ginecologica

Escutamos falar sobre violência ginecológica com certa frequência no meio feminista, mas ela não é facilmente reconhecida pela população em geral. Mesmo as mulheres e meninas que a sofrem podem ficar confusas sobre o que está acontecendo, porque a parte agressora é uma figura de autoridade em quem elas devem confiar: um médico.

Fora que normalmente a violência ocorre quando a mulher ou a menina está numa posição muito vulnerável, que pode ser sozinha e parcialmente desnuda em frente a um homem, quando está prestes a parir e tomada de muitas dores, ou ainda quando está inconsciente por efeito de anestesia.

Esta última é pouquíssimo falada no Brasil e, por isso não temos dados nacionais consistentes ainda, mas, se analisarmos o que acontece nos países dos quais copiamos os modelos médicos, podemos ter uma ideia.

Um relatório da Divisão de Ética da Universidade de Nova York afirmou que exames pélvicos não consentidos em pacientes sob anestesia para cirurgias não relacionadas eram legais em 46 dos 50 estados dos Estados Unidos, em 2018. A jornalista Zoë Naseef, que estudou o tema, afirma que é muito comum em todo o mundo estudantes de medicina em hospitais universitários treinarem exames pélvicos em mulheres desacordadas, sem o consentimento delas. Em grande parte dos casos, elas nem são informadas após os exames terem sido feitos.¹

A pesquisadora médica Phoebe Friesen também atesta que essa prática é comum. De 400 estudantes de medicina em 5 universidades da Filadélfia, 90% admitiu que fez exame pélvico em mulheres desacordadas sem saber se havia consentimento. Na Universidade de Oklahoma, a grande maioria dos estudantes de medicina havia feito exames pélvicos em pacientes sob anestesia, sendo que, em quase três quartos desses casos, as mulheres não consentiram com o exame. No Reino Unido, 24% dos estudantes admitiram já terem realizado a prática sem consentimento em mulheres anestesiadas, e afirmaram que, muitas vezes, mais de um estudante examina a mesma paciente.²

Friensen aponta ainda que, em fóruns de discussão online dedicados a estudantes de medicina, exames pélvicos em mulheres anestesiadas que não consentiram são defendidos como necessários para o treinamento médico e muitos dos participantes consideram alarmista quem se pronuncia contra. A pesquisadora afirma que, sem grande surpresa, a vasta maioria das mulheres deseja ser informada e que lhes obtenham consentimento antes de um exame pélvico.²

No Canadá, 72% dos estudantes de medicina admitiram ter feito um exame pélvico em uma paciente anestesiada, sendo que um dos argumentos que eles utilizavam era justamente que provavelmente muitas pacientes diriam “não” se lhes perguntassem.³

Não perguntar a mulheres se elas estão de acordo com um exame pélvico desnecessário, ainda mais supondo que elas não consentiriam, só pode ser considerada uma prática corrente porque vivemos num mundo patriarcal, em que os corpos das mulheres são objetificados.

Mulheres que suspeitam que tenham passado por isso e questionaram seus médicos sobre o procedimento muitas vezes são confrontadas com respostas absurdas como “são muitas pacientes, não tenho como saber se aconteceu com você”, o que demonstra mais ainda como a prática é generalizada. Nos EUA, houve também um caso em que o hospital se negou a atender uma mulher que tinha expressamente comunicado que não autorizava um exame pélvico enquanto estivesse sob efeito de anestesia.⁴

Quando uma hashtag foi lançada para que as mulheres contassem seus casos de abuso relacionados ao tema (#MeTooPelvic), muitas mulheres dos EUA começaram a pedir seus históricos médicos aos hospitais, que passaram a bloqueá-los. Depois de muitas denúncias, em 2020 já havia 10 estados dos EUA que proibiam a prática.⁵

Tidas como objetos, mulheres não têm voz sobre o que acontece consigo próprias. Mulheres devem ter autonomia sobre seus próprios corpos. Os homens não vão nos dar essa autonomia do nada, precisamos denunciar essas práticas como desumanizantes e antiéticas, bem como toda e qualquer prática que venha a retirar da mulher independência sobre si mesma.

Assistimos a uma onda conservadora no mundo, que tende a piorar a situação das mulheres. No Brasil não é diferente. Em junho de 2020, o deputado estadual Doutor Gomes (PSC-AM) disse que havia “um exagero sobre a questão da violência obstétrica”⁶. Também assistimos ao governo Bolsonaro atacar com frequência os direitos das mulheres, em particular ao aborto legal. Diante desse tipo de pensamento reacionário generalizado em nossa sociedade, que coloca a própria violência ginecológica em dúvida, as mulheres são coagidas a ficarem em silêncio até mesmo diante dos casos em que elas sabem que sofreram violência. Como então que as mulheres que apenas desconfiam das violências, porque estavam anestesiadas no momento em que aconteceu, poderiam investigar suas suspeitas?

As pessoas podem até saber que um homem enfiar a mão na vagina de uma mulher desacordada, que não sabe que isso está acontecendo, é estupro, mas quando colocamos isso num contexto médico gostam de florear e chamar de outra coisa, de estudo ou de exame por exemplo, quando não é. Pode parecer incrível que ainda não saibamos o que é violação e consentimento, mas esta é a realidade atual e precisamos de um debate amplo na sociedade sobre isso. Os corpos das mulheres não podem ser objetos de testes para médicos.

Fontes:
1. NASSEF, ZOË. Doctors Regularly Give Anesthesized Patients Non-Consensual Pelvic Exams — And This Needs To Stop. Bust, 12 de setembro de 2018. 
2. FRIESEN, Phoebe. Educational pelvic exams on anesthetized women: Why consent matters. Bioethics, 2018.
3. CAPLAN, Arthur L. Pelvic Exams Done on Anesthetized Women Without Consent: Still Happening. Medscape, 2 de maio de 2018. 
4. Para ler mais depoimentos de mulheres, acesse este link (português) e este link (inglês).
5. BURKE, Lilah. Med Schools Use Unconscious Women for Pelvic Exam Practice. Inside Higher ED, 19 de fevereiro de 2020. 
6. CAMPINAS, Felipe. Deputado diz que ‘há exagero’ sobre violência obstétrica em Manaus e sugere filmar partos. Amazonas Atual, 23 de junho de 2020.