossas mães. Prova evidente disso é que Mulheres, previamente convertidas em uma categoria de análise ou objeto de estudo, começaram a ser apagadas pelo Feminismo de Gênero, através de várias estratégias discursivas. Neste texto, apresentarei algumas.

A primeira, penso eu, é uma daquelas que traz as consequências políticas mais sérias para nós: é o Deslocamento. Esta estratégia consiste em nos substituir por um novo sujeito político levantado pelo feminismo de gênero: a dissidência sexual. O deslocamento é feito por meio de fórmulas intelectualizadas que percorrem os artigos acadêmicos das feministas de Gênero. Por exemplo, a de enaltecer as qualidades do “monstruoso” e do “andrógino” para trazer à tona o novo sujeito do feminismo:

… como monstros evocam “excesso”. Como sabemos, um monstro é sempre um excedente. Monstros suspendem, anulam, neutralizam categorias de valor. (Alejandra Castillo, 2012).

… a recuperação do andrógino é uma aposta … (Olga Grau, 2012).

… personagens híbridos, que quebram os limites da identidade essencial … (Olga Grau, 2012).

Para mim, a predominância do modelo masculino-inclusivo é evidente tanto no “monstruoso” quanto no “andrógino”. O desaparecimento da diferença sexual feminina também parece óbvio para mim. A ênfase, é claro, recai sobre o Gênero, agora em sua versão híbrida, mas, ainda assim, é o Gênero. Fazer política a partir de Gênero é ficar, com palavras de Mary Daly, no Plano de Deus (ou seja, dos homens); ou, com palavras de Audre Lorde, equivale a usar as Ferramentas do Mestre. Isto é assim, porque o Gênero é uma operação secundária da ordem patriarcal para negar a diferença primária que implica nascer com um corpo sexuado feminino ou masculino, sendo este um fato irredutível. A esse respeito, as pensadoras da diferença argumentam que todo conhecimento científico estabelecido, no Patriarcado, é construído a partir da ocultação do sexo como fonte de significados para os seres humanos, empobrecendo, assim, todos os saberes. Distinta é a diferença sexual, cuja potencialidade consiste na capacidade de toda humana e humano de se definir livremente e contar sua experiência a partir de si mesmos, com suas próprias pautas e o sentido existencial que se queira conferir a cada um.

Outra estratégia é incluir mulheres na lista de grupos marginais e oprimidos. De mãos dadas com a Teoria de Gênero caminha a dialética de luta entre opressor e oprimidas, uma vez que, retomando o parágrafo anterior, situar-nos como Gênero é situar-nos no reflexo que o espelho patriarcal nos quer projetar: analisando-o, nos debruçando sobre ele ou denunciando-o, mas sem deixar o olhar do opressor. Além disso, quando as mulheres são agrupadas em qualquer lista, sempre como um dado empírico a mais, se assume que o olhar do opressor funciona igual para todos. No entanto, a experiência das mulheres é radicalmente diferente da de outros marginalizados pelo sistema hegemônico (na verdade, mais que opressão, é uma alienação imposta pela ordem patriarcal, e é transversal a todos os outros grupos oprimidos). Mas, mais importante ainda: ao nos reduzirmos a oprimidas, negamos a nossa força criativa e a descoberta de um sentido livre de ser mulheres ao longo da história, ou seja, recusa-se tudo o que há “além” de Gênero na vida de uma mulher. Alguns exemplos dessa outra estratégia são os seguintes:

… imigrantes, negros, mulheres, pobres… (Kemy Oyarzún, 2010).

Este é o caso não apenas em relação às populações marginalizadas (trabalhadores flexibilizados, mulheres espancadas, mapuches desterritorializados, jovens criminalizados) … (Kemy Oyarzún, 2012).

… políticas estatais universalistas para proteger os mais fracos… (Kemy Oyarzún, 2010).

Os recursos anteriores adquirem ainda mais força, em sua ação discursiva, se forem complementados com outro, o da deslegitimação que feministas de gênero dirigem às feministas, cuja identificação primária é com mulheres e com mulheres lésbicas; em outras palavras, a deslegitimação recai sobre aquelas que consideramos fundamental trazer à luz e materializar os conteúdos dos quatro grandes silêncios, já mencionados, que o Patriarcado preserva para se manter vigente como a única possibilidade de organização social e cultural. É assim que os Estudos de Gênero deslegitimam e também distorcem o discurso das feministas radicais autônomas e da diferença:

… em “todas as mulheres” (mulheres puras, somente mulheres, mulheres inteiramente certas da plenitude e integridade de sua identidade/ diferença, mulheres refugiadas na mesmice de suas “entre mulheres”)… (Nelly Richard, 2013).

… para o feminismo essencialista que o considera um território primitivo … (Nelly Richard, 2009).

O dogmatismo conceitual de um certo feminismo radical nos inibe de realizar gestos duplos, desdobrados … (Nelly Richard, 2013).

Ars Disyecta de práticas que visam perturbar o espaço metafórico herdado da diferença sexual: engendramento, matriz, vida, compenetração ou invaginamento seriam suas palavras mestras. Ars Disyecta de práticas e intervenções que tentam interromper a matriz da diferença desestabilizando o feminino … (Alejandra Castillo, 2012).

Mesmo nos anos noventa havia um ar rarefeito de anti-teoria entre nossas jovens mais radicais, para quem a teoria implicava, até certo ponto, um culto à masculinidade. (Kemy Oyarzún, 2011).

Como fugir dessa interpelação objetual/ especular do olhar masculino sobre o corpo das mulheres? Uma resposta possível (…) e sonhar com um “paraíso para as mulheres” onde elas viveriam sem defeitos. Outra resposta é aquela elaborada por algumas artistas visuais que fizeram da relação mulher/ coisificação uma zona de intervenção desconstrutiva. (Alejandra Castillo, 2012).

Como é de se esperar, em todo discurso ideológico, ligado à deslegitimação, é apresentada a ideia de que o Feminismo Pós-moderno constitui a vanguarda intelectual dessa época; não nos esqueçamos de que as feministas de Gênero acessam os espaços com poder da cultura masculina ao custo de não se identificar com as mulheres ou com as expressões autônomas do Feminismo; é o preço cobrado pela estratégia patriarcal das Mulheres-cota:

Retomando a velha agenda radical do feminismo, o feminismo contemporâneo se distanciará das políticas afirmativas e identitárias para optar pelo questionamento e crítica de um dos pilares do pensamento moderno: a ideia de “humanidade”. (Alejandra Castillo, 2011).

O CUDS partilha com o feminismo desconstrutivo a necessidade vital de recorrer à teoria para demonstrar que os signos “homem” e “mulher” são construções discursivas, montagens representativas… (Nelly Richard, 2011).

O feminismo teórico tem conseguido refutar essa naturalização do corpo … (Nelly Richard, 2009).

Para finalizar, quero mostrar uma última estratégia dos estudos de gênero; a última, não porque não há mais, mas porque este texto tenta ser breve. Esta estratégia também insiste em invisibilizar simbolicamente as mulheres. Refiro-me à adesão e defesa da ideologia igualitária. Como sabemos, o discurso das políticas de igualdade e aterragem de direitos são estabelecidos no Ocidente, a partir do século XVII, por coincidência, após o ginecídio (como Andrea Dworkin chama o extermínio de mulheres) em grande escala, que foi a Caça às Bruxas. É neste momento na história que o processo da modernidade começa, junto com a instalação do Capitalismo. A historiadora da Diferença, María Milagros Rivera, afirma que todos esses fenômenos negam novamente um sentido livre da diferença sexual feminina, que floresceu na linguagem e na prática da vida de muitas mulheres do final da Idade Média. No entanto, a Era Moderna leva à perda gradual desta Ordem Simbólica, de mãos dadas com o estratagema de homologação aos homens. O Feminismo de Gênero, ancorado na Modernidade, adota, em seus discursos, as políticas estatais de igualdade de direitos:

Esta reflexão é proposta para reavaliar os progressos realizados pelos Centros de Estudos de Gênero em respeito ao “imperativo ético para alterar as relações autoritárias” herdadas da ditadura militar no Chile, objetivo enunciado pelo Servicio Nacional de la Mujer (Sernam) a partir de sua instalação em 1992 em um dos governos da Concertación de Partidos por la Democracia. (Kemy Oyarzun, 2011).

O acesso lento das mulheres a espaços profissionais, as reivindicações alcançadas, a dramatização pública permanente (…) as instalações de problemáticas e políticas de gênero (…) a formulação de leis específicas (…) tiveram o efeito de produzir a necessidade de paridade de gênero como uma necessidade das sociedades modernas. (Raquel Olea, 2007).

… a luta feminista conseguiu posicionar mulheres na categoria de cidadãs: o direito de voto, o direito ao trabalho assalariado, em última instância, o direito de participar da cultura para evitar ser assimilada à natureza. (Pilar Errázuriz, 2011).

Uma multidão vibrante de mulheres saíram às ruas para celebrar o resultado destas eleições como um merecido triunfo coletivo de gênero, repolitizando espontaneamente o mais público de todos os espaços: a cidade. (Nelly Richard, 2007).

Como pode-se observar, a ideologia moderna e ilustrada da Igualdade não contradiz o pensamento pós-moderno e pós-feminista. Eu acho que essa última estratégia discursiva é uma das mais eficientes para nos fazer desaparecer, junto com a do deslocamento. Juntas, elas fazem o complemento perfeito, uma vez que o deslocamento das mulheres — seus corpos, genealogias e relacionamentos — pelos novos sujeitos híbridos do Feminismo de Gênero, é reforçado por sua homologação com os homens, através de sua participação cidadã na sociedade nas falidas democracias representativas destes homens. Essa observação, no discurso do Feminismo chileno de Gênero, me lembra, tomando um sentido renovado, a ideia da lesbofeminista radical Sheyla Jeffreys, que afirma que o Feminismo Pós-moderno é o mesmo liberalismo de sempre, apenas com um retoque de verniz intelectual.

O atual contexto político-feminista, especialmente no Chile, nos desafia a repensar o Feminismo e a política das Mulheres. Neste cenário, considero que é importante repensar velhas questões, voltando a nossa história recente, do início dos anos 1990, quando o feminismo latino-americano foi fraturado pela estratégia patriarcal que institucionalizou o Movimento das Mulheres e fez reaparecer, na cena pública, a figura da Mulher-cota. Simultaneamente, ele silenciou as vozes da autonomia. Então eu pergunto se, dado o ímpeto e o desejo viscerais e livres de várias estudantes organizadas nas tomadas e nas greves feministas presentes em nosso país, voltaremos a afogá-las com mais cursos e perspectivas de Gênero? E esta outra questão mais ampla, a Teoria de Gênero que durante estas décadas, simbolicamente apagou a nós, mulheres, com a permissão tácita da Ordem de Discurso androcêntrica, contribui na erradicação do abuso secular (e também do apagamento) de nossos corpos sexuados, devido ao assédio, o abuso e o estupro, realizado por professores e colegas nas penumbras dos corredores e nas salas de aula da universidade?