Crianças e a Soberania Alimentar
“Eu estou pescando no rio”, desenho de Christian Gabriel Mendez Montoya

O lugar da alimentação infantil na soberania alimentar

No nosso trabalho político de conscientização, educação e mobilização pela soberania alimentar, quanta importância dedicamos para tematizar a alimentação das nossas filhas e filhos e as crianças ao nosso redor? Por acaso este é um tema menor que só interessa a quem somos mães? A seguir oferecemos algumas reflexões sobre por que o tema da alimentação das nossas crianças, assim como a sua participação ativa e pelos próprios direitos no nosso movimento, é vital para o futuro da soberania alimentar.

Da desnutrição à obesidade infantil — o discurso dominante

O discurso público sobre alimentação e infância tem sido dominado por uma abordagem médico-científica: durante décadas a preocupação principal tem sido a desnutrição, então o debate girou principalmente em torno das medidas antropométricas como as estatísticas sobre o índice de peso para a idade, índice de altura para a idade e a carência de vitaminas. Recentemente, o índice de sobrepeso começa a tomar a atenção da opinião pública devido ao seu dramático aumento. O último Relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutricional da FAO determina que enquanto os índices de desnutrição seguirão reduzindo, o índice de sobrepeso irá aumentar. Portanto, o tema da obesidade infantil provavelmente se converterá no tema prioritário na agenda política das agências internacionais.

A obesidade e o sobrepeso costumavam ser considerados problemas dos países de alta renda. No entanto, a prevalência desses transtornos veio aumentando nos países de baixa e média renda, principalmente nas zonas urbanas. Na África o número de crianças com sobrepeso ou obesidade duplicou: de 5,4 milhões em 1990 para 10,6 milhões em 2014. Em 2014 cerca de metade das crianças com sobrepeso eram da Ásia; já no México calcula-se que cerca de 30% das crianças estão acima do peso.

Quais são os fatores que explicam esta pandemia? Há distintas abordagens. Por um lado, as instituições e agências internacionais propagam uma abordagem individualista, moralizante que sutilmente culpa as famílias por não alimentar bem as crianças, e por deixá-las ver TV ou usar internet em vez de fazer exercícios. Neste discurso, o estilo de vida urbano, com seus tempos, tipos de trabalho e relações sociais, muda os hábitos alimentares para outros mais modernos, ligados ao suposto desenvolvimento. A solução proposta por essa abordagem tem como foco informar e educar melhor os consumidores para que escolham os alimentos mais saudáveis nas prateleiras dos supermercados e incentivá-los a fazer exercícios.

A geopolítica da dieta “ocidental”

Evidentemente esta abordagem não pergunta sobre os determinantes históricos, políticos, socioeconômicos e culturais que condicionam o tipo de comida que se produz e os fatores que configuram os hábitos alimentares das comunidades. É uma abordagem que desconhece relações de poder, de opressão e discriminação. Não pergunta quem decidiu e como se impôs a dieta urbana ou “ocidental” que é rica em gorduras, açúcares, carboidratos refinados, carne e produtos de origem animal, mas pobre em vegetais, legumes e grãos integrais no mundo inteiro. O aumento no consumo desses produtos está estreitamente relacionado com as políticas agrícolas praticadas pela principais potências agrícolas mundiais. Estas políticas estabeleceram uma série de incentivos (subsídios de produção, pesquisa pública, ajuda para a importação) que levaram a concentrar a produção em cereais básicos (trigo, milho, arroz) ou em oleaginosas [como a soja]. Por outro lado, a liberalização do comércio agropecuário e pesqueiro, assim como o fomento aos investimentos estrangeiros em toda a cadeia produtiva agroalimentar têm desempenhado papel central na expansão das corporações transnacionais ao longo da toda a cadeia produtiva agroalimentar. Através desse sistema alimentar global corporativo, a dieta composta de “comida lixo” ou comestíveis ultraprocessados — como batatas fritas, massas e hambúrgueres prontos para consumo e refrigerantes — tem se propagado em grande velocidade por todo o planeta.

A dieta “ocidental” se impõe não só graças a fatores duros como os geopolíticos e econômicos, mas também necessita da superestrutura cultural para produzir as transformações de hábitos alimentares e culturais em função do sistema alimentar corporativo. O caso da publicidade agressiva para cativar crianças e adolescentes e formar desde jovem seus gostos e costumes alimentares, fala por si só. Veja mais no quadro sobre a Colômbia.

A alimentação escolar e a agricultura camponesa

O principal ponto de encontro até agora entre a alimentação infantil e a soberania alimentar tem se dado no campo da alimentação escolar e as políticas públicas de fomento à agricultura camponesa. Os programas públicos de alimentação escolar têm sido parte da política social em vários países do mundo. Embora já se tenha demonstrado o efeito positivo desses programas tanto para que as crianças frequentem regularmente a escola como para melhorar o seu estado nutricional, a sua cobertura segue sendo relativamente baixa e calcula-se que apenas alcança cerca de 15% das população infantil. Países como Índia, Brasil e África do Sul contam com importantes programas de alimentação escolar. No caso do Brasil, a política pública de alimentação escolar busca garantir o direito dos estudantes a alimentos saudáveis e, portanto, foi concebida em conexão com a política pública de fomento à agricultura camponesa local, estabelecendo uma cota obrigatória de abastecer cada escola com no mínimo 30% de alimentos provenientes de camponeses. Esquemas similares a esse existem em nível municipal na Europa e nos Estados Unidos. Veja adiante a experiência na ilha mediterrânea de Sardenha.

O significado da alimentação durante a infância

Uma alimentação saudável e nutritiva é vital para o bom desenvolvimento e crescimento das crianças desde a sua gestação. Talvez seja nessa etapa da vida quando a alimentação apresenta maior importância na vida dos seres humanos: não só assenta as bases de todo o desenvolvimento físico e espiritual posterior; mas também confere gosto, aroma, sabor, cor, textura aos mais profundos laços que através dos alimentos nos unem às nossas famílias e comunidades, assim como à nossa terra natal.

Apesar desse significado transcendental, o movimento pela soberania alimentar pouco tem refletido e atuado a respeito da alimentação infantil. Será porque esse tema não é percebido como masculino e de poder, mas pelo contrário da esfera feminina e reprodutiva? O caso é que a interpretação sobre esta dimensão da alimentação se encontra nas mãos das instituições e dos profissionais da saúde, e mais recentemente é um dos campos preferidos de “investimento” de grandes iniciativas corporativas de nutrição como aquelas patrocinadas pela Fundação Gates. Surgem, então, várias perguntas: como entendemos a alimentação infantil a partir de uma perspectiva de soberania alimentar? Como construímos essa perspectiva em diálogo com as próprias crianças, com professoras/es, cozinheiras/os, camponesas/os, vendedoras/es, parteiras, agentes de saúde e outras pessoas encarregadas das nossas práticas alimentares e de saúde comunitária? Como abordamos entre mães e pais uma repartição equitativa do cuidado reprodutivo de alimentar as nossas crianças com saúde e nutrição? É hora de dar à alimentação infantil a importância merecida no nosso movimento.

Relato 1 — Lutando contra o impacto da publicidade das grandes empresas da indústria alimentícia sobre as crianças das Colômbia

As crianças têm sido vistas como um setor lucrativo do mercado para as grandes empresas responsáveis por fabricar produtos comestíveis ultraprocessados, por exemplo, aqueles com alta concentração de açúcar, sal e gordura.

Tais produtos e também bebidas adoçadas têm sido uma das principais razões do crescente número de diabetes e obesidade entre crianças e adolescentes ao redor do mundo. Na Colômbia, 15,7% das crianças entre 5 e 17 anos estão acima do peso; algumas províncias como as Ilhas San Andrés, apresentam taxas próximas a 30%, colocando-as em níveis semelhantes aos do México, o país conhecido por ter os níveis mais altos de obesidade infantil do mundo.

A pandemia de obesidade infantil tem se expandido a passos muito acelerados na Colômbia: as empresas veem crianças e adolescentes como meros consumidores de produtos pobres em nutrientes. 96% de toda a publicidade voltada a crianças em um dos principais canais de TV era de comida fantasia, segundo uma levantamento de 2012. Assim, as corporações escolhem a audiência jovem como alvo de campanhas publicitárias agressivas, especialmente através da TV, internet e outdoors perto das escolas.

Portanto, a associação colombiana de pais “Red Papaz” e FIAN Colômbia, em colaboração com Educar Consumidores, Vital Strategies e Global Health Advocacy Incubator, têm desenvolvido uma ampla campanha no país chamada “Não coma mais mentiras, nem dê isso aos seus filhos” (No Comas Más Mentiras, ni se las des a tus hijos). Essa campanha ressalta: 1) que as crianças não são só consumidores. Primeira e principalmente são sujeitos de direitos sob proteção especial na Constituição Colombiana. 2) Que a pandemia de obesidade não é questão de escolhas equivocadas de estilo de vida, mas antes o resultado de escolhas sistêmicas em favor de uma dieta corporativa. Nesse sentido, a campanha insta ao Estado Colombiano a proibir a publicidade de alimentos ultraprocessados para crianças e transforme o atual sistema agroalimentar em direção à agroecologia e à soberania alimentar.

Relato 2 — As crianças e a pesca na comunidade Katosi

Embora o cais de Katosi no distrito de Mukono na região central de Uganda tenha se convertido em um cais que maneja peixes para exportação, o volume de atividades no cais tem diminuído ao longo dos anos. As imagens de um centro comercial pulsante e agitado quando éramos crianças seguem tão vívidas na minha mente. O amanhecer sobre as margens do lago lhe davam um aspecto dourado. Entre as nove da manhã e o meio-dia, o lugar ficava mais agitado com barcos que traziam peixes, mulheres que os processavam e comerciantes de todo o país que subiam ao ancoradouro para comprar peixes. Minha mãe tinha direito aos peixes dos seus dois genros todos os dias. O peixe era nosso alimento diário, comido em todas as suas formas e tamanhos enquanto todo o povo se enchia do aroma de peixe defumado à noite.” Margaret Nakato, Coordenadora de Katosi Women Development Fund e Diretora Executiva de WFF.

O estudo de base recentemente concluído por KWDT nas comunidades pesqueiras revelou que as crianças constituem mais de 54% de toda a população de comunidades pesqueiras (KWDT Baseline Report for Project Inception, 2017). O acesso ao consumo adequado de peixes em nível domiciliar é essencial para atender às necessidades nutricionais das crianças. Entretanto, o acesso reduzido a locais de pesca e recursos pesqueiros, somado à exportação de peixes, tem reduzido em muito o consumo das crianças, tanto quanto ou mais do que o dos adultos.

Durante uma entrevista com uma das mulheres no ancoradouro Nangoma, ela narrou: “Se o teu marido não é um pescador, não podes comer peixes hoje em dia. E ainda que seja pescador, às vezes pode não conseguir peixes para vender, quanto menos para comer em casa.”

KWDT tem trabalhado ativamente com mulheres e crianças no desenvolvimento de atividades e para ressaltar o seu papel na restauração das reservas pesqueiras, bem como reduzir a pressão sobre o setor pesqueiro ao apoiar as mulheres em diversas atividades para geração de renda. A melhor maneira de assegurar o direito das crianças ao consumo de peixes é garantir o acesso aos peixes para as mulheres e as comunidades locais.

Relato 3 — “Sem Terrinha”: Movimento de Trabalhadores Sem Terra, infância e soberania alimentar no Brasil

O Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) nasceu há 34 anos, e se organiza em torno de três objetivos principais: Luta pela terra, reforma agrária e socialismo. Estamos organizados em várias frentes de ação, entre as quais: produção, saúde, juventude, cultura, educação, direitos humanos.

Desde o início das primeiras ocupações, nossos filhos, os chamados “Sem Terrinha” (crianças sem terra), têm participado na organização, porque acreditamos que todos devemos nos envolver nas lutas coletivas.

Este conceito levou o MST a desenvolver ao longo do tempo atividades que tinham as nossas crianças como protagonistas. Alguns exemplos: “cirandas” infantis (espaços pedagógicos para o desenvolvimento e o cuidado); reuniões dos “Sem Terrinha”, a Jornada de Luta das escolas rurais, assim como publicações como o jornal “Sem Terrinha” e a revista “Sem Terrinha”.

Nossa experiência mais recente com os “Sem Terrinha” foi a Jornada Cultural: com o nome de “Alimentação saudável: um direito de todos” esta jornada é comemorada desde 2015 e está no centro do debate sobre Reforma Agrária popular. Participam crianças e adolescentes das escolas rurais e escolas de acampamentos de todo o país. Os principais objetivos da Jornada são:

1. Fortalecer e divulgar distintas experiências de diferentes regiões sobre comida saudável e a sua relação com a Reforma Agrária popular;
2. Trabalhar conjuntamente com as famílias sobre o tema da alimentação e da produção de alimentos, tanto em assentamentos da reforma agrária como em acampamentos;
3. Contribuir para a educação alimentar das famílias sem terra e a luta geral em prol de uma alimentação adequada livre de agrotóxicos;
4. Fortalecer as iniciativas para reorganizar a alimentação nas escolas;
5. Estudar e debater as relações entre alimentação saudável, soberania alimentar, agroecologia, agricultura camponesa e Reforma Agrária popular;
6. Introduzir nas escolas fundamentais o debate sobre a agroecologia e sobre as práticas de agricultura ecológica;
7. Relançar o debate sobre como garantir que se mantenha o vínculo entre educação, trabalho socialmente produtivo e conteúdos educativos.

Durante a Jornada foram organizadas centenas de atividades em todo o país, desde estudos específicos em colégios sobre hábitos alimentares e a história dos alimentos, compreendendo o que é produzido nos assentamentos da reforma agrária, pesquisas sobre sistemas agroecológicos, oficinas relacionadas com a culinária local, práticas de campo e experiências no campo da agroecologia.

Os elementos fundamentais das lutas do MST também estiveram presentes durante as atividades da Jornada, por exemplo foram organizadas peças de teatro, campanhas de conscientização, conversas e marchas para denunciar não apenas o uso de agrotóxicos e de sementes transgênicas, como também o monopólio e a padronização dos alimentos que vem sendo impostos pelas empresas transnacionais e pelo agronegócio.

Durante a Jornada propriamente dita, nas escolas onde se promoveu o debate foi produzida uma mudança substancial, com a erradicação dos refrigerantes e alimentos processados e a introdução de alimentos de produção agroecológica local dos assentamentos, assim como a criação de hortas para fornecer verduras aos colégios e a implementação de um banco de sementes nativas.

Eduquemos para fazer compreender que comer é um ato político! Esse é um trabalho fundamental que motiva as nossas lutas! Lutemos para construir uma Reforma Agrária popular!

Relato 4 — “SATU PO IMPARAI” (Aprendendo com o campo): Projeto educativo sobre meio ambiente e alimentação escolar

O Projeto foi fundado em 2007 para aproximar a escola do mundo rural e ao mesmo tempo valorizar o papel multifuncional das granjas. Também buscava reforçar o papel das fazendas como transmissora do conhecimento, do patrimônio e dos aromas dos alimentos produzidos localmente, enquanto enfatiza o seu caráter sustentável do ponto de vista ambiental, social e econômico.
As três atuações principais são: visitas escolares a granjas-escola (fattorie didattiche em italiano), desenvolvimento de redes entre granjas-escola e as Ações de Alimentação Escolar, de que falaremos na sequência.

As partes interessadas nesta ação são a Província de Medio Campidano, a Agência Regional de Laore Sardenha, o Centro de Saúde local, as escolas, as granjas, os gestores dos refeitórios escolares e as associações pertinentes. Todos eles estabeleceram um grupo de trabalho em 2011 com o seguinte programa de trabalho:

1. Análise da situação atual dos refeitórios escolares;
2. Desenvolvimento da documentação necessária para a licitação de alimentação escolar sustentável, de qualidade, de 0 km (produzida localmente);
3. Distribuição da documentação da licitação entre os municípios, com a supervisão do serviço de refeitórios escolares quanto à conformidade com a documentação e experimentando com novas práticas.

A documentação necessária para a licitação foi elaborada em junho de 2011 e remetida a 24 autoridades locais na província que fornece serviços de alimentação escolar. O documento continha as propostas seguintes:

1. 70% dos produtos deve ter uma certificação de qualidade (DOP [Denominação de Origem Protegida], IGP [Indicação Geográfica Protegida], ecológico), tradicional, local e com cadeia curta de abastecimento, do qual 30% deve ser ecológico;
2. Os lanches devem ser preparados com produtos locais;
3. Deve-se elaborar um plano de educação alimentar;
4. Outros elementos de sustentabilidade ambiental: águas, vasilhas e talheres descartáveis devem ser biodegradáveis e compostáveis, sabão e detergente ecológicos, eletrodomésticos com economia de energia, com gestão de resíduos.

Três municípios adotaram a documentação de licitação em 2011 e ao longo de 2012 e 2013 foi a vez da maioria das demais autoridades locais. A julgar pelo seguimento e reconhecimento que recebeu depois, podemos dizer que o projeto (que foi sistematizado numa publicação em 2015) alcançou os seus objetivos muito além das expectativas mais otimistas.

O projeto conferiu à alimentação um valor “social”, estimulando relações positivas na comunidade e criando consciência e sensibilizando produtores e consumidores. Também abriu um debate mais amplo sobre a “educação em alimentação”, a equidade (alimentos da mesma qualidade em todas as escolas para todos) e a soberania alimentar.


Tradução parcial do Boletim Nyéléni número 33 — Crianças e a Soberania Alimentar, de fevereiro de 2018