Para a construção de um modelo alternativo de desenvolvimento econômico no território sírio do Curdistão
As mulheres de Rojava contribuíram para a implementação de um sistema econômico cujo objetivo é “aumentar os recursos da sociedade em vez de explorá-los”, ou seja, um modelo de desenvolvimento alternativo que se apoia nos princípios da economia social. O comunalismo trinomial, a ecologia e a libertação das mulheres se conciliam em Rojava e se materializam em dezenas de projetos focados na promoção de atividades agrícolas e de produção de alimentos com as quais busca enfrentar o subdesenvolvimento da região, além de contribuir para a solução de questões relativas à escassez de água e eletricidade, desmatamento, gestão de resíduos, poluição, etc. Por isso, é relevante expor os projetos implementados até o momento, bem como seu escopo, limitações e desafios, dada a turbulenta situação local, regional e internacional que os contextualiza.
ANTECEDENTES
A partir de 1946, a Síria independente adotou uma ideologia nacionalista que não apenas excluía determinados grupos étnicos política e socialmente, mas também os apresentava como uma ameaça à identidade árabe, uma prática que se intensificou a partir de 1963, após a chegada ao poder do Partido Socialista Árabe Baath. Esse regime desenvolveu uma economia centralizada que transformou Rojava (uma região fértil do norte com clima mediterrâneo e maioria curda) [1] no celeiro do país, por meio de práticas como o plantio de monoculturas como trigo, feijão ou algodão, cultivadas com base em fertilizantes, pesticidas e outros produtos químicos que deterioraram significativamente o meio ambiente. Além disso, devido à sua natureza colonial, o governo sírio garantiu que fosse mantida pobre e dependente a região de Rojava, sendo que suas matérias-primas eram processadas em cidades como Alepo, Homs ou Hamã e depois voltavam para o consumo.
Além da situação de exploração mantida por décadas nas terras de Rojava, são acrescentadas as condições de vida da população curda, vítimas de assimilação cultural e violações sistemáticas de seus direitos humanos (Montgomery, 2005). Assim, não surpreende que o contexto dos movimentos populares ou da Primavera Árabe tenha proporcionado uma oportunidade para a população curda de Rojava se libertar do controle do regime sírio e começar a materializar, a partir de julho de 2012, uma experiência política de uma “democracia sem Estado” (denominada “Sistema Federal Democrático de Rojava e do Norte da Síria” em março de 2016).
A “revolução de Rojava” atraiu poderosamente a atenção internacional, não apenas pelo estabelecimento de instituições autônomas, mas também pelo protagonismo que as mulheres desempenharam em todas as áreas, inclusive na construção de um modelo de desenvolvimento baseado nos princípios da economia social com o objetivo de “aumentar os recursos da sociedade em vez de explorá-los” (Öcalan, 2011) e, consequentemente, garantir a distribuição justa da riqueza.
A TEORIA
O projeto político e social de Rojava é baseado no modelo de confederalismo democrático, que o líder do movimento curdo Abdullah Öcalan retoma do ecologista Murray Bookchin, baseado em três pilares: sociedade autônoma e democrática, sustentabilidade ecológica e igualdade entre os sexos [2]. A intenção é democratizar todos os setores da sociedade. Assim, por exemplo, no campo econômico, os modelos alternativos de desenvolvimento se originam com base no comunalismo (comunas como unidades básicas de organização e tomada de decisão) e cooperativismo. Nesse sentido, dentro dos três cantões autônomos de Rojava (Afrin, Kobani e Jazira), foi estabelecido um complexo sistema de tomada de decisão que é articulado de baixo para cima, a partir da comuna, passando pelos bairros e distritos até chegar ao Conselho Popular do Curdistão Ocidental. Em cada um desses níveis, há comissões encarregadas de questões econômicas, de segurança e defesa, de transmitir justiça, de educação, de política, de assuntos das mulheres, de sociedade civil e de saúde. Cada comissão tem dois porta-vozes, um homem e uma mulher, e existem até instituições somente para mulheres [3], que constituem estruturas paralelas e totalmente autônomas e obedecem à lógica do povo de Rojava, que afirma que “uma das coisas que o século XX nos ensinou é que você não pode se livrar do capitalismo sem se livrar do Estado, e não pode se livrar dele sem eliminar o patriarcado” (Knapp et al., 2016).
Como pode ser observado, a questão da igualdade entre os sexos ocupa um lugar central na revolução de Rojava, pois “o nível de liberdade das mulheres determina o nível de liberdade de sua sociedade” (Öcalan, 2013). Isso deu origem ao conceito da jineologia (estudo, ciência ou sociologia da libertação das mulheres), cujo objetivo é superar as dicotomias entre os sexos que têm servido para justificar as relações de dominação, sendo o patriarcado a manifestação mais completa. Sob essa ideologia, foi criada a Yekîtiya Star (mais tarde renomeada para Kongreya Star) [4], uma instituição guarda-chuva que desde 2005 organiza e coordena a participação das mulheres em todas as áreas de autonomia democrática.
A PRÁTICA: ECOFEMINISMO EM ROJAVA
O isolamento e o subdesenvolvimento econômico que caracterizavam Rojava representavam tanto uma desvantagem como a oportunidade ideal para retornar a um comunalismo primitivo baseado nas formas tradicionais de produção que, fundamentadas na solidariedade, também representavam o início de um modelo alternativo de desenvolvimento favorável à emancipação de sua sociedade. Tudo isso apesar da situação instável na Síria, na qual uma multiplicidade de atores locais, regionais e internacionais continua disputando território, recursos e aceitação popular.
As terras foram socializadas e, com o apoio das comissões econômicas e da Kongreya Star, as mulheres de Rojava (curdas, árabes, sírias e armênias, principalmente) iniciaram a formação de comunas e cooperativas agrícolas, pecuárias, produtoras de alimentos e de têxteis. Hoje já são dezenas, dentre as quais Warshin, Shieler, Dastar, Adar e Lorin são as mais mencionadas em portais como o Relatório Rojava [5] e Economia Cooperativa [6], dedicados à disseminação de resultados econômicos e ecológicos do ativismo de mulheres em Rojava. Com as comunas e cooperativas, além de contribuir para a resistência anticapitalista, promove-se a entrada das mulheres em atividades nas quais tradicionalmente não participavam, ao mesmo tempo em que superam a situação de dependência econômica de seus pais ou seus maridos.
A tarefa de diversificar os cultivos também produziu os primeiros frutos. Atualmente, são produzidos lentilha, grão-de-bico, tomate, espinafre, azeitona etc. Também foi feita a distribuição de mais de vinte mil dunams [7] de superfície para trabalhos agrícolas, que estão livres de minas terrestres. Além disso, as mulheres de Rojava têm trabalhado para melhorar as condições da água e do solo através do uso de resíduos orgânicos e outras práticas ecológicas. Para superar os obstáculos que dificultam a autossuficiência alimentar, as comissões econômicas lançaram o Plano Rojava, que, entre outros, incluiu a campanha “Alimente a revolução. Agricultura orgânica em Rojava” [8] e que até meados de 2016 coletava doações em nível internacional.
Por fim, vale ressaltar que em junho de 2017 foi realizada na cidade de Qamishli (cantão de Jazira) a “Primeira Conferência sobre Economia de Mulheres do Norte da Síria” com a máxima “As mulheres são a base de uma economia justa”. As participantes reiteraram o objetivo de alcançar a autossuficiência econômica por meio da multiplicação de cooperativas, a abertura de escolas que priorizam o ensino da economia social, a criação de comitês e escritórios encarregados de assuntos comerciais, o fornecimento de máquinas agrícolas etc. (Economia cooperativa, 2017). Foi impressionante a projeção de vídeos em que grupos de mulheres brasileiras e mexicanas expressaram seu apoio às mulheres de Rojava, que, no caso do México, demonstra o desejo de movimentos como o zapatista de aumentar o diálogo e o intercâmbio de aprendizado com a experiência autonômica de Rojava. Isso é corroborado em acontecimentos como o de 6 de maio de 2015, em San Cristóbal de Las Casas, no âmbito do seminário “Pensamento crítico frente à hidra capitalista”, no qual o ativista curdo Havin Güneser fez um discurso de solidariedade do “povo da montanha” para com o “povo da selva” [9]. Igualmente reveladora foi a publicação, em junho de 2017, de uma carta pela qual o Movimento das Mulheres do Curdistão expressou seu apoio a María de Jesus Patricio Martínez, candidata do Congresso Nacional Indígena à Presidência do México [10].
DESAFIOS
A revolução de Rojava coexiste com eventos que colocaram em xeque a estabilidade do Estado e a convivência social. Sem dúvida, a presença, o progresso e os retrocessos do autodenominado Estado Islâmico, de outros grupos extremistas e de atores extrarregionais com interesses estratégicos na área dificultaram o progresso do projeto de Rojava, uma situação que seus protagonistas preferem considerar como uma oportunidade de fortalecimento interno, graças ao protecionismo forçado ao qual foram compelidos e que justifica perfeitamente todos os mecanismos de autodefesa que praticam (incluindo a questão ecológica).
À violência generalizada que afeta o país, adiciona-se o embargo ao qual o governo turco e o governo regional do Curdistão [11] sujeitam Rojava. A causa é a incompatibilidade de seus projetos políticos e quão ameaçadora é para eles (e para o resto do mundo capitalista) a alternativa de desenvolvimento econômico que se está consolidando, que não pretende implementar o mesmo tipo de administração de seus recursos estratégicos (o petróleo), nem estabelecer relações semelhantes de cumplicidade e dependência com o Ocidente.
No nível local, os desafios enfrentados pelo ecofeminismo de Rojava e seu modelo de desenvolvimento alternativo têm a ver com poluição do ar, escassez e tratamento de água, gerenciamento de resíduos, falta de eletricidade, estabelecimento de uma indústria que atenda a todas as necessidades da população (incluindo o fornecimento de petróleo), bem como a execução de projetos (como a abertura de um Parque Nacional, atualmente em discussão) que revertem a situação alarmante de desmatamento causada pelo sistema econômico anterior, que não hesitou em substituir florestas e suas espécies animais por terras de plantio.
Apesar da existência de um contrato social que garanta que os recursos naturais pertençam à sociedade, é urgente regular seu uso, bem como promulgar leis que regulem os processos de produção e consumo. Tudo isso ajudará a fortalecer o projeto Rojava, apesar da incerteza do futuro político sírio.
Por: Erika S. Aguilar Silva, para a Revista Ecología Política (PDF)
NOTAS:
[1] Os curdos são um povo nativo do Oriente Médio que, após o desaparecimento do Império Otomano, se dispersou principalmente entre Turquia, Iraque, Irã, Síria e Armênia. Hoje é composto de cerca de quarenta milhões de pessoas. Embora o objetivo original do movimento fosse o estabelecimento de seu próprio Estado (Curdistão), atualmente os projetos desse povo se diversificaram e dependem do país em que estão localizados.
[2] Para saber mais, recomenda-se a leitura dos textos de Biehl (1991), Bookchin (1982) e Sjoberg (2013).
[3] Por exemplo, os Comitês de Paz das Mulheres (para resolver conflitos geralmente relacionados à violência doméstica) ou as Unidades de Proteção às Mulheres (órgãos militares que combatem, entre outros, o chamado Estado Islâmico).
[4] “União Star” e “Congresso Star”, respectivamente. “Star” é uma alusão à deusa Ishtar.
[5] https://rojavareport.wordpress.com/
[6] https://cooperativeeconomy.info/
[7] Um dunam equivale aproximadamente a mil metros quadrados.
[8] https://www.youtube.com/watch?v=WETEME5JQSM
[9] http://radiozapatista.org/?p=13020
[10] https://espoirchiapas.blogspot.mx/2017/06/mujeres-de-kurdistan-marichuy-los.html
[11] Região autônoma do norte do Iraque.
BIBLIOGRAFIA:
BIEHL, J., 1991. Rethinking ecofeminist politics. Boston, South End Press.
BOOKCHIN, M., 1982. The ecology of freedom: the emergence and dissolution of hierarchy. Palo Alto, Cheshire Books.
CO-OPERATIVE ECONOMY, 2017. “Report from the First Women’s Economy Conference of North Syria”. Disponible en: https://cooperativeeconomy.info/report-from-the-first-womens-economy-conference-of-north-syria/, consultado el 1 de octubre de 2017.
KNAPP, M., A. FLACH e E. AYBOGA, 2016. Revolution in Rojava. Democratic autonomy and women’s liberation in Syrian Kurdistan. Londres, Pluto Press (traducción de J. Biehl).
MONTGOMERY, H., 2005. The kurds of Syria: an existence denied, Berlín, EZKS.
ÖCALAN, A., 2011. Democratic confederalism, Londres y Colonia, Transmedia Publishing Ltd. Disponible en: http://www.freeocalan.org/wp-content/uploads/2012/09/Ocalan-Democratic-Confederalism.pdf, consultado el 5 de junio de 2017.
ÖCALAN, A., 2013. Liberating life: woman’s revolution. Colonia, International Initiative Edition/Mesopotamian Publishers. Disponible en: http://www.freeocalan.org/wp-content/uploads/2014/06/liberating-Lifefinal.pdf, consultado el 6 de junio de 2017.
SJOBERG, L., 2013. Gendering global conflict: toward a feminist theory of war. Nueva York, Columbia University Press.