Com o Monte Etna proeminente à distância, Catânia possui algumas das mais belas praias da Itália. No verão, a cidade atrai multidões de turistas, a maioria dos quais não sabe que nesta temporada, 2000 refugiados pousam diariamente nas praias próximas. Sessenta por cento dos que chegaram à Europa durante os primeiros cinco meses de 2016 foram mulheres e crianças, muitos fugindo da violência física e sexual em seus países – para encontrar ainda pior nas suas jornadas.
Em junho, fiz parte de uma missão de refugiados em Catânia que incluía integrantes da Sociedade de Advogados Negros (Reino Unido), da Associação de Advogados Muçulmanos (Reino Unido), da Coalizão Internacional contra o Tráfico de Mulheres e da Associação IROKO (Itália). Muitas de nós fizemos a viagem para investigar a situação específica das mulheres no processo de migração/refúgio * [ver nota de rodapé]. Nós estávamos cientes de como a violência contra as mulheres é incluída nos crimes genéricos desta crise humanitária, e também estávamos conscientes da invisibilidade das mulheres refugiadas na mídia.
Conhecida por seus terremotos, a Catânia enfrenta um tipo diferente de agitação, recebendo dois terços de todos os migrantes que chegam à Itália. A cidade estabeleceu o maior campo de refugiados da Europa, na cidade vizinha de Mineo. Dependendo do mês, Mineo abriga de 3.000 a 4.000 refugiados em estruturas residenciais anteriormente usadas pelo exército americano e projetadas para abrigar apenas 2.000 pessoas. Na época em que visitamos Mineo, os moradores incluíam uma mistura de eritreus, nigerianos, ganenses, gambianos, marroquinos e bengaleses. Vinte por cento dos moradores eram do sexo feminino.
Entrar no acampamento não foi fácil, e foi necessária a intervenção do gabinete do prefeito em Catânia para receber autorização. Enquanto percorríamos a longa e tortuosa rota rural para fora da cidade, a paisagem sinalizava o isolamento até que o acampamento de Mineo se ergueu dos campos. Nossa visão inicial à distância era de um santuário aparentemente idílico de edifícios amarelos e cor-de-rosa. Quando nos aproximamos, vimos uma cerca de aproximadamente 3 metros coberta com arame farpado. Soldados armados carregando armas automáticas vigiavam a entrada e patrulhavam o perímetro.
Esperamos muito tempo antes de sermos autorizadas a entrar. Pensei nos meses e anos em que os refugiados aguardam seus documentos, com o tempo médio de atraso de 18 meses para as petições de asilo. Quando o diretor do acampamento finalmente nos deu uma visita informativa ao centro e respondeu às nossas perguntas, perguntei sobre os serviços nos campos. O diretor listou assistência jurídica, assistência médica, aconselhamento psicológico, cursos de italiano, aulas de informática e treinamento profissionalizante. Depois de falar com os funcionários, senti que eles estavam fazendo um trabalho impressionante em circunstâncias muito difíceis e lotadas.
Artigos da mídia, no entanto, falam de migrantes sentindo-se presos no meio do nada, sem nada para fazer, enquanto esperam, aparentemente interminavelmente, por seus documentos. Moradores dormem em quartos superlotados, às vezes com seis a oito pessoas e muitas vezes sem ventilação. Os migrantes de acampamento que trabalham nos pomares de limão e laranja da região relatam seus ganhos de 15 euros por dia [Nota da Tradutora: para os valores de Portugal, que já tem um dos ordenados mais baixos da Europa, isso seria o equivalente a metade do salário mínimo por uma jornada de trabalho de 8h/dia].
Em 2014, os investigadores descobriram um vasto esquema de corrupção em Mineo. Grupos do crime organizado se infiltraram na administração do campo e as autoridades prenderam um líder da máfia local. Quando perguntei ao diretor sobre ocorrências relatadas de tráfico nos campos, ele disse que no passado haviam ocorrido vários casos que podem ter envolvido pessoas do campo, mas que a gerência tinha trabalhado com a polícia para evitar futuros incidentes.
Perto do campo, no entanto, há uma arcada de prostituição flagrante que reveste as estradas rurais que levam a Mineo. Mulheres africanas seminuas estão em pé ou sentadas em posturas expectadas que atraem homens usuários de prostituição. Qualquer observador astuto que tenha visitado a Itália nos últimos 15 anos viu mulheres africanas que estão obviamente em prostituição ao longo das rotas rurais, rodoviárias e ferroviárias. Testemunhei essa cena infeliz todas as vezes que viajei à Itália no passado, mas nunca vi centenas de mulheres se prostituindo a cada 400 metros, como se estivessem em um vasto e extenso bordel ao ar livre.
Em Catania, falei com Efosa (um pseudônimo), um migrante da Nigéria, e perguntei se ele sabia que mulheres nigerianas estavam sendo traficadas para a prostituição na Itália. Ele me disse:
“Sim, eles trazem elas aqui nos botes para prostituição. … Eles dizem às garotas: “Eu vou levar você para a Itália. Você gostaria de ir? Eu vou cuidar de tudo. Você depois me paga de volta.” Mas essas garotas sofrem. Eles pegam o dinheiro delas, batem nelas, abusam delas. Eu as vejo todas as noites nas ruas perto da estação ferroviária. Homens param seus carros e as usam. Antes de trazê-las, os traficantes xingam. Eles cortam um pedaço do cabelo delas. Eles dizem: «É segredo. Se você contar a alguém, vai morrer».”
Efosa reforçou o que a Dra. Esohe Aghatise, diretora da Associação IROKO, revelou em seu trabalho com mulheres nigerianas prostituídas. Ela escreve que 80% dessas mulheres e meninas traficadas para a Europa vêm do estado de Edo e são mantidas em um contrato psicológico. Os traficantes submetem as mulheres a rituais mágicos nos quais são obrigadas a fazer votos de sangue e prometem pagar suas dívidas de passagem envolvendo-se na prostituição. Tais ritos geram uma infinidade de ameaças e medos, bem como “um senso exagerado de obrigação para com seus supostos benfeitores”, que promete nunca revelar a identidade de seus traficantes. Para as mulheres, toda a jornada da África para a Itália é abismal. Ao longo do caminho, elas se deparam com a violência sexual por parte dos motoristas, guardas de fronteira, policiais, contrabandistas, traficantes, companheiros migrantes e funcionários em centros de refugiados e campos. Em Mineo, falamos com seis mulheres nigerianas refugiadas que viajaram para a Líbia para embarcar nos perigosos barcos até Itália. Inicialmente, elas estavam hesitantes em falar, mas depois todas começaram a falar de imediato em uma cacofonia de convicção sobre suas experiências. Todas essas seis mulheres haviam sido estupradas durante sua passagem.
Eu já tinha ouvido de Efosa, o homem nigeriano que conheci em Catânia, que o contrabandista que transportou o grupo de migrantes de Efosa pelo deserto forçou todas as mulheres e meninas em vários pontos da travessia a saírem da van para abusá-las e estuprar. Quando perguntei se os homens da van tinham tentado impedir os estupros, ele me mostrou um braço obviamente fraturado, sua condição piorou por falta de tratamento médico: “Foi isso que eles fizeram comigo”. Os contrabandistas tinham armas e ninguém poderia detê-los.
A médica dedicada que equipa a clínica médica Mineo confirmou que a maioria das mulheres que ela trata são vítimas de “violência sexual”. Desde 2012, ela tem visto um aumento na violência sexual, particularmente em mulheres que chegam pela rota marítima da Líbia. Muitas das mulheres que ela cuidava haviam feito a travessia desacompanhada, sem outra escolha. Algumas chegam HIV-positivas ou com outras infecções sexualmente transmissíveis. Outras chegam grávidas, resultado do estupro durante a viagem.
A pior punição que as mulheres nigerianas poderiam imaginar seria a devolução à Líbia. Todos os nigerianos que entrevistei não tinham nada de bom a dizer sobre os líbios que encontraram: “Eles odeiam os negros. Dizem que nós mulheres somos todas prostitutas. Eles perguntam se você é cristão ou muçulmano. Se você diz ‘cristão’, eles te espancam e te colocam na prisão. Se você diz ‘muçulmano’, eles pedem que você recite uma oração. Se você não souber, eles batem em você e colocam na prisão.” Outra disse que os hospitais não tratavam os negros. Uma terceira mulher, que tinha abortado, disse: “Eles te espancam mesmo quando você está grávida”. Ela tinha testemunhado a cena de um homem viajando com duas mulheres, talvez uma sua esposa e a outra sua irmã. “Os líbios espancaram o homem, estupraram as mulheres e, em seguida, obrigaram o homem, sob a mira de uma arma, a fazer sexo com as duas mulheres.” Grande parte desse abuso é alimentada pela anarquia violenta na Líbia, onde as proteções institucionais são tragicamente carentes.
As rotas marítimas reforçam tacitamente uma imagem racista da crise dos refugiados. Um artigo recente do New York Times tinha como título: “Para a Europa, os árabes importam mais do que os africanos”. Os africanos tomam a rota marítima da Líbia, pagando entre US$ 1 mil e US$ 2 mil para contrabandistas que os empilham em botes de borracha baratos. Outra importante rota marítima, do Egito à Itália, é chamada de rota da “classe executiva”. Ela é usada por refugiados sírios que pagam entre US$ 3 mil e US$ 5 mil pela passagem em barcos de madeira relativamente em mais condições de navegar.
Em 2016, o maior número de migrantes que chegam à Itália tem sido eritreus; o segundo maior, nigerianos. A maioria dos africanos são migrantes econômicos cujas condições financeiras desesperadas geralmente não os qualificam para o status de refugiado ou outras formas de proteção. Fugindo de conflitos, sírios, iraquianos e afegãos têm um medo bem fundado e legalmente reconhecido de perseguição em seus próprios países. No entanto, os africanos, que também sofreram estupros, espancamentos, torturas e prisões na Líbia ou nos mares, não são refugiados legalmente reconhecidos porque não foram submetidos a esses tormentos em seus países de origem.
ONGs e agências das Nações Unidas apresentaram uma série de recomendações específicas respondendo à situação das mulheres refugiadas. Antes de mais nada, os países devem estar dispostos a reconhecer que o surto atual de mulheres em busca de refúgio é uma crise dentro de uma crise. O Ministério Público no Palácio da Justiça em Catânia está fazendo um esforço agressivo para tomar medidas legais contra os traficantes para que as mulheres tenham acesso efetivo à justiça.
Como muitos especialistas em mulheres refugiadas apontaram, existem soluções que podem ajudar a mitigar a emergência, se a assistência centrada na mulher se der no nível do campo. A assistência inclui mais intérpretes e funcionárias de recepção do centro do sexo feminino, acomodações separadas para mulheres, instalações sanitárias separadas, monitoramento de predadores sexuais e acesso a creches, atendimento médico e aconselhamento voluntário para traumas sexuais. Necessidades básicas, como absorventes higiênicos, frequentemente não estão entre os itens fornecidos. As mulheres podem ser afastadas das linhas de alimentos ou acabam sendo as últimas a receber pacotes de cuidados.
Um dos pontos positivos da nossa missão foi visitar a guarda costeira local no porto de Catânia. Nós fomos autorizadas a embarcar no barco no porto, e o comandante nos deu um tour explicando como eles conduzem as muitas buscas e resgates que salvaram milhares de vidas de refugiados. Em 2015, a Guarda Costeira Italiana respondeu a mais de 8.000 chamadas de socorro de emergência.
Nos últimos dois anos, a Itália resgatou mais migrantes do que nos últimos 23 anos. A desgastada cidade de Catânia está fazendo mais do que a maioria e está tentando atender às necessidades específicas das mulheres refugiadas. Quase todos os moradores com quem falei eram simpáticos à situação dos migrantes. Quando perguntamos ao comandante da Guarda Costeira como ele continua a fazer esse trabalho, dia após dia, no mar mais perigoso e com muitos refugiados morrendo no caminho, ele respondeu: “É um trabalho que compensa.”
Será que esse sentimento poderia romper os movimentos globais anti-imigração?
* Eu uso as palavras “migrante” e “refugiado” alternadamente. “Refugiado” é um termo legal, bem como um termo que descreve aqueles que buscam refúgio. Os migrantes que fogem do conflito são geralmente qualificados como refugiados legais, enquanto os migrantes que escapam do desespero econômico não são reconhecidos como refugiados pela Convenção da ONU de 1951 sobre Refugiados. No entanto, na minha apresentação, fugir de casa e do país por qualquer medo bem fundamentado é o estado de ser um refugiado.
Janice G. Raymond é professora emérita de Estudos de Mulheres e Ética da Medicina na Universidade de Massachusetts, Amherst. Ela é a ex-diretora coexecutiva da Coalizão Contra o Tráfico de Mulheres e tem escrito extensivamente sobre tráfico sexual, prostituição e a indústria sexual global.