Há um tempo, escrevi um texto explicando, de forma bem resumida, como se deu o início, há alguns milênios, da opressão da mulher. A exploração reprodutiva e da sexualidade explicam por que a mulher, enquanto classe de pessoas, tem estado sistematicamente na situação de “outro”, de não possuidora de poderes (não só o poder prático/fático de governar ou de fazer leis, mas também de produzir conhecimento, de pensar a própria condição, de interpretar e registrar a história, de criar mitos à sua própria imagem, de criar obras que espelhassem sua grandeza, e assim por diante). Essa é a constante das histórias das mulheres no patriarcado ocidental — um patriarcado que, com a colonização, com o imperialismo, com as guerras, com a tecnologia, com a indústria cultural e com a globalização hoje é, infelizmente, global.
Mas nos interessa também entender como essa exploração reprodutiva e da sexualidade se deu ao longo da história, e, mais especificamente, pelo menos nesses últimos séculos, caracterizados pelos levantes de movimentos de mulheres. De que forma diferentes civilizações e culturas impunham o ditame patriarcal às mulheres, ao ponto de ele ter se consolidado até na forma de um único deus, supremo, onisciente — e masculino; ao ponto de todas as outras deusas de civilizações anteriores terem sido, quando não apagadas, demonizadas (às vezes, literalmente — transformadas em demônios) ou reduzidas à função de “deusa da fertilidade”.
Como somos alienadas do nosso próprio corpo? Como ele passa a ser… não-meu?
Eis algumas das dinâmica do patriarcado.
Mulheres, modos de produção de pessoas: mulheres são fêmeas da espécie humana. Como fêmeas, nós gestamos, parimos e nutrimos pelos primeiros anos de vida os filhotes da espécie humana. A partir do momento em que seres humanos entendem minimamente o que é necessário para que a concepção aconteça e que ela não é mero fruto do acaso ou de forças superiores, a mulher, como “canal” da vida humana, precisa ser despojada de sua humanidade — no sentido de “humanidade” enquanto dignidade, qualidade de “ser humano” mesmo — e existencialmente rebaixada. Maria Mies, por exemplo, teoriza que precisamente o fato de mulheres gestarem e parirem foi usado por homens para nos associar à “natureza”, e, portanto, ao “selvagem”, em oposição ao civilizado, evoluído, intelectual. Ao longo de vários punhados de séculos de desenvolvimento e consolidação do patriarcado, a representação da mulher nos mitos, na literatura e nos registros históricos — quando este existe — se modifica. De novo, a questão da religião: de deusas da guerra e da estratégia, viramos a virgem cuja única razão de ser no mundo era ser o canal pelo qual o salvador viria à terra, e que engravida sem sequer ter feito sexo.
“Uma mulher para chamar de minha”: mulheres se tornaram coisas a serem possuídas, assim como sua prole. Esse é um dos princípios do patriarcado. Afinal, uma tribo com mais mulheres gera mais pessoas; cresce mais; produz mais — mais trabalhadores, mais agricultores, mais, eventualmente, guerreiros. Mulheres são e sempre foram necessárias para o surgimento e o crescimento de civilizações; sua ausência ou extermínio foi determinante para o colapso de outras; e, mais tarde, estiveram no seio do que chamamos de acumulação primitiva, no vocabulário marxista. Assim, mulheres se tornam posses valiosas e agregam poder e status a quem as possui. Tanto agregam poder, que era/é possível, no caso de algumas sociedades/culturas, distinguir a classe social do homem pelo número de esposas, concubinas, ou escravas sexuais que ele possuía. Tanto agregam poder que, por exemplo, na Inglaterra, a esposa deixou de ser propriedade de seu marido só no século XIX. Aqui, naturalmente, entram em ação, em grande medida, o direito e a religião (direito divino) para institucionalizar o domínio dos homens sobre as mulheres.
“Meninas usam e gostam de rosa; meninos usam e gostam de azul”: a naturalização e essencialização de diferenças que são, na verdade, construídas historicamente foi uma ferramenta essencial de manutenção do cabresto das mulheres. A explicação via ciências, especificamente via psicologia e, mais ainda, via biologia — uma explicação a-histórica — das desigualdades entre homens e mulheres em determinado ou determinados momentos da história busca minar a oposição à ordem patriarcal, e é uma explicação que só pôde ser refutada em peso e em massa com o acesso das mulheres ao ensino superior. A produção enviesada e a manipulação do conhecimento em torno das diferenças entre homens e mulheres e da história da dominação dos homens sobre as mulheres também tem sido um fator decisivo para nossa subordinação.
Bruxas, parteiras e curandeiras: você aqui que está me lendo já deve saber isso de trás pra frente, mas não custa repetir: a caça as bruxas foi um grande ginocídio, justificado pela necessidade de implantação de um controle da sexualidade das mulheres, uma condição sine qua non do desenvolvimento do capitalismo em si. De novo, religião e direito atuaram em conjunto para penalizar mulheres que não estavam cumprindo sua razão de ser: botar gente no mundo. Isso incluía não só quem abortava, mas também aquelas que usavam de métodos para não engravidar e as que não se relacionavam com homens; e depois passou a incluir também quem auxiliava as mulheres a se prevenir e/ou a abortar. Para evitar morrer, houve relatos de mulheres que se tornavam freiras — única situação possível, durante séculos, em que uma mulher podia se abster, justificadamente, do contato (de todo tipo) com homens.
Histéricas, dissimuladas, deprimidas: a patologização (e consequente medicalização) de comportamentos estereotipicamente femininos é uma constante na história da psiquiatria. Paralelamente ao cárcere, a Psiquiatria nasce e se fortalece como instituição de controle e “reparo” de sujeitos desviantes — ou seja: funcionalmente inúteis para o patriarcado capitalista. Para as mulheres, isso queria dizer, de forma geral, a lesbianidade, a recusa em ser mãe, a “falta de interesse” nas crianças já nascidas, e/ou a não-conformidade com os estereótipos sexuais vigentes. Rotular mulheres — seja enquanto classe, seja individualmente — como “loucas” ou como mais propensas a algum tipo de “loucura”, em oposição aos racionais homens, tira credibilidade do que falamos, pensamos e sentimos. Pessoas “loucas” não acessam a realidade “corretamente” e precisam de ajuda para fazê-lo. Mesmo que essa ajuda consista em levar choques nas têmporas várias vezes por dia. Por anos.
“Você sabe que você (me) quer”: uma das maiores e mais originais contribuições da teoria feminista, e que só podia ter sido concebida a partir de uma existência lésbica no mundo, foi a da noção de heterossexualidade compulsória. Porque para que tudo funcione — para que a roda do patriarcado gire e mulheres continuem gestando e parindo — , é preciso que homens tenham acesso sexual às mulheres em primeiro lugar. Esse acesso sexual foi e tem sido garantido de diversas formas, inclusive pelo direito e pela religião — mas também pela ideia de heterossexualidade enquanto “natural” e “biologicamente determinada”. Por um motivo muito simples: se mulheres fossem apresentadas à ideia de que elas poderiam simplesmente escolher estar com outras mulheres, porque nossos desejos, nosso tesão, é socialmente determinado, o sistema patriarcal entraria em colapso. É preciso, então, minar essa possibilidade na raiz e separar as pessoas em “caixinhas” o quanto antes, educando-as para relações heterossexuais. Não à toa, um dos primeiros slogans adotados pelos movimentos de mulheres lésbicas, nos anos 70, era “qualquer mulher pode ser lésbica”. Também não à toa lésbicas são tão vilanizadas e constantemente pintadas como “odiadoras de homens” — simplesmente por lhes negarem acesso sexual a seus corpos.
Contratos sexuais: de novo, o controle da sexualidade. Tanto o casamento quanto a prostituição são formas de explorar e controlar a sexualidade feminina. O casamento torna a mulher propriedade de apenas um homem, sendo sustentada em troca de relações sexuais (e, eventualmente, da continuidade da linhagem) com apenas um homem; na prostituição, ela é propriedade pública e recebe dinheiro de vários homens. São dois lados de uma mesma moeda, e decorrem da mesma origem — a exploração da sexualidade, a coisificação da mulher em troca de sustento e o próprio poder sexual masculino, devido à impossibilidade de mulheres se sustentarem por si próprias. Outras formas de exploração sexual, das mais às menos invasivas, também entram nessa conta: pornografia, serviço de acompanhante, casas de strip, webcamming, sugar, venda de packs, e assim por diante. Homens podem; mulheres precisam.
Entre santas e putas, um hímen: a virgindade é um dos conceitos mais bizarros já inventados por homens. Etimologicamente, “virgem” vem de uma palavra em latim que podia significar tanto uma pessoa que não teve relações sexuais ainda quanto uma pessoa solteira (apesar de a palavra sempre ter sido mais utilizada, comprovadamente, para se referir a mulheres do que a homens, já tendo aquele cheirinho de misoginia desde lá de trás) — até porque essas situações costumavam coincidir. Só que, em algum momento da história — possivelmente, pós-Idade Média — , “virgem” passou a significar apenas a pessoa que ainda não havia tido relações sexuais, e, uma vez que continuou a ser usada largamente para se referir a mulheres, muito mais do que para homens, a herança simbólica patriarcal (ao menos, ocidental) que ficou é que existe esse tal desse conceito de virgindade, aplicado a mulheres dependendo de sua vagina já ter sido, ou não, penetrada por um pênis. Eu só posso presumir que virgindade é algo que meninas virgens “têm”, porque, após a primeira relação sexual, ela o “perde”. Ela não “dá”, ela não “presenteia”, ela não “abre mão”. Ela perde. Enquanto os moleques, estúpidos, adolescentes, falam — o que, mesmo? Ah, sim: eles dizem que tiraram o cabaço de alguém. Quem era virgem e deixa de ser, perde algo. Esse algo perdido é o mesmo que é tirado pelo cara que tira cabaços. Expressões da fala; expressões de poder sexual.
Liberdade é poder dizer sim? Com certeza você já ouviu falar que a criação da pílula anticoncepcional levou a uma revolução sexual, não é? E que, com a pílula, agora as mulheres teriam poder sobre o próprio corpo, não é? Bom… Será? Quando “revolução sexual” é sinônimo de poder fazer sexo irrestrito — e com homens, bom frisar — numa sociedade que já nos diz que temos que estar sexualmente disponíveis para homens, isso realmente parece revolucionário — no sentido mais essencial da palavra, de algo que subverte a ordem vigente? Se antes as mulheres que faziam sexo porque queriam eram putas, agora as que não querem são “frígidas”, e a sexualidade feminina segue sendo algo regulado pela régua masculina. Os debates que realmente interessam ficam pra trás: consentimento, coerção, culpa, sexo por “dever”, estupro corretivo, estupro marital; além das coisas positivas, relacionadas à descoberta do prazer, autoconhecimento, aceitação do próprio corpo, explorar a própria sexualidade, permitir-se vivenciar seus desejos e seus amores de maneiras não convencionais, descobrir o que te excita, o que te broxa, qual é sua “frequência” sexual, e, o mais importante de tudo: fazer tudo isso por você mesma e não por outra pessoa, pensando em você, na sua relação com seu corpo em primeiro lugar, para depois pensar numa eventual pessoa parceira.
Você não gosta de mim, mas seu namorado gosta: a pornografia. Já escrevemos aqui de novo, e de novo, e de novo, sobre por que pornografia é exploração sexual de mulheres. Mas aqui, especificamente, eu gostaria de destacar a função patriarcal educativa da pornografia. Se o patriarcado se sustenta sob a exploração da sexualidade e da capacidade reprodutiva das mulheres, é preciso ensinar ao pequeninos patriarcas desde cedo como devem tratar mulheres; quanto as mulheres valem; que sexo é sobre homens machucando mulheres, não é sobre intimidade e carinho; é preciso desumanizar mulheres e fazer tudo isso em massa. A pornografia é a escola e a propaganda do patriarcado. Os meninos e adolescentes — e, infelizmente, as meninas e adolescentes também — aprendem sobre sexo e sobre as relações entre os sexos por ali.
Se você não se sente feia, isso é um problema. A indústria da “beleza” (e nesse bolo de “indústria da beleza” pode enfiar esteticistas, cirurgiões plásticos, fabricantes e marcas de produtos de beleza em geral, a própria mídia, instagrammers profissionais, tiktokers, influencers, e toda a galera que recebe o seu $ pra divulgar mais algum produto inútil e caro) tem por sua razão de ser fabricação de necessidades. É necessário mostrar que a cliente potencial não é “linda”: ela possui rugas, celulite, olheiras, poros, um rosto assimétrico, um corpo plenamente dentro da média. É necessário apontar pra ela que ela não pode ser assim, que isso é inaceitável, porque desse jeito, ela não vai estar atraente. Ela não vai estar dentro do padrão pornográfico que os homens procuram. Para manter o jeito como ela já está, acima de tudo, ela não estará gastando rios e rios de dinheiro que poderiam estar indo pra outra coisa, porque qualquer produto que se diga de “beleza” é algo completamente desnecessário, supérfluo, e todo mundo sabe disso. Por que não existem 39860859430 marcas de produtos e procedimentos de beleza para…. homens? A beleza é uma prisão e a carcereira é você mesma. Jogue a chave fora, mulher!
Mas você não é, tipo, dessas feministas lésbicas de suvaco peludo, né? Por fim, é importantíssimo, é essencial, construir uma imagem negativa precisamente dos únicos tipos de mulheres que se recusam a seguir o ABC do Patriarcado e o denunciam. É essencial afastar essas mulheres umas das outras, e garantir que essas “feministas” sempre continuarão sendo um grupo extremista insignificante, por meio de cada vez mais contra-propaganda. Porque se o que o patriarcado quer é o controle da sexualidade feminina, via pornografia e exploração sexual, então as feministas é que são as frígidas, as lésbicas, odiadoras de homens e odiadoras inclusive de outras mulheres (aquelas que estão nesses setores). Se o patriarcado quer que mulheres não tenham voz na política, as feministas (e marxistas, anarquistas, e outros grupos de mulheres) é que são as extremistas, as histéricas, as que reclamam por tudo. Se o patriarcado quer que mulheres não trabalhem e que fiquem em casa cuidando dos filhos, as feministas é que são as anti-família, anti-deus, anti-tudo, de novo frígidas, defeituosas por não quererem ser mães, petulantes. São sempre elas. Mulheres heréticas sempre existiram e sempre vão existir. A supressão da resistência acompanhada por sua re-nomeação via contrapropaganda é uma tática mais velha que andar pra trás.
Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais: tudo isso, literalmente tudo isso que foi escrito no texto, vai nos ser transmitido, em primeiro lugar, em casa. É em casa, no núcleo familiar, que a socialização — o grande processo de pegar bebês humanos cheios de potencial e ir aos poucos destruindo quem esses bebês poderiam ser — começa. Você também deve estar farta de ler textos sobre isso, mas é que a socialização dos bebês e das crianças é um momento crucial para a sociedade (e seu, nosso, futuro). Porque socialização se dá por meio de processos educacionais; por repetição de padrão; por recompensas (ou falta delas); e assim por diante. Isso vai acontecer na escola, entre amigos e amigas, na igreja (infelizmente…….), e nos marca profundamente. Instituições patriarcais refletem valores patriarcais. É preciso quebrar esse ciclo.
Pare e pense:
De quem é o seu corpo?
Você tem certeza que seu corpo é seu?
Você tem certeza que, ao longo da sua vida, você foi ensinada a priorizar o seu corpo, e não o corpo de outros seres?
Pense no que você já leu sobre, sei lá, sexo, prazer, e intimidade. Também sobre maternidade. Quanto desse conteúdo era, de fato, endereçado à leitora do texto, e quanto sequer era sobre ela?
De quem é o seu prazer? De quem são as suas “escolhas”?
De quem é a sua beleza? Por que essa beleza? Pra quê?
De quem são suas decisões?
As coisas que você faz — são porque você realmente as quer, ou porque te disseram que você deveria querê-las?
Seu corpo é, realmente, seu?