Mulheres, as variáveis incômodas.
Quando lhe convém, a medicina trata mulheres como homens e isso está matando mulheres.

Faz poucos meses que perdi uma tia muito querida. Apesar da idade e da saúde frágil, as mazelas estavam sendo bem administradas. Sob o cuidado atento e amoroso de sua filha, acreditei que teríamos tia A. adoravelmente se espantando com as coisas mais simples do mundo ainda por uns bons anos. Sua morte repentina foi um choque.

Tia A. apresentou os sintomas clássicos de infarto em mulheres. Ela sentiu dificuldade para respirar, dor nas costas e mal estar geral. Mas nenhum dos socorristas reconheceu os sinais ou pensou em fazer um simples eletrocardiograma que poderia tê-la salvado, possivelmente porque ela não apresentou a famosa “dor no peito”, que é um sintoma clássico de infarto em homens.


Houve um tempo em que eram as mulheres, frequentemente as de mais idade, que eram procuradas para resolver questões de saúde. Cuidadoras primárias dos seus grupos, responsáveis pela alimentação e pela assistência aos doentes e feridos, não é difícil imaginar uma cozinha virando um laboratório médico, e receitas sendo passadas de mulheres para mulheres. Mas esse foram outros tempos. Como todos os campos tradicionais de conhecimento, também a medicina foi masculinizada[1], ou seja, passou a ser transmitida, ensinada e percebida historicamente como uma ciência de homens, um lugar onde eles são as autoridades.

O processo como se deu essa virada é assunto para outro dia, mas esse trecho de Caliban e a Bruxa é uma boa informação para ter em mente ao ler esse texto:

“As mulheres foram expropriadas de um patrimônio de conhecimento empírico, no que diz respeito a ervas e remédios curativos, que haviam acumulado e transmitido de geração em geração, sua perda abrindo caminho para um novo nicho: o surgimento da medicina profissional, que se erguia diante das “classes baixas” como uma parede de conhecimento científico incontestável, inacessível e estranho, apesar de sua pretensão curativa.” (meu grifo)

Ilustração de 1675 mostrando mulheres usando a cozinha para o preparo de tinturas e remédios.

Para já, o que me motivou a escrever foi a morte de tia A. e saber que muitas de nós mulheres ainda não nos demos conta de que a medicina também é uma ciência para os homens. Que nós nos beneficiemos dela, é, sem trocadilho, um efeito colateral. Um outro caso familiar é perfeito para ilustrar isso: alguns anos atrás, meu pai foi ao hospital fazer um exame e sentiu um forte enjoo logo depois. O médico socorrista pediu um eletro na hora, mesmo sem ele se queixar da dor clássica. Ele de fato estava enfartando e foi atendido com a prontidão necessária para salvá-lo.

É complicado precisar onde nossos problemas começam, mas a hora de falar dos sintomas e como esse ato é percebido culturalmente é um bom lugar. Obviamente, profissionais de saúde não são exceção e também têm noções estereotipadas sobre mulheres. Somos vistas como mais instáveis, mais inclinadas a exagerar, ao mesmo tempo em que pretensamente somos capazes de tolerar a dor melhor pois lidamos com as “dores femininas”. As mulheres ocupamos esse lugar impossível da “louca por remédios”, “viciada em atenção”, “exagerada” versus “mulheres aguentam mais dor”, “mulheres são mais fortes que homens para sentir dor”. No cuidado médico nós também somos tratada de acordo com essa localização.

“Em um estudo com cerca de 1.000 pessoas que visitaram uma sala de emergência, homens e mulheres relataram escores de dor semelhantes, mas as mulheres eram 13 a 25 por cento menos probabilidade que os homens de receber opióides. Além disso, as mulheres esperaram mais tempo para receber sua medicação para dor — 65 minutos versus 49 minutos em média para os homens. O estudo foi publicado na revista Academic Emergency Medicine.” [2]

Não apenas temos mais chance ter nossas dores ignoradas como, quando reconhecidas, ainda ficamos mais tempo esperando pela medicação, afinal, mulheres têm mais resistência à dor, não é? Não. Não é. Na verdade, algumas pesquisas mostram que mulheres tem limiar de dor mais baixo e maior índice de dor do que os homens.

Tem outro estudo que mostra que homens recebem mais medicamentos pra dor, enquanto mulheres são mais propensas a receber sedativos. Mulheres sedadas não reclamam. Aqui tenho que dizer que saber dessa diferença sutil no estado de inconsciência, a diferença entre dormir porque a dor diminuiu e apagar apesar da dor porque foi sedada, me leva inevitavelmente para os casos de abuso sexual de mulheres sob cuidados médicos. Me lembro do infame Roger Abdemassif, dos estudantes de medicina que “treinam” exames vaginais em pacientes sedadas e que nunca consentiram com tal procedimento, dos inúmeros casos de médicos e enfermeiros que sedam pacientes para estuprá-las. É verdade que para as mulheres os problemas no cuidado médico podem começar no atendimento inicial, mas estão longe de acabar por aí.

“O corpo feminino é diferente do masculino em cada uma das suas células, mas geralmente os mesmos tratamentos são prescritos para ambos os sexos e isso não tem servido bem as mulheres” diz a médica pesquisadora Alyson McGregor, autora do livro Sex Matters (Sexo Importa, em tradução livre). Nessa entrevista, a cardiologista fala sobre como o padrão da medicina é masculino: a maior parte dos estudos são feitos em células masculinas, em animais do sexo masculino, em voluntários do sexo masculino.

Mulheres em idade fértil foram deixadas de fora logo no comecinho da pesquisa médica organizada. O motivo alegado era protegê-las, “mas para os médicos e para a indústria farmacêutica, também tornava o trabalho mais rápido, fácil e barato, retirando variáveis incômodas, como ciclos menstruais.” Incômodas. Meu riso descrente é inevitável ao escrever isso. Porque metade da população humana tem oscilações hormonais e porque isso tornaria as pesquisas mais caras, essa mesma metade é deixada de fora dos avanços médicos. ‘Precisamos protegê-las”. Ah, vá. A ciência médica é dos homens e para os homens, e são os homens também que lucram com ela. O trecho de Caliban e a Bruxa era a pista, lembra?

Voltando aos nossos cromossomos, o fato é que a diferença no nível celular afeta os hormônios, os tecidos e os sistemas, e consequentemente também afeta todas as doenças e a maneira como elas devem ser tratadas.

“As mulheres metabolizam os medicamentos de maneira diferente (existem várias razões para isso, mas muitas estão ligadas a diferentes hormônios e diferentes níveis de enzimas); portanto, certos medicamentos permanecem no sistema por mais tempo ou caem para níveis perigosamente baixos em determinados pontos do ciclo menstrual.”

O caso do Zolpiden, um sonífero que foi aprovado pelo todo poderoso FDA, uma espécie de Anvisa estadunidense, me veem a lembrança imediatamente. Conheço muitas mulheres que usam essa droga, muitas. Não vou entrar no mérito do que faz tantas de nós procurar ajuda pra dormir, o que fato é a dose de 10mg Zolpidem foi aprovada igualmente para homens e mulheres, e várias delas acordavam no dia seguinte ainda grogues, ainda sentindo os efeitos da medicação. Foi preciso que muitas pacientes relatassem isso para que a dose fosse reavaliada e mudada para 5mg para mulheres. Nesse ponto acho que vale a pena compartilhar a informação de que a indústria farmacêutica é responsável por 75% do orçamento de revisão de medicamentos da FDA. Se isso é um problema ético eu deixo para cada uma avaliar.

Alguns medicamentos — analgésicos, antidepressivos, antibióticos — tem como efeito colateral alterações nos batimentos cardíacos. “Para as mulheres que tomam vários medicamentos (e estatisticamente, é mais provável que as mulheres tomem vários medicamentos), o risco combinados dessas alterações pode variar de simples arritmia a morte súbita cardíaca.”

A dra. McGregor diz que o que funciona para os homens, pode ser perigoso ou até fatal para as mulheres. Ela dá o exemplo de uma uma mulher de 40 anos que chegou na emergência com dor nas costas (de novo ela) e a quem foi prescrito analgésicos, depois comprimidos para dormir (de novo eles), esteroides, remédios para ansiedade e, no final, antibiótico para infecção urinária. Ela acredita que essa sequência causou morte súbita cardíaca na paciente, algo que ela diz “acontecer mais do que muitos médicos gostariam de admitir”.

Falar do ciclo menstrual é lembrar das coisas que “só” acontecem com mulheres, e nesse ponto é possível que algumas já tenham lembrado que essa metade da humanidade ganhou uma especialidade só para ela. Não, não estou falando da cirurgia plástica e das centenas de mulheres vitimadas por implantes que envenenam seus corpos. Estou falando da ginecologia, e é uma pena que esse texto já está longo e eu não posso me demorar no fato de que os conhecimentos obstétricos também foram expropriadas das mulheres, de que o pai da ginecologia moderna era um sádico que fazia operações experimentais sem anestesia em mulheres negras escravizadas, ou nos inúmeros casos de violência obstétrica que também tem mais impacto nas mulheres pobres e racializadas.

Apenas o evento do parto já daria um outro texto, em que possivelmente falaria sobre como ele saiu das mãos das mulheres parteiras, que também eram maioritariamente das “classes baixas”, diretamente para as mãos dos homens nas salas frias, brancas e mecanizadas da nova medicina masculinizada, onde seus grito de dor são desprezados com piadas misóginas, onde mulheres parem algemadas, sozinhas, sofrem cesáreas desnecessárias, levam o “ponto do marido”, sofrem episiotomia — são histórias de terror.

Mas divago…

Quero falar dos campos de pesquisa relacionados a fertilidade e métodos contraceptivos. E falar da história da pílula é falar de uma história não apenas sexista, e como não poderia deixar de ser, também racista e classista, e que não por acaso surge de mãos dadas com ideias eugenistas.

Os “pioneiros da pílula” testaram primeiro em algumas mulheres pobres estadunidenses sem que elas soubessem, mas os efeitos colaterais eram tão severos que elas não suportavam participar como cobaias e abandonavam a pesquisa. O que fazer então? Ora, às favas com o cavalheirismo aqui, lá partiram eles pra testar nas mulheres pobres de Porto Rico sem que elas soubessem. Isto é, testar naquelas que já não haviam sido esterilizadas sem seu consentimento ou conhecimento numa operação de “contingência populacional” nos anos 60.

As mulheres porto-riquenhas também não aguentaram os efeitos, os dois pioneiros voltaram para os EUA e então tiveram a não pioneira ideia de usar mulheres que não podiam se negar a participar do estudo, “…mulheres internadas em um asilo mental de Massachusetts […] e mulheres matriculadas na faculdade de medicina em San Juan que foram informadas de que tinham de participar do exame médico ou enfrentar a expulsão da faculdade”. Novamente, essas mulheres não foram informadas sobre o que era a pílula.

É inegável a revolução que a pílula causou na década de 1960, permitindo às mulheres ter algum controle sobre sua fertilidade. Isso também permitiu mais disponibilidade de mão de obra, dado imensamente apreciado pelo capitalismo, vale dizer. Mas mesmo assim foi feito no melhor interesse das mulheres certo? Hum, não exatamente. Os tais pioneiros chegaram a considerar o controle de natalidade hormonal para homens, mas “ele foi rejeitado devido ao número de efeitos colaterais, incluindo diminuição dos testículos”. Acreditava-se que as mulheres tolerariam os efeitos colaterais melhor, já que eles exigiam uma melhor qualidade de vida.”. Pasme.

O pior é que eles estavam certos. Forçadas a aguentar os efeitos, mulheres acabam precisando de outros medicamentos para tratar do que foi causado por um remédio anterior. E já vimos onde essa espiral pode nos levar. Um estudo da JAMA Psychiatry apontou uma correlação entre o uso de contraceptivos e depressão. Foi descoberto que as mulheres que usavam anticoncepcionais hormonais eram significativamente mais propensas a serem medicadas com antidepressivos. “O estudo encontrou uma correlação particularmente forte entre as adolescentes que usam métodos contraceptivos hormonais e a depressão: houve um aumento de 80 por cento no risco dessas adolescentes começarem a tomar antidepressivos depois de usar contraceptivos hormonais.”

E assim, desde o lançamento da primeira pílula até hoje, mulheres continuam sem ser informadas corretamente dos efeitos colaterais. Naquela época a pílula não tinha nem bula, hoje tem, mas poucos médicos alertam sobre a interação com outros medicamentos, ou falam sobre como o controle hormonal da natalidade tem sido relacionado à depressão, doenças autoimunes, câncer cervical, coágulos sanguíneos fatais e outras condições crônicas. Mais da metade das mulheres que usam anticoncepcionais hormonais o fazem por motivos não contraceptivos, como acne, períodos irregulares ou dolorosos, SOP e endometriose. Eles não são a cura para nada disso mas mesmo assim continuam sendo prescritos como uma panaceia para todos os problemas hormonais e reprodutivos. Apesar do que faz à saúde feminina.

Contei no início a razão que me motivou a escrever sobre esse assunto, mas não contei como desisti várias vezes antes de finalmente fazê-lo. Nesses tempos de retrocesso anticiência e com os poucos direitos reprodutivos das mulheres sob constante ataque, falar dos problemas da pesquisa médica e da contracepção hormonal exige cuidado. Mas realmente acredito que é urgente conhecer essas informações, discutir os impactos mentais e físicos que os tratamentos e medicamentos causam em nós mulheres e pressionar para que a ciência nos trate como seres humanas que somos, e não como variáveis incômodas.

Tenho plena consciência que essa não é uma tarefa fácil. Primeiro porque estamos falando de uma indústria bilionária e inescrupulosa — o pleonasmo! — que como os pioneiros da pílula não se furta de fazer testes em populações de países pobres. Segundo porque médicos não estão acostumados a serem questionados e de modo geral, na minha experiência, não reagem bem a isso. Terceiro porque a assertividade não é uma característica incentivada na socialização feminina enquanto que duvidar de si própria é parte fundamental de sua cartilha.

Mas a socialização falha. E a dra. Alyson McGregor dá algumas sugestões de como ser mais proativa nas consultas médicas:

“Quando um médico passar uma receita, pergunte: isso é específico para mim como mulher? Devo tomar uma dose diferente? Terei efeitos colaterais diferentes? Isso afetará meu controle de natalidade? Devo tomar um medicamento diferente em determinados momentos do meu ciclo menstrual? Um médico pode não saber essas respostas — mas a maioria das pessoas que frequenta a faculdade de medicina faz um juramento de aprendizado ao longo da vida. Espero que os médicos digam: ‘Deixe-me pesquisar’


Desde a morte de tia A. me peguei muitas noites pensando se teria feito diferença para ela e minha prima ter lido um texto como esse. Mas essa pergunta só traz culpa, tristeza e revolta, e disso já estamos muito bem servidas. Se fizer diferença para uma única mulher no futuro, já é mais do que satisfatório.