a amizade política entre mulheres
Margarita Pisano e Edda Gaviola

“A amizade, me parece, se constrói com um pé no privado e no coração, e o outro, no público-político de pensar… de pensar juntas. Com tudo que esta dimensão implica de valores e de responsabilidades sociais e humanas.” (Margarita Pisano)


Este texto tem dois momentos diferentes, comecei a escrevê-lo em março e terminei em junho. Sua escrita me levou pelos caminhos da memória, por isso mescla relatos de histórias vividas e reflexões sobre a amizade, e conclui com construções coletivas, difíceis e árduas. Sua leitura me ajuda a situar Margarita Pisano em minha vida e na experiência de ter sido sua amiga por mais de um quarto de século. Talvez, para outra pessoa, sirva para refletir sobre a amizade política e seus ensinamentos (1).



Há ligações que nunca queremos receber e que nos estremecem. Estranhamente, aconteceu em março e, depois do choque de enfrentar mais uma vez a finitude da vida, como a conhecemos, as memórias e as histórias vividas surgem desordenadamente; encontros se mostram tentando aninhar-se na forma de história e amizade entre mulheres.

Eu tinha 24 anos, um pouco menos, quando comecei a me aproximar do feminismo e, obviamente, a referência era La Morada e as feministas que a construíram. Entre as mais importantes, Julieta Kirkwood e Margarita Pisano. Conheci pessoalmente Margarita em 1985, quando procurávamos apoio para publicar o livro Queremos votar en las próximas elecciones: historia del movimiento femenino chileno 1913–1952 (1986).


Desde então, o feminismo acompanhou minhas buscas e me interrogou na vida, primeiro questionando o marxismo e minha militância de esquerda e, depois, confrontando minhas próprias certezas. No final dos anos 1980, mergulhei em suas águas, às vezes calmas, mas, na maior parte das vezes, turbulentas. Me submergi com a consciência de que, a partir daí, minha vida tomaria um rumo transcendental em minha própria existência.

E assim foi. O feminismo não se realizou em abstração, foi com mulheres que viviam seus próprios processos, antes ou durante, em paralelo, mulheres que recuperavam seus corpos e sexualidade.

Mas foi com Margarita Pisano que entendi que o feminismo chamava as mulheres para novas formas de pensar, que precisavam urgentemente sair das lógicas tradicionais, e moldar-se em expressões e palavras de ser e existir como mulher no mundo. Situada também em uma ideia evidente de articulação de movimento social, político e filosófico, atuante e pensante em um contexto de exacerbação do patriarcado, como foram as ditaduras militares que devastaram nosso continente e as democracias incompletas que se seguiram, os agudos do patriarcado como Margarita os definiu.

Se eu tivesse que classificar este período da minha vida, por algum motivo, eu diria que foi uma época cheia de encontros e perdas, como compreenderia muito depois de ouvir pela primeira vez o conceito de desprendimentos (2) de Margarita. É importante notar que me desprendi de uma militância socialista de 17 anos à beira de uma suposta democracia, como a chilena, depois de ter travado uma grande luta e ter sido questionada sobre minha sexualidade (3), em um mundo masculino capaz de reproduzir que as mulheres se descolam da política para serem mães e esposas, mas nunca aceitaria a autonomia e a liberdade de uma mulher nesse mundo. E isso se transforma numa questão primordial para alguém que tem cultivado seu acervo político e cultural na liberdade de pensar e agir, de acordo com os princípios nascidos de uma ética que, embora estivesse presente, só poderia realizar-se de maneira concreta em um movimento de caráter emancipatório (4), como tentou historicamente e contra a corrente, o movimento de mulheres.

Nessa mesma linha, recuperei o corpo como território político e abracei novas formas de sexualidade, tentativas imperfeitas de liberdade, com o mesmo compromisso de construções ideológicas e políticas, e me reconheci como mestiça com minha pele branca, que tenta, sem resultado, esconder os séculos de colonialismo sobre o corpo e o pensamento das mulheres, nesta parte do continente. Assim, ter um corpo sexuado de mulher teve e tem uma diferença vital e potente no mundo, justamente por causa de sua exclusão e subordinação históricas, e por causa dos sinais nítidos que constroem a realidade, quando se produz uma profunda tomada de consciência sobre a alienação.

Margarita a mestra e sócia: do não-preconceito à amizade política


Falar de Amizade Política, é falar de um processo que começa no encontro e na necessidade urgente de mudar os sinais da vida e da história, através da construção respeitosa da confiança e das necessidades mútuas que estão se formando no caminho da descoberta da outra, de si mesma, e de uma genealogia de mulheres.

Um elemento central na construção da amizade política é a desapropriação da animosidade da outra, das invejas e rivalidades, e ter sempre em mente que é necessário trabalhá-las, destruí-las e estar atentas para que elas não reapareçam como parte do mandamento histórico da inimizade entre as mulheres, e da misoginia internalizada.

A mitologia criada, baseada na feminilidade masculinista (5), pede que as mulheres usem, supostamente em nosso favor, uma construção repleta de falsidades sobre o que devemos fazer e como devemos agir: as boazinhas, as suaves e tenras, as que devem passar despercebidas, aquelas que quanto menos você ouve é melhor; aquelas que oxalá não brilham com luz própria e, claro, aquelas que não têm uma cabeça que pensa.

Como parte da misoginia internalizada, as mulheres medimos umas às outras com o padrão que o patriarcado nos impõe. Nesse contexto, as mulheres tendem a rejeitar, desvalorizar, negar ou odiar quem fala em voz alta, quem tem suas próprias ideias, quem discute com paixão e sem concessões, quem questiona e vive sua vida com independência e autonomia, atrevendo-se a ser, pensar e agir, fora dos códigos da feminilidade imposta.

Hoje, quase terminada esta redação, vejo mulheres com uma infinita incapacidade humana que, devido a esses preceitos, não conseguem ver e olhar suas próprias palavras, reconhecer sua própria inveja e miséria humana, seguindo o ditado que nos diz que é mais fácil enxergar um cisco no olho do seu irmão, do que uma viga no próprio olho.

Na minha experiência, há mulheres que encarnam para as outras essa mitologia masculinista. No Chile, e para muitas feministas, Margarita Pisano foi a encarnação do mal. Então, eu tive meu primeiro encontro com ela e, assim como seria com qualquer encarnação do mal, ela foi uma personagem que atraía e de quem todo mundo queria estar perto, mas depois foi esfolada viva nos comentários e desqualificações por trás. Então, sem nenhum pretexto, numa noite de bebedeira com um grupo de amigos, acabamos tocando a campainha da casa dela. Ela abriu a porta com uma bondade impressionante e nos convidou a entrar. Lembro que, naquela noite, eu, meio encorajada, comecei a perguntar a ela tudo o que diziam sobre ela. Sem perceber, instalada no preconceito e seguindo o mandamento divino da feminilidade, eu estava pedindo explicações de sua vida. No dia seguinte, invadida pela ressaca moral, com a insistente ideia de que eu havia transgredido algo elementar, procurei o número de telefone de Margarita e telefonei para pedir desculpas pelo meu desempenho na noite anterior. Naquele dia, nos reunimos novamente em sua casa, e começamos a caminhar juntas pela vida.

Todos os relacionamentos são significados por poder e dominação. Construir respeito e horizontalidade implica um esforço diário de desconstrução. Isso é fundamentalmente válido em amizade e amor romântico (6). Desta forma, com Margarita, fomos construindo a cumplicidade entre as mulheres em longas caminhadas — conversas, onde o íntimo aflorava com toda a sua força. Ali entendi que não poderia haver lugar sagrado, que não fosse tocado, que não fosse analisado a partir do mais simples interesse humano e da sabedoria acumulada entre as mulheres. Destroçar o relacionamento com a mãe e suas traições; analisar as relações repetitivas de romances transformados em péssimos carinhos; o corpo e a sexualidade; a espiritualidade versus a religião; a família como um contrato de consanguinidade. Nós concordávamos em ir ao cinema e acabávamos explorando ruas, parques e noites. Eu evoco, como lembrança valorosa, algumas longas caminhadas na praia.

Neste exercício, e no cotidiano, as confianças foram construídas. Aprendemos a ler nessa relação, a nos comunicar e nos relacionar com outras lógicas, aprendemos do conhecimento da outra e de suas contribuições, construímos cumplicidade com a grande possibilidade de transcender o espaço do íntimo, do privado, para fluir para outras dimensões humanas.

Construir cumplicidades políticas

As cumplicidades políticas são as mais difíceis de construir. Estou convencida de que, para fazer isso, é necessário ter projetos comuns, pensar juntas e se reconhecer profundamente na outra, nos seus saberes e autorias, a fim de alcançar a aprendizagem recíproca. Mas também partir de uma rede de ideias comuns, uma análise crítica e compartilhada da realidade e da experiência histórica das mulheres, capaz de fluir e transcender no ato que vai do pessoal ao político.

A década de 1990 foi marcada pelos processos de transição entre ditaduras militares e democracias incompletas, com uma forte onda neoconservadora, que acabou aprisionando e destruindo a rebeldia e a insolência do movimento feminista, características dos anos 1980. Nesse cruzamento, nos reunimos para construir uma proposta política pensante para as mulheres; em um ato radical contra um feminismo que negociava e perdia sua capacidade crítica frente ao sistema. Ali fomos ganhando corpo, desenhando e apreendendo novos discursos diante da realidade, a partir de nossos próprios pensamentos, e no livre jogo de ideias.

Margarita já desenhava sua proposta para uma mudança civilizatória, para alcançar a boa vida, e lançava sua abordagem para elaborar um feminismo radical que devolveria o caráter pensante e rebelde às mulheres, base fundamental para o aspecto de Las Cómplices. Eu procurava uma história que nos permitisse ter uma genealogia de mulheres e nos tirar do absurdo, instalado no imaginário social, como uma política do possível.

Com Margarita, tínhamos em comum a necessidade de instalar a proposta de Las Cómplices, em nível latino-americano, e isso nos levou a participar ativa e criativamente, do encontro realizado em El Salvador, em 1993. Foi um período complexo e muito frutífero, no exercício de nossa autonomia cúmplice. Fazíamos frente aos boatos do fim da história, do fim do patriarcado e do fim das utopias, com suas consequentes democracias do feminismo possível e cada vez mais light. Nós estávamos caminhando contra a corrente, instalamos no feminismo uma ideia radicalmente diferente: a necessidade de recuperar nossos corpos, nossa política e nossa autonomia, através da capacidade de nos nomearmos e, do outro lado, era o início de sua proposta de olhar a partir do Afora, para trabalhar por um horizonte mais longo, a necessidade de uma mudança civilizatória.

Foram anos de uma atividade incessante entre ideias, escritos, reuniões, fóruns e seminários. Onde um grande marco foi a organização do VII Encontro Feminista da América Latina e Caribe, no Chile, a partir da mais completa autonomia e, onde se estabeleceu a ideia dos diferentes feminismos com suas demarcações, com nomes e sobrenomes, sem amebas ou exaltação de uma suposta diversidade, que invisibiliza aquelas que têm um pensamento radical, em franca oposição a um feminismo hegemônico, cada vez mais institucionalizado, cooptado pelo sistema e que abandona a rebeldia histórica das mulheres (7).

Em todo esse processo, a Amizade Política cresceu, tornou-se uma cumplicidade profunda. Construímos relações transparentes e honestas, pensamos juntas, aprendemos a incorporar as ideias da outra sem perder a capacidade de pensar propriamente. Aprendemos a nos expressar, sem nos deixamos desaparecer nas ações das outras; fizemos exercícios de práticas políticas que influenciaram fortemente outros ambientes. Nós nos opusemos às operações de desmantelar nossas radicalidades. E nos divertimos.

Tivemos a capacidade de superar a inveja e as rivalidades, disfarçadas de poderes mesquinhos que tentavam minar nossa relação, em diferentes momentos, buscando explorar uma competição inexistente entre nós. Lembro-me de várias pessoas que sugeriram que eu apresentasse um artigo no Encontro de Cartagena, porque minha liderança era melhor que a de Margarita, ou algo assim. Com abordagens dessa natureza, as relações entre as mulheres são distorcidas, a outra é desqualificada de forma espúria e, acima de tudo, as contribuições teóricas e práticas das mulheres são desconhecidas. Uma forma usada intencionalmente, para apagar o pensamento radical de Margarita, que as incomodou tanto.

Nossa cumplicidade transcende espaços e fronteiras

Em meados do ano de 1997 e aos 36 anos, tomei a decisão de mudar de país. Para o centro da América… o lugar das árvores estava me esperando: um pequeno abrigo, uma pequena distância, uma necessidade de respirar outros ares diferentes do sufocante Chile. Voltei à América Central 14 anos depois de ter saído, uma região que havia sido instalada no meu corpo há muito tempo (8).

À medida que a pseudo-democracia no Chile avançava, os espaços se fechavam, e um forte sentimento de subir a costa levava esperanças e desejos para a minha vida. Algum tempo depois, descobri que deixar o país me deu oxigênio para continuar. Eu sei que Margarita se ressentiu, falamos sobre isso muitas vezes ao longo dos anos. Mas também sei que nossa amizade continuou a ser fortalecida, na crítica e no amor. Porque a Amizade Política deve ser estimulada e, com uma proposta como a de Margarita Pisano, devemos incorporá-la e compartilhá-la.

Cada encontro foi um encontro íntimo e nosso, como eu disse recentemente em uma entrevista conjunta (9), era olharmos nos olhos e saber que ainda estávamos lá, apesar das distâncias. No ano 1998, nos encontramos na Bolívia para participar do famoso Encontro de Feminismo Autônomo de Sorata. Nos instalamos como Autonomia Cómplice e tivemos que suportar o assédio da coletiva Mujeres Creando que disfarçava novas formas de institucionalidade sob o pretexto de autonomia, de boazinhas; do gotejante coração do amor. Num exercício péssimo de poder, acabaram enterrando o feminismo autônomo, nascido em Cartagena dois anos antes (10). Ali, além disso, os discursos das jovens diante das idosas fizeram abalar qualquer formulação feminista com genealogia de mulheres. Devo admitir que o trauma da esquizofrenia vivida em Sorata, nas mãos das Creadoras e de muitas chilenas, durou um ano inteiro.

Em 2001, junto com Carolina Cabarrús, administramos a chegada de Margarita na Guatemala, com a cumplicidade de outras mulheres. No âmbito do Primeiro Encontro de Gênero da Mesoamérica, Margarita foi convidada como oradora principal. Lá, além disso, construímos uma Mesa/ Diálogo que se chamou: Gênero como uma maneira de despolitizar o feminismo?. Eu me lembro daquela sala cheia de mulheres de toda a região; acostumadas a falar sobre gênero, elas tiraram uma posição diferente: A proposta civilizatória masculinista está esgotada. Nem dentro dos partidos políticos, nem nas igrejas, nem na academia iremos avançar. Precisamos de um movimento feminista que forneça uma outra leitura, que construa outra história a partir de nossas fantasias, de nossa realidade, e não da realidade dos homens. Os conhecimentos que as mulheres geram sem a referência política de um movimento feminista crítico, poderoso e ativo acabam sendo absorvidos pelo saber masculinista (11). Tanto nesta quanto na viagem subsequente, queríamos que as mulheres conhecessem Margarita Pisano e que ela tivesse a possibilidade de abordar a realidade e o conhecimento das mulheres maias. Na Guatemala, todos os espaços de treinamento foram monopolizados pelo feminismo institucional da igualdade (Espanha e México como referentes). Deste fato, para nós, era urgente que as mulheres conhecessem outro tipo de propostas transgressoras, como forma de recuperar a rebeldia.

No ano de 2002, nos encontramos no México e na Costa Rica. No México, na celebração dos 20 anos do Programa Universitário de Gênero (Pueg/ Unam), um convite que aconteceu na Guatemala. Para nossa surpresa, nesse evento, se reconheceu publicamente a importância do Feminismo Cómplice na América Latina. Meses depois, nos encontramos novamente no X Encontro Feminista da América Latina e Caribe, na Costa Rica. Para mim, esse encontro foi a última tentativa de participar desse tipo de espaços cooptados pelo feminismo hegemônico e institucional. Vale ressaltar que a década de 1990, além de sua onda neoconservadora, significou perdas profundas para a construção de movimentos e grupos. O neoliberalismo havia conseguido muito bem estabelecer o individualismo a todo custo. Nesse contexto, continuo valorizando profundamente a amizade construída.

Cada viagem ao Chile, pelo menos a cada ano ou ano e meio, era um novo motivo para encontros, longas conversas, passeios, ir ou nos acompanhar para fazer compras, eram momentos que construíam uma cotidianidade de qualidade na nossa amizade. Comentar sobre o que eu estava escrevendo, conversar com as jovens que se incorporavam ao redor dela, sem dúvida, elas me alimentavam teoricamente e me ajudaram a construir uma ligação com o Chile e, um pouco mais profundamente, me davam novas pistas sobre a proposta de mudança civilizatória.

Em todos esses anos, não houve trabalho, artigo submetido ou apresentação, e nenhuma escola de formação organizada por mim, na qual Margarita Pisano não estivesse presente, nas leituras e reflexões. A razão é muito simples, penso que o pensamento de Margarita Pisano, além de ser uma análise e diagnóstico austeros e profundos sobre crise ética da humanidade, não permite fragmentação ou negociações para as mulheres e, por sua vez, suscita as rebeldias, as mais profundas fúrias de nossas negações históricas. Apela profundamente a nos despirmos e nos rearmar na construção de outros futuros, removendo decepção e complacência de nossas vidas.

Me lembro que um dia ela me disse até quando você vai continuar sendo a Teresita de Calcutá? — tão direta e confrontante, como sempre, preocupada com os momentos difíceis que passei na Guatemala. Nós rimos, ela disse isso muito a sério. Mas acho que ela entendeu que meu compromisso de levar à justiça o genocídio e a violência sexual contra o povo Maia também era muito sério, e uma parte substancial da minha proposta feminista. Este compromisso com a Guatemala teve raízes profundas, com as pessoas que viveram e sofreram, com a memória histórica e o desejo de contribuir para a desconstrução do racismo institucional, da opressão e da violência contra as mulheres, que é galopante no país.

Nestes anos o Movimiento de Mujeres Rebeldes del Afuera foi formado. Me lembro de uma conversa em que ela definiu para nós sua proposta de um coletivo de mulheres pensantes, delimitado, e no qual, para entrar, a campainha deveria ser tocada. Muitos delas eram participantes regulares do Lunes Abiertos (12), encontros onde Margarita apresentava sua proposta para mulheres. Fazíamos piadas, por horas, às custas dessa imagem. Eu dizia que fazia anos que havia tocado a campainha daquela casa, e que nunca faria isso de novo. As Mujeres Rebeldes del Afuera foram a materialização de sua proposta mais valiosa, de como construir um movimento pensante, contundente e com limites claros. As Mujeres Rebeldes del Afuera tinham um enorme potencial, cada uma no seu afã e na sua forma de expressão. Hoje posso afirmar, sem medo de estar errada, que elas construíram confiança e desejos profundos e válidos.

“O Movimiento Rebeldes del Afuera é um espaço ideologicamente marcado, que não faz alusão às palavras feminismo ou autonomia, porque não se reconhece no feminismo ou na autonomia vigentes. Se a partir da Autonomia Cómplice propus o distanciamento do sistema patriarcal no íntimo, o privado e o público; a partir do Afuera proponho, além disso, o distanciamento do feminismo atual, pois é uma ideologia a mais do patriarcado, e tudo produzido pela masculinidade é eticamente inaceitável. O feminismo está fracassado porque não tem memória; e com o esquecimento não é possível dialogar ou pensar … Me interessam as trocas com as mulheres, porém, desde que estejamos compartilhando ideias num processo mais profundo de questionamento que perdure e intervenha no patriarcado masculinista/ feminino, e que chegue a ser um pólo gerador de outra civilização, e não um modificador de um sistema perverso, onde as mulheres, ao se unirem, incorporam as mesmas perversidades.” (2009) (13)

Devo admitir que o distanciamento do feminismo, como uma opção política, é muito difícil para mim, embora eu acredite que o feminismo hegemônico tenha falhado, porque a corrente de feministas institucionais, aquelas que adoram presentear o patriarcado, situa-se na lógica do poder e da feminilidade-masculinista, e tem nos levado ao desastre total, neutralizando a proposta rebelde de transformação do sistema-mundo ou de mudança civilizatória para a humanidade. Claro que há fracasso, quando seguimos girando a roda que o patriarcado engenhosamente usa para reciclar e cooptar, em cada onda neo-conservadora que inventa. Mas, o que me custa é entregar a elas o nome que a tantas mulheres custaram a vida e, porque ainda vejo, desse lado, neste Afuera, nesse feminismo radical e pensante, uma proposta atual para as mulheres.

Carolina, com sua iniciativa habitual, conseguiu completar, no ano de 2009, uma nova viagem de Margarita à Guatemala, um convite que incluía Andrea Franulic. Esta viagem foi feita em parceria com o Sector de Mujeres e Lesbiradas. Foram duas semanas para ministrar cursos e apresentar sua biografia política. Desta viagem, surgiu a ideia de relançar o Cambio de Los Deseos (1995), porque as mulheres aqui trabalhavam com uma fotocópia antiga que tínhamos.

Conversamos naqueles dias sobre o fracasso do feminismo, e iniciamos conversas sobre a utopia, que eu havia levantado na apresentação de sua biografia política, tanto no Chile quanto na Guatemala. Na minha opinião, Margarita sempre fez uma abordagem utópica (14) e nessa apresentação eu expressei:

Nunca na história da humanidade as utopias foram pensadas a partir das esferas de poder ou dominação: a utopia se torna necessária quando você não aceita o que é e, portanto, precisa transcendê-lo. A utopia é subversiva, subverte o real e abre um mundo de novas possibilidades. Somente questionando o existente a partir do lado de fora — ou porque o colocaram lá, ou porque você fez a opção de se aventurar em um novo sonho — você pode dizer: aqui eu exercito meu direito de ser livre, meu direito de reinventar os caminhos (…) E aqui, devo admitir que olhar/ olharmos para nós mesmos no espelho da derrota é muito, mas muito forte, remove até as fundações e nos confronta com o vazio … e ainda é tão profundamente real … que diante dessa realidade você só tem duas rotas possíveis , ou você se resigna (e a resignação é a filha da derrota) ou tenta novas possibilidades, a partir do pórfiro mais puro e com um profundo senso de desapego.

De alguma forma, Margarita reivindicou essa discussão em seu último livro, Fantasear un Futuro (2015).

No Chile, discutimos e elaboramos um projeto para começar a construir sua Biblioteca Feminista, com mais de três mil volumes. Margarita sempre quis seu conhecimento a serviço das mulheres. Infelizmente, não encontramos o apoio financeiro para esta proposta, que não limitou sua grande generosidade por compartilhar sua casa e suas próprias leituras com aquelas que solicitaram.

Na minha penúltima viagem ao Chile, a encontrei experienciando novas traições, como ela as chamou. Realizamos longas conversas com ela e Elena, tratamos de rever o que tinha acontecido, neste esforço de construir relações com outra natureza. Ela tinha muita certeza de que suas relações e amizades deveriam ser forjadas na confiança mais completa e que, neste momento da vida, isto não iria mudar. Mais uma vez, falamos sobre os pequenos poderes, aqueles pequenos monstros agachados e internalizados, que nos custam tanto para as mulheres e que são tão difíceis de erradicar. Então ela me escreveu:

“Aqui estou como sempre em sucessivas ressuscitações. A história com Andrea Franulic foi muito forte para mim, me senti novamente traída, novamente em um círculo de silêncio sutil… Suponho que você tenha lido a declaração na minha página. Espero que você venha logo. Cada vez que meu chão se estremece, sempre em seguida vêm novas propostas, com novos grupos que são incorporados ao que fazemos no Afuera… há sempre “uma Edda”, “uma Cobarrus” propondo ou se incorporando com entusiasmo, alguns temporários e outros profundos. Estou mais velha do que nunca, teimosa como sempre, e, como sempre, eu sinto sua falta… Não há nada de novo sob o sol, Edda, as mulheres seguem fracas nas suas políticas e nas suas dignidades. Mas quando a descobrem, não há nada melhor!”

Nós planejamos viagem para 2014, para que Elena conhecesse a Guatemala, desta vez a passeio, e isto nunca se materializou. Ela intensificou suas atividades no Chile, porque assim ela era, ativista imparável, que só um novo cuerpazo, o definitivo, poderia pará-la.

Em todos esses anos, realizamos discussões memoráveis ​​e abertas que não concluímos nem concordamos completamente: sobre o racismo; as utopias; educação e direitos humanos; ou a melhor maneira de nos desfazermos dos livros bíblicos e misóginos — em cada uma delas, brigávamos, discutíamos, levantávamos nossas vozes, guardávamos silêncio e nos influenciávamos mutuamente.

Margarita tinha que ser ouvida, e nunca me incomodou fazê-lo, porque foi uma das mentes mais brilhantes do Feminismo, capaz de levá-lo a uma radicalidade não-negociável com o sistema, e raras vezes vista. Margarita tinha um método de diálogo frontal e de choque, ela sempre escolheu ser a moça insolente, que Julieta Kirkwood nos delineou. Tenho certeza que vou sentir falta do método dela, porque, simplesmente, vou sentir falta dela.

Notas sobre como construir em coletivo a Amizade Política

“Em tempos de desertificação, em que o mundo não é mais habitável, procuramos refúgio nos oásis… mas corremos o risco de, em nossa fuga para o oásis, levarmos nossos sapatos cheios de areia do deserto.” (Hannah Arendt) (15)

A alienação que nós mulheres temos vivido deve-se a uma longa história de desapropriação, de privações em um círculo permanente de perda do sentido da vida e, sobretudo, da capacidade de pensar e agir com a própria voz. Trata-se da naturalização das relações de poder e dominação, com sua carga de violência em todas as áreas da vida. Temos sido despojadas de uma consciência histórica da coletividade, de uma genealogia de mulheres que nos devolve a possibilidade de agir sobre a realidade, e que nos coloca em outros tempos e espaços sem a intervenção desse sistema-mundo que conhecemos.

Neste contexto, a possibilidade de construir coletivos de mulheres pensantes, onde a autoconsciência se desenvolva de acordo com a própria vida; das outras e daquelas que nos precederam como primeira referência, continua sendo uma busca fundamental.

A amizade política, como proposta coletiva, torna-se mais difícil e exige níveis mais elevados de análise e trabalho. Porque exige que estejamos alertas, despertas, contundentes e atentas às dinâmicas pessoais e interpessoais que ocorrem nas relações construídas entre as mulheres.

Na minha opinião, construir Amizade entre Mulheres envolve relacionar-se a partir da horizontalidade, na quebra de hierarquias. Ou seja — como dizia muito bem Margarita — , no abandono do jogo de dominação e na descoberta de outros conteúdos de poder que permitam entrar no reconhecimento dos saberes, na reflexão inteligente e na capacidade de respeito, a partir das potencialidades e não das deficiências humanas.

Nos grupos queremos construir novos relacionamentos, no entanto, raramente olhamos para os nossos sapatos para tirar a areia dos desertos que nos rodeiam. Essa pode ser uma grande aventura, se nos atrevermos a vivê-la.

No mundo, podemos observar duas formas de liderança arquetípica entre as mulheres. O primeiro modelo, que Margarita definiu muito bem, é o das que presenteiam o patriarcado. Esta forma de liderança é significada pelo poder e dominação, materializada na competição com outras mulheres e precisa ser realizada sozinha. Nesse tipo de liderança, se produz a desidentificação com as outras, aparentemente, seus resultados são por mérito próprio e não por um processo de reflexão coletiva e experiência histórica das mulheres. Laura Rodriguez, deputada humanista chilena, disse muito claramente no início dos anos 1990, quando falou sobre o vírus de altura, cujos primeiros sintomas aparecem quando se iniciam os enjoos frente aos aplausos e homenagens das pessoas, sua visão fica turva e só é possível ver a si mesma. Hoje chamaríamos de empoderamento (16), derivação irreverente do empoderamento cunhado pelo feminismo hegemônico da igualdade, para representar graficamente o poder das mulheres em sua instalação na pseudo-negociação com o sistema.

Neste tipo de liderança, o coletivo não é o fundamental, muitas vezes, é o trampolim para atingir objetivos individuais. Nós chamamos esses tipos de mulheres de alpinistas, em algum momento de nossa história.

O outro modelo surge daqueles que têm a necessidade vital de construir/ construirmos coletivamente. A liderança baseia-se justamente na grupalidade, busca a colaboração com as outras, apela ao respeito e ao reconhecimento da potencialidade de cada pessoa e também coletivo, numa lógica de horizontalidade entre iguais, indivíduas e pensantes. O espaço político é de crescimento recíproco e alimenta a possibilidade de instalar no mundo um corpo de ideias sólidas, acompanhadas de uma expressão coerente e coesa. Reconhecer a outra em suas autorias e contribuições, incorporar as boas ideias, colocar paixão nas ações. Neste modelo, a proposta política é produzida em harmonia com o pensar em conjunto e agir de forma coerente.

Entre esses dois arquétipos, existe um amplo leque de possibilidades, portanto dependerá das formas que nossa proposta coletiva assuma, de como vão consolidar lideranças que construam seu próprio pensamento e, ao mesmo tempo, tenham a capacidade de instalação social dos pensamentos construídos coletivamente. Sempre a partir da história, com reconhecimento e sabedoria. A amnésia é do patriarcado.
Uma das grandes aprendizagens que extraio de todas as tentativas de formar a coletividade é que tanto na Amizade, como nos grupos políticos, contar com ideias comuns e uma ação, uma prática compartilhada, só é possível a partir da individuação, ou seja, de uma indivídua consciente de suas ações, comprometida com suas ideias, expressiva e respeitosa das outras.

Outros campos que precisamos ver são as dificuldades que se derivam dos remanescentes do familismo em que estamos presas: as simbioses (geralmente na busca da mãe perdida); as codependências, (eu não posso fazer nada sem as outras), os destaques no negativo (nos importamos mais com aquelas que não chegam na reunião do que valorizamos e construímos com aquelas que chegam, pior ainda, se a que não chega é a quem o grupo concedeu poder). De alguma forma, são práticas onde o eterno feminino reina, os pequenos e medíocres ​​poderes que manipulam e chantageiam são nutridos; se seduz com o suposto desejo de sempre agradar às outras. Nos desresponsabilizamos ​​e nos acomodamos com as lideranças instaladas.

Também é possível identificar, nas relações românticas e de casal que surgem nos grupos, as rupturas e raivas que transcendem a linha tênue entre o íntimo e o político na construção compartilhada, quebrando os equilíbrios e passando uma conta emocional para as outras, que distorcem os relacionamentos na organização, já que forçam uma tomada de partido que não corresponde a elas.

Outro problema que temos vivido nas organizações e que não trabalhamos o suficiente, tem a ver com dinheiro e relações trabalhistas, quando estas ocorrem no campo da organização e da organização de mulheres. Temos dificuldade em diferenciar nossas ações de nossos compromissos de trabalho e também aí caímos em confusões de naturezas diferentes. Nesse processo, confundimos os espaços, não temos clareza quando as contribuições são nossas e quando são produto da relação econômica estabelecida; tampouco temos clareza sobre compromissos de trabalho, pagos com financiamento para a organização e que não são realizados; ou, momentos em que a coletividade conseguiu um pouco de financiamento e contrata uma de suas membras, e ela acaba fazendo tudo o que o grupo quer, porque para isso, ela está recebendo um salário.

Neste contexto, como saber quando estamos reproduzindo as formas conhecidas na relação política entre as mulheres? Como desaprender coletivamente tais práticas? Se temos medo de nos expressar, será muito difícil fazê-lo, porque nos recusaremos a visualizar e explicitar as diferenças. Quando isso acontece, necessariamente se acaba o crescimento coletivo, as crises sobrevivem e é necessário separar, tomar distâncias. Este não é um acontecimento dramático em si, o dramático é que nos apegamos e não queremos deixar a vida fluir, quando o relacionamento termina.

Neste ponto, devemos necessariamente refletir sobre a ética. Somos todas afetadas por diferentes graus de incoerência entre nosso discurso e nossa prática, enquanto nadamos nas águas turbulentas desta sociedade que é profundamente inóspita e incômoda. Mas em nossas próprias incoerências, devemos ter um limite ético, uma linha que não pode ser ultrapassada. Há uma plataforma que é fundamental sobre a qual construir nossas ações — por exemplo, a decisão sobre nosso próprio corpo, a liberdade na sexualidade, a erradicação da violência em nossas vidas, a luta contra o racismo e a exploração, desconstruir os exercícios de poder e domínio em relação a nós, às outras e ao nosso ambiente, aos animais, à rede de vida que constitui este planeta; confrontar todos os tipos de religiões e suas imposições — entre as quais considero mais importantes. Esse limite não se pode transpassar sem prejudicar a outra, com quem estamos tentando criar novas formas de estar juntas na vida, sem transgredir profundamente, as bases para uma mudança civilizatória.
Guatemala, 19 de junho de 2015.


Notas de rodapé:
(1) Comecei a escrever essas linhas em março de 2015, impulsionada pela minha amizade com Margarita Pisano. À data que terminei, ela havia morrido, mas seu pensamento segue voando alto em mim. De alguma maneira, com este texto, cumpro minha promessa feita em abril, de escrever.
(2) Margarita pensava que uma das melhores pistas para transformar a vida era nosso corpo e sua ciclicidade; a capacidade de expulsar o óvulo cada mês e os filhos e filhas ao parir. Que isso deveríamos aplicar à sociedade, e sermos capazes de expulsar sem medos todos aqueles elementos que nos condicionam a seguir sendo escravas deste sistema.
(3) A sexualidade e a heterossexualidade sempre foram um questionamento da política de esquerda em relação às mulheres, seu duplo padrão, sua regulação moral. Isso eu li muito cedo na Autobiografia de uma mulher emancipada, por Alejandra Kollontai, em sua versão não censurada ou melhor, na evidência da censura.
(4) A emancipação em seu sentido estrito, Libertar-se de qualquer classe de subordinação ou dependência.
(5) Utilizo o conceito de Margarita Pisano em que a feminilidade só pode ser entendida como uma construção do patriarcado para a submissão das mulheres.
(6) Veja em Julia eu quero que você seja feliz, os personagens que acompanham o casal (p. 175. 2ª ed. 2012).
(7) Esses fatos são amplamente coletados na Biografia Política de Margarita Pisano, Uma história fora da história. Pisano e Franulic, 2009, para aqueles que precisam aprofundar sua análise.
(8) Aqui devo dizer que, aos 22 anos, tive uma incrível relação com um guatemalteco de 80 anos, exilado desde 1954 no Chile. Roberto Alvarado e sua esposa Aida me apresentaram através dos labirintos da Guatemala, em sua pequena casa, que na forma de um vulcão, recebia visitantes com frijolitos volteados y crema.
(9) Programa das Más Línguas, Concepción, Chile, Abril de 2015.
(10) O que se havia gestado a partir da proposta do Feminismo Cómplice.
(11) Memória do Primeiro Encontro Mesoamericano de Estudos de Gênero, Flacso, Guatemala, 2001.
(12) Margarita sempre foi clara sobre sua metodologia de chegada às mulheres, tanto nos Lunes Abiertos quanto em suas oficinas, revendo nossos processos, sua contribuição foi ensinar a pensar da vida pessoal à dimensão política, a partir da lógica da radicalidade. Ela sempre construiu Movimento, muito diferente da maioria das feministas de sua geração que saíram, no início do movimento, para fazer parte do status quo internacional.
(13) Feminismos Cómplices, 16 anos depois.
(14) Basicamente como uma formulação de sociedade que não está em nenhuma parte, mas que se transforma em um horizonte desejável para alcançar.
(15) Hannah Arendt. O que é política?.
(16) Empoderada é a mulher liberada, que sente que já não necessita do coletivo e que crê ter ganhado cotas de igualdade e que pode representar as outras sem consultá-las de nada.


Texto original de Edda Gaviola, aqui.